Da Penitenciária Bandeira Stampa, Bangu 09, Complexo de Bangu.
Segunda carta do preso político Igor Mendes
“Conheci Caio Silva e Fábio Raposo dentro da cadeia, apesar de sermos acusados, bizarramente, de pertencer a uma mesma “quadrilha”. Mais precisamente no interior de um camburão, algemados, a caminho do fórum, onde assistimos à primeira das inúmeras audiências do nosso processo, no dia 16 de dezembro de 2014. Conheci dois jovens tranquilos, solidários, temperados por muitos sofrimentos. Àquela altura sequer entendiam do que se tratava o que, para eles, era um novo processo. Eu, com meus botões, só pensava o quanto o mundo é mesmo pequeno: no dia 15 de outubro, quando na atividade cultural realizada na praça Cinelândia, tomei a palavra- para a enorme e justificada preocupação do meu querido advogado e companheiro Dr. Marino- unicamente porque os oradores que me antecederam não haviam tocado num ponto sensível: a campanha pela liberdade de Caio e Fábio.
Como todos sabem, a participação nesse evento foi a justificativa para a decretação da minha prisão, e também das companheiras Elisa e Karlayne. Dois meses depois estavam os três reunidos na condição de detentos… Não escrevo, entretanto, um relato pessoal. Assistindo a toda histeria reacionária que se seguiu a libertação dos dois me sinto no dever de fazer um contraponto; traduzir, para o argumento político, a minha profunda felicidade por vê-los de volta à vida já que, por aqui, apenas se sobrevive, e mal. Os que falam em impunidade não fazem ideia do que os dois e seus familiares passaram ao longo de mais de ano encarcerados. Não sei qual caminho seus pés trilharão doravante, mas sei que merecem estar livres para escolhê-los.
Caio Silva de Souza e Fábio Raposo Barbosa (nomes que decorei devido às nossas inúmeras idas ao fórum) não são assassinos. Não premeditaram a morte de Santiago Andrade, não disparam propositalmente o rojão na sua direção. Não havia qualquer previsibilidade na ação do artefato detonado, portanto intenção, e se dez reconstituições do episódio fossem feitas, dez resultados diferentes seriam obtidos. Fábio Raposo e Caio Silva ficaram um ano e quase dois meses presos- só quem já passou pelo sistema penitenciário brasileiro sabe o quanto é doloroso ficar mesmo uma hora aqui dentro. Eles foram vítimas de condenação antecipada e linchamento moral ímpar pelo monopólio da imprensa. Sofreram inúmeras torturas físicas e psicológicas ao longo do período de encarceramento. Caio Silva e Fábio Raposo não são assassinos, são ativistas e merecem estar livres.
A dor da família de Santiago Andrade é compreensível e deve ser respeitada. Não é, contudo, um argumento jurídico. Justiça não é vingança, justiça não é sepultar, em vida, dois jovens que jamais foram criminosos, encarcerados por longos anos nas masmorras que são as prisões brasileiras. O corpo de Santiago e a dor da família têm sido usados, na verdade, como se objetos fossem, no escuso interesse de criminalizar os protestos populares. No escuso interesse de manter no governo do Estado Cabral, Pezão, Beltrame e toda a sua claque, que mergulham o Rio num mar de lama que nem todos os guardanapos parisienses poderão limpar. No escuso interesse de legitimar a ação de uma polícia que, essa sim, premeditadamente, sistematicamente, faz do assassinato o seu modus operandi cotidiano. Uma política de Estado.
É espantoso assistir determinadas autoridades dizerem que a soltura de Caio e Fábio gera uma “sensação de impunidade”, quando as mesmas mandaram arquivar todas, repito, todas as denúncias contra Sérgio Cabral.
A rede Bandeirantes nada tem a declarar sobre o fato de seu profissional estar bem no meio de uma zona de conflito (não vou nem entrar no mérito de quem foi responsável pelo mesmo), desprovido do equipamento de proteção individual que seus colegas de todos os outros veículos há tempos utilizam?
Recentemente uma jornalista da Folha de São Paulo, que ficou cega de um olho por ter sido alvejada por tiro de bala de borracha disparado pela Tropa de Choque, teve negado o pedido de reparação que movia contra o Estado, porque, na opinião do judiciário paulista, assumiu os riscos ao cobrir o evento sem estar preparada. Não me lembro de ter visto, nessa ocasião, os âncoras dos telejornais franzir os cenhos e cobrar, indignados, a cabeça do Secretário de Segurança de São Paulo. Por que usar, no caso de Santiago Andrade, outro peso e outra medida? Sabemos porque: os Governos e a impressa marrom, ambos de direita, defendem interesses inconfessáveis.
Caio e Fábio não são inimigos da família de Santiago Andrade. Santiago Andrade não era inimigo dos manifestantes.
Levantamento a pouco publicado concluiu que os maiores inimigos da imprensa, os agentes que mais vitimaram jornalistas no exercício de suas atividades, foram policiais. Ocorre que a imprensa oficiosa do país (emissoras de rádio e televisão) é sustentada pela propaganda governamental, seu maior anunciante. Tem periodicamente suas dívidas perdoadas pelo Estado. São financiadas, também, pelos grandes empresários, que têm horror a qualquer coisa que cheire a povo, muito mais a povo consciente e organizado. Esses veículos apoiaram, entusiasticamente, o Golpe Militar e os 21 anos de torturas e assassinatos que se seguiram. Seu compromisso não é, portanto, com a verdade, mas com seus próprios interesses e com os interesses de quem os sustentam, o lucro enfim. Algumas empresas vendem sanduíches, a chamada “grande imprensa” vende versões convenientes a seus patrões.
Caio Silva e Fábio Raposo não podem pagar essa conta. Não podem ser crucificados para que toda uma geração seja desestimulada a ir para as ruas. Isso não é razoável, não é proporcional aos fatos. Eles são ativistas e merecem estar em liberdade. ”
Publicado originalmente no jornal Tribuna da Imprensa http://