Fernanda Estevão Picorelli*
A consolidação da concepção hodierna de que o Estado no século XXI deve orientar-se para a concretização dos direitos fundamentais do cidadão, está a reclamar uma administração judiciária que potencialize os recursos materiais e humanos colocados à sua disposição
De fato, a centralidade da pessoa implica dispor-se o Estado orgânica e funcionalmente para a execução de políticas públicas necessariamente voltadas a essa finalidade, o que determina emancipar a racionalidade jurídica dos limites decorrentes da mera regularidade formal e do olhar que abstrai o resultado, tal como ocorre com o modelo burocrático de administração. Hoje, a relação é complementar com a racionalidade do management. A filosofia e a sociologia, ainda sob o prisma da interdisciplinariedade, completam sobremodo esse quadro, na exata medida que colocam a pessoa, a sua dignidade, o bem comum, como o centro de qualquer ação política a ser adotada.
Nas palavras de Gordilho, um sistema administrativo pode se afigurar a um jurista como magnífica arquitetura da construção da ordem, mas se a comunidade a que ele serve não tem a mesma percepção, o sistema não tem valor (Gordilho, Austin A. La administración paralela. 3. Reimp. Madrid: Cuadernos Civistas, 2001).
Sob esse ângulo, e sabido que o material humano devidamente preparado e adequadamente remunerado, para além da suntuosa estrutura arquitetônica em que ele está inserido, é o mais importante componente para que se realize uma eficiente prestação jurisdicional ou, em outras palavras, para que o Poder Judiciário bem concretize a sua função primordial e legitime a sua existência, a categoria, representada pelo Sisejufe, entrou em greve desde o dia 20 de agosto de 2014, quarta-feira, como último instrumento para garantir a aprovação de Projeto de Lei que garante a reposição da remuneração devida aos servidores do poder judiciário federal, corroída substancialmente pela inflação dos últimos anos.
Todas as tentativas para que o processo negocial avance têm sido realizadas pelos representantes da categoria junto ao STF e Poder Executivo. Apesar de todo o esforço para acelerar a votação do PL 6.613/09 (agora PL 7.920/2014), chegou-se à conclusão que, sem uma pressão contínua e intensa de toda a categoria, não seria possível conter a disposição da presidente Dilma de cortar os recursos orçamentários que viessem a garantir a real reposição salarial da categoria.
Diante desse quadro, no dia 27 de agosto de 2014, apesar do grande cansaço que a abatia, em razão de haver enfrentado um processo eleitoral desgastante que culminou com a vitória dos membros que compunham a chapa 1, além de trabalhar por uma paralisação setorial por duas horas no dia 14/08/2014, e, ainda, diante da necessidade de voltar-se para a organização estratégica e ações concretas para a realização da greve iniciada no dia em 20/08/2014 em todo o estado, uma delegação de cerca de 25 trabalhadores do Judiciário Federal no Rio de Janeiro, sob a liderança do Sisejufe, uniu-se na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, inicialmente em frente ao Palácio do Planalto e, depois, em frente ao STF, a representantes de 16 sindicatos, oriundos do Distrito Federal e outros 15 estados, o que redundou na presença de aproximadamente mil e quinhentas pessoas, todas voltadas para a mesma causa e empunhando a mesma bandeira, de forma altamente organizada, ponderada, mas também combativa, de modo a produzir decibéis ensurdecedores por meio dos instrumentos sonoros que portavam, e a entoar discursos coerentes e bem embasados voltados para a valorização do seu quadro funcional e para que o STF, por meio do seu representante maior, fizesse valer a autonomia que ostenta o Judiciário e garantisse a dotação orçamentária para a reposição salarial almejada.
No decorrer do protesto, manifestantes ocuparam de forma tranqüila a rampa do STF e foram duramente reprimidos pela Polícia Militar, que chegou a utilizar, de forma desproporcional àquela ocorrência, spray de pimenta para dispersar o grupo. Pouco depois a situação se acalmou e logo uma comissão formada por dirigentes da Fenajufe e do Sindjus/DF foram recebidos pelo diretor geral do STF, Amarildo Vieira. Participaram da comitiva Cledo Vieira, João Evangelista, Mara Weber, Pedro Aparecido e Jailton Assis. Do resultado da reunião obteve-se saldo positivo com a informação do Amarildo de que o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, assumiria o compromisso de se empenhar pela aprovação da reposição salarial reivindicada pela categoria e de defendê-la diante do Poder Executivo, o que, de fato, veio a ocorrer ainda naquela semana.
Esse cenário emocionou a todos os presentes, particularmente diante da postura ativa de todos os cidadãos que integraram o movimento, já que, subjacentemente a este, o que de mais relevante observou-se foi a maturidade democrática daqueles que reivindicaram o que consideram ser justo por direito, ao invés de manterem em relação ao Estado uma relação de subserviência, de resignação frente a um serviço pífio, ou a um tratamento indigno, in casu, dirigido aos servidores federais, imbuídos da nobre missão de prestar um serviço público de qualidade à sociedade. Tal qual os gregos na Ágora, símbolo da expressão máxima da esfera pública e da democracia daquele povo, os servidores do Judiciário Federal reuniram-se na Praça dos Três Poderes movidos pela concepção de que o resguardo do sentimento nacional de justiça representa a melhor defesa de um Estado sadio e vigoroso.
