O Atlas do Estado Brasileiro, divulgado pelo IPEA em dezembro de 2019, revelou que o país dobrou seu número de servidores públicos de 1986 a 2017 em semelhança ao setor privado. União, Estados e Municípios têm hoje mais de 11 milhões de postos de trabalho. Praticamente 60% deles são municipais, volume ampliado nas últimas décadas pela descentralização de políticas públicas em áreas como saúde, educação e ambiente. Esses agentes locais recebem em média três vezes menos que os federais. Já as maiores remunerações encontram-se no Judiciário, cujos servidores auferem em média cinco vezes mais que os servidores do Executivo.
A natureza dos vínculos laborais é bastante variada. Os agentes públicos englobam: militares, agentes políticos, agentes administrativos e colaboradores. Os administrativos desdobram-se em empregados públicos (regidos pela CLT) e estatutários, subdivididos em comissionados, servidores de provimento efetivo (estáveis) e vitalícios, como juízes e promotores.
A Administração Pública também conta com terceirizados, subordinados a empresas privadas contratadas sob a Lei de Licitações. Se tomarmos os serviços públicos em sentido amplo, então perceberemos que a gestão pública depende igualmente de trabalhadores de concessionários, permissionários e empresas por elas subcontratadas para executar ações inerentes ou complementares.
Fato é que todos esses trabalhadores serão de alguma maneira atingidos pela retração econômica e, por conseguinte, orçamentária que sucederá à pandemia e às necessárias medidas de proteção da saúde determinadas pelos governos federal, estaduais e municipais.
O Banco Mundial prevê retração de 5% do PIB brasileiro. Já os Estados esperam quedas expressivas de ICMS, imposto que, no estado de São Paulo, sustenta autarquias relevantíssimas, como a USP, a UNESP e a UNICAMP.
Sob