Um álbum de fotos e um boné da Polícia Militar (PM) do Paraná estão entre os poucos objetos que Martel Del Colle, de 30 anos, guardou para se recordar da década em que serviu como tenente da corporação. No início do ano passado, o oficial foi aposentado compulsoriamente e, com o emprego, foram-se as fardas, a arma e a maior parte do salário. O motivo alegado foi o quadro depressivo enfrentado por Martel. Ele, no entanto, tem certeza que a dispensa foi resultado, na verdade, de sua adesão pública à campanha contra a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018:
— Um texto que escrevi viralizou na internet. Nele, explicava por que eu, um PM, era contra a eleição de Bolsonaro. Fiz críticas à adesão de membros da tropa ao bolsonarismo e, no dia seguinte, fui chamado a dar explicações à Corregedoria. Pouco mais de um ano depois, fui aposentado de maneira estranha.
Martel não é o único. Como ele, servidores lotados em repartições públicas passaram a ser enquadrados institucionalmente após se manifestarem publicamente, em geral pelas redes sociais, contra Bolsonaro e sua gestão. Na maioria das vezes, denúncias contra eles partem de apoiadores vigilantes do presidente. A Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (Arca), coalizão de entidades do setor público, identificou mais de 650 episódios de assédio institucional nos últimos dois anos.
Comportamento replicado
Relatos colhidos pelo GLOBO indicam que a pressão resulta em processos administrativos, judiciais e até em demissões. A tendência tem se repetido, principalmente entre agentes das forças de segurança e professores universitários. No mês passado, tornou-se emblemático o processo movido pela Controladoria-Geral da União (CGU) contra dois professores da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) que criticaram a atuação de Bolsonaro contra a Covid-19.
Para se livrarem de sanções, os docentes do Rio Grande do Sul assinaram um termo no qual se comprometiam a não repetir falas com o mesmo teor nos dois anos seguintes. Anulado judicialmente após a repercussão negativa do caso, o documento sintetiza a percepção de pesquisadores que veem em ações desse tipo um alerta de que, para o bolsonarismo, não pode haver espaço para divergência dentro de instituições públicas.
— É uma perseguição radical à democracia, e toda estratégia da forma de governar é ter inimigos. Sem eles, não há sequer bolsonarismo, fica um vazio. O objetivo é destruir os pilares da Constituição, destruir a democracia por dentro, aparelhando as instituições. O bolsonarismo é incapaz de reconhecer a existência do outro. Há um comportamento do alto, e os militantes fazem o mesmo lá embaixo — analisa o professor João Cezar de Castro Rocha, da Uerj.
No ano passado, a CGU editou uma nota técnica com medidas disciplinares contra servidores que se manifestassem nas redes sociais contra o órgão a que estão subordinados. O documento destaca que o regime jurídico do funcionalismo requer lealdade e veda manifestação de apreço ou desapreço no “recinto da repartição”. O texto foi questionado no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo PSB e aguarda análise da Corte. Militares, por sua vez, obedecem a regras mais rígidas e são proibidos de criticar abertamente atos de superiores ou do governo.
No caso do terceiro sargento da Marinha Michel Uchiha, a punição foi passar um dia inteiro preso no alojamento da Escola Naval, no Centro do Rio. Aplicada no mês passado, a punição disciplinar ocorreu após o militar responder a uma sindicância que investigou críticas dele a Bolsonaro nas redes sociais — um post replicava a pergunta sobre o motivo de a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, ter recebido R$ 89 mil de Fabrício Queiroz e da mulher, Márcia Aguiar.
A denúncia partiu de um superior, apoiador do presidente. Ainda impune, o denunciante também é alvo de uma sindicância por ofensas on-line contra o STF.
Uchiha conversou com O GLOBO na véspera da prisão, determinada sob a justificativa de que ele teria mentido ao negar a autoria das publicações:
— Fui perseguido por minhas convicções ideológicas ou por ser homossexual assumido, o que incomoda oficiais mais antigos.
A prisão de Uchiha foi abreviada pela Justiça Federal, por ter violado o direito à defesa do militar. A Marinha informou que as publicações dele sobre Bolsonaro foram “justificadas”e que ele foi detido por “ter faltado com a verdade” no curso do procedimento interno. A PM do Paraná não retornou sobre a aposentadoria de Martel Del Colle.
Assim como os pesquisadores da Ufpel, a professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco Érika Suruagy entrou na mira bolsonarista. Ela foi alvo de um inquérito aberto pela Polícia Federal (PF), a pedido do Ministério da Justiça, por, supostamente, atentar contra a honra do presidente após a entidade instalar outdoors em que ele aparece com capuz e foice, representando a morte, ao lado da frase “inimigo da Educação e do povo”.
Após Érika ter prestado depoimento, em março, a PF optou por não indiciá-la, “por se tratar de infração de menor potencial ofensivo” — como de regra, o material foi encaminhado para o Ministério Público, a quem cabe nova avaliação. Por causa do episódio, a professora do Departamento de Educação precisou bloquear suas redes. O Ministério da Justiça não se manifestou.
— Todo o ataque foi direcionado ao fato de eu ser professora universitária. Várias entidades participaram da iniciativa, e só eu estou respondendo a inquérito — disse Érika.
Também ficaram a cargo da PF inquéritos, abertos com base na Lei de Segurança Nacional, contra críticos do presidente — um dos casos, depois arquivado pelo Ministério Público Federal, tratou da divulgação de uma charge, por dois jornalistas, em que Bolsonaro era retratado ao lado de um símbolo nazista. No ano passado, a PF abriu 51 apurações com base na legislação, quase o triplo do número de 2018, ainda na gestão de Michel Temer.
Em Redenção, no interior do Ceará, também são investigados pela PF quatro professores e um técnico da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Os policiais apuram se o grupo compactuou com a depredação do patrimônio público e o uso de drogas na instituição.
Atuação para inibir
As suspeitas têm como base a presença deles em protestos promovidos por alunos contra o cancelamento, em 2019, de um edital voltado para o preenchimento de vagas por pessoas LGBT+. A Unilab desistiu da iniciativa a pedido do Ministério da Educação. Bolsonaro comemorou o fato com uma publicação nas redes sociais.
— Estava no local acompanhando os alunos, insatisfeitos com a intervenção unilateral do presidente na universidade. Não tive participação nos atos. Ainda assim, precisei depor à PF — explica o professor Fernando Afonso, de 48 anos, do Instituto de Humanidades.
Professor de Gestão e Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV), Claudio Couto acrescenta que esses episódios inibem iniciativas que fazem parte das funções dos servidores públicos:
— É o caso de fiscais do Ibama que não podem fiscalizar sob o risco de serem repreendidos e de professores que expressam desapreço pelo presidente, como se não fosse natural criticar uma série de coisas no ambiente universitário, inclusive político.
Fonte: João Paulo Saconi e Marlen Couto no Jornal O Globo