Abaixo transcrevemos, a fim de demonstrar alguns aspectos relevantes e a forte emoção vivenciada em Brasília – embora sabedores de que esta transcende o que intentamos explicar por meio de palavras -, depoimento que prestei, na qualidade de um dos integrantes da delegação que representou o SISEJUFE, em fórum que reunião diretores daquele sindicato:
“A ideologia é o combustível transformador. Aquele cenário, onde se via o exercício ativo da cidadania em uma sociedade com democracia tão tardia como a nossa, foi marcante e de enorme significado, tanto para cada um em particular, enquanto indivíduo, como para todos, enquanto categoria. Os membros da nossa delegação estavam nitidamente cansados, em razão da eleição ocorrida, das várias reuniões que realizamos para planejar ações estratégicas (que ocorrem somente após o cumprimento de nossas atribuições enquanto servidores) e da liderança in loco para a realização concreta daquelas ações, tudo, obviamente, com renúncia até mesmo do convívio familiar. Mas, sabedores da importante missão que nos foi confiada, fomos à luta com vigor e defendemos os interesses de todos: dos sindicalizados, daqueles que não são, dos que nos fazem oposição, dos que sequer conhecemos, daqueles que ainda não entenderam a enorme importância de aderir ao movimento neste momento crucial para a categoria, enfim, de todos aqueles que se encontram oprimidos por essa política de desvalorização de um capital humano que deveria ser tão caro ao Poder Judiciário.
Estávamos juntos para denunciar as injustiças que, há anos, permeiam o inconsciente coletivo. Essa experiência significou para nós uma verdadeira cartase. Lutar pelo bem comum é algo emocionante, engrandecedor, e que contribui indubitavelmente para a criação de uma cultura cívica reivindicatória e, em razão disso, para o aprimoramento das instituições existentes…”.
“Chamou-me a atenção os policiais militares em ação de bloqueio, em razão da enorme simbologia que dela podemos extrair: é o poder constituído pela sociedade que bloqueia os próprios anseios desta, e que intenta calar a sua voz com armas não letais. O uso destas – ou de qualquer outra ação repressiva – contra trabalhadores honestos e que realizam reivindicações legítimas e ponderadas, deve ser banido, ou ser o último recurso a ser utilizado, se realmente necessário, pouco importa que seja no entorno do STF, como em qualquer quadrante do Brasil, já que atenta contra o ambiente propício a tão desejada democracia real (substantiva) que queremos ver instalada em nosso país. Afinal, a transformação do Estado absoluto em Estado democrático de direito acontece juntamente com a transformação do súdito em cidadão, é dizer, em sujeito titular de direitos. O chamado contrato social, uma vez traduzido em pacto constitucional, deixa de ser uma hipótese filosófico-política para se converter em um conjunto de normas positivas que obrigam entre si Estado e cidadão, fazendo deles sujeitos com soberania reciprocamente limitada.
Assim sendo, não é dado a qualquer dos poderes do Estado calar a nossa voz, muito menos com truculência! Somos vítimas e não agressores! Integramos o Poder Judiciário, não estamos contra ele. Só queremos ser valorizados, reconhecidos como um capital humano qualificado e vital para o bom andamento da máquina judiciária, enfim, queremos ser tratados com dignidade para que possamos continuar, uma vez atendidas as nossas necessidades existenciais, a prestar um trabalho de qualidade à sociedade…”
“Outros dois aspectos entendo que merecem destaque. Cito, primeiramente, o fato do nosso companheiro Leonardo Bruno, recém empossado diretor sindical, transformar-se durante o ato em Brasília, de um rapaz tímido e pouco falante, em um aparente líder sindical experiente, ao pegar o megafone e disparar um discurso que nos emocionou, voltado especificamente para o presidente STF, como se este estivesse bem à sua frente (risos). É aquele combustível (ideologia) que nos transforma assim e nos torna pessoas capazes de superar nossos próprios limites em prol de uma sociedade mais justa e solidária. Esse relato aparentemente simples, reveste-se de enorme valor: o Leonardo simboliza a nossa voz. Queremos ser escutados e considerados, nem que para isso precisemos contrariar a nossa própria natureza e ‘colocar a boca no trombone’, com muita garra e persistência. Segundo aspecto: chamou-me muita atenção determinado cartaz que dizia: ‘Vem pra rua vem, reajuste é seu também’. De fato, entendemos que a categoria precisa internalizar a concepção de que, quando o direito reivindicado é de todos, todos precisam estar envolvidos no processo. Não é justo que determinados servidores não atendam ao chamado do Sindicato para incorporar esse legítimo movimento que, ao final, sendo ou não exitoso, lhes tocará diretamente. É preciso entender que, enquanto determinado indivíduo nada contribui, seu colega está sendo penalizado com um enorme esforço, que pode a vir comprometer sua vida pessoal, familiar, e até a sua saúde. Portanto, devemos fazer um convite àqueles que ainda não se sentiram animados a sair de sua zona de conforto para que participem dessa linda e emocionante história do movimento da categoria.
Juntos seremos mais fortes. O economista e filósofo político Amartya Sen, sumariza bem esse aspecto ao afirmar que o desenvolvimento não consiste somente na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas, mas no exercício ativo e ponderado da cidadania. Portanto, devemos estimular e continuar o trabalho de conscientização da enorme importância da participação de cada servidor, de cada colega. Cada nova adesão será para nós motivo de grande alegria, e o novo integrante será para nós não apenas mais um servidor, um colega, mas um estimado companheiro de luta.”
* Fernanda Estevão Picorelli é analista judiciário do Quadro Permanente da Justiça Federal de Primeira Instância, especialista em Administração do Poder Judiciário (MBA/FGV), mestre em Direito Público e Evolução Social e diretora sindical do Sisejufe