O Escuta Mulher está se consolidando como um espaço para a fala e a escuta das mulheres… um momento virtual para acolher e ser acolhida… uma espécie de terapia coletiva para desabafar, fortalecer os pensamentos, inspirar e encorajar as participantes nos desafios do trabalho, das lutas sindicais e da vida. A última edição do encontro, realizado pelo Departamento de Mulheres na quinta-feira (2/9), foi uma roda de conversa sobre pandemia, trabalho remoto e trabalho de cuidados.
Relação desigual
A doutoranda do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) e militante da Marcha Mundial das Mulheres, Marília Closs, afirmou que há uma divisão internacional do trabalho. “Existe o que é global, o que é a periferia do mundo. E nessa periferia do mundo, tem as mulheres que estão nessa hierarquização do poder, nesta esfera mais abaixo da divisão sexual e na divisão internacional do trabalho. Ou seja, a gente vive num mundo em que as mulheres estão simultaneamente em todas as esferas, mas sempre em hierarquias abaixo do poder”, disse.
Para a especialista, o tema passa pela economia política. “Na Marcha (Mundial das Mulheres), a gente compartilha a lógica da economia feminista. Para a gente, entender o mundo é pensar a partir do conceito da economia feminista, que parte da visão de que existem dois tipos de trabalho: o de mercado e o doméstico e de cuidados. Para o capitalismo, só o trabalho de mercado conta. Enquanto que o trabalho de cuidados não é considerado produtivo. E existe uma divisão sexual: as mulheres fazem o trabalho considerado produtivo e não produtivo. É divisão por gênero, de poder, hierarquizada e estruturante do capitalismo. O capitalismo se organiza dessa visão de que tem que ter alguém não remunerado por trás para manter a economia. E o componente de raça também conta – as mulheres negras estão mais sobrecarregadas nesta perspectiva de economia feminista”.
A pesquisadora completou: “vivemos há alguns anos uma ofensiva neoliberal com desmonte de creches, escolas… o que deixa as mulheres em condição de vulnerabilidade e sobrecarregadas. Com a pandemia, esses problemas foram se intensificando”. Marília contou que pesquisas recentes comprovam essa realidade.
Lugar de aprendizado
A diretora de Imprensa e Comunicação do Sindiquinze, Daniela Villas Boas Westfahl, comentou que é um respiro poder conversar sem precisar falar da PEC 32, proposta de reforma administrativa do governo Bolsonaro que ameaça retirar direitos dos servidores e precarizar os serviços públicos oferecidos à população.
A dirigente sindical afirmou que feminismo é um lugar de aprendizado. Daniela ficou impactada com a notícia de que o deputado Jessé Lopes (PSL-SC) se encontrou com o ex-marido e agressor que deixou a cearense Maria da Penha (que inspirou a Lei Maria da Penha) paraplégica e disse que ouviu dele uma versão intrigante. “Ele declarou que tinha levado informações relevantes. O deputado acha que um homem que atirou na esposa dormindo com uma espingarda precisa ser ouvido? Ele foi votado por um monte de gente. O que significa isso? Uma sociedade que odeia as mulheres”, declarou, dizendo que, mesmo antes de uma mulher nascer, a sociedade já define que ela vai cuidar de todo mundo a vida inteira e esse trabalho não vai valer nada.
“Isso é uma das coisas que tem que mudar urgentemente. Essa pandemia escancarou essa situação que estava escondida”, alertou.
“Na Justiça, somos privilegiadas porque mantivemos nossos empregos e aqui no nosso lugar de trabalho, a grande maioria de nós é arrimo de família ou única responsável pelo sustento da casa. E isso não impede que o trabalho tenha sido acumulado na pandemia”, apontou Daniela.
A diretora do Sindiquinze diz que a mulher é criada com a questão da culpa: “o que não der certo, a culpa é da mulher e, com isso, o emocional fica sobrecarregado sempre”.
Para Daniela, o trabalho de cuidados cabe à toda sociedade.
Questão cultural
A coordenadora da Fenajufe, Lucena Pacheco, que é também diretora do Sisejufe, destacou: “é preciso pautar as questões de raça e de gênero todos os dias. Qual o papel social que nós, mulheres, temos? Temos que pensar sobre essa questão da sobrecarga do trabalho remoto, que junta os cuidados com a família, as tarefas domésticas e o trabalho de mercado. Isso se evidenciou na pandemia”.
Lucena lembrou que a família do século XIX se estruturava desta forma: homens proviam e a mulher dava o cuidado da casa. “Na verdade, com a perspectiva de tempo histórico, a gente precisa falar nessa concepção todos os dias. É uma questão cultural que vai se perpetuando. Há mulheres, inclusive algumas feministas, que acham que esta discussão já está ultrapassada, mas temos que falar sim porque não está superada. Mulheres continuam com a sobrecarga, com a responsabilidade do cuidado, além do trabalho profissional”, apontou.
Lucena ressaltou também que outra questão cultural é quando uma mulher se diz satisfeita quando o marido, filho ou companheiro “ajuda” nas tarefas domésticas. Para ela, a responsabilidade tem que ser compartilhada. “Eu mesma já fiz muito isso. Não tem que ser ajuda e sim divisão”.
Igualdade de responsabilidade e de direitos
A coordenadora do Departamento de Mulheres, Anny Figueiredo, trouxe a discussão sobre a responsabilidade social em relação aos idosos e crianças. “Essa responsabilidade deveria ser de toda a sociedade. O cuidado não nos faz mal, a questão é a injustiça de caber só a nós. Nós crescemos achando isso normal”, afirmou.
“Essa questão nos faz competir desigualmente. Não queremos igualdade de gênero, queremos igualdade de responsabilidades e de direitos”, acrescentou.
Para Anny, o companheiro tem que ser responsável pela parte que cabe a ele nos cuidados da casa e dos filhos. “Agora estamos começando a entender, discutir e compartilhar esses dilemas para que as próximas gerações possam mudar”, opinou.
Representatividade e ocupação de espaços de poder
Eunice Barbosa contou que, quando assumiu a tarefa de presidir o Sisejufe, redobrou o cuidado para não cair na cilada de reproduzir na sua forma de atuar o modo de agir das práticas machistas. “É uma coisa muito sutil, principalmente no nosso universo sindical. Para mim, é sempre uma vigilância diária. Sempre me lembro de Margareth Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido, que foi a primeira mulher da história a ocupar aquele cargo. Ela adotou o regime neoliberal e as mulheres não se sentiram representadas por ela. As mulheres que lutaram por democracia também não se viram representadas porque ela apoiou a Guerra das Malvinas e Apartheid na África do Sul”, afirmou.
Para a dirigente, ocupando os espaços de poder é possível impactar a vida das mulheres. “Temos que construir espaços como este para trocar nossas impressões e nos fortalecer. Os sindicatos de base têm que pautar e construir essas lutas para que comecemos a ocupar outros espaços. Não dá para fazer atuação sindical descuidando das pautas de gênero e raça”, observou.
A roda de conversa, transmitida pelo Youtube, contou com a participação de diretoras do sisejufe e servidoras. Clique neste link para assistir a atividade na íntegra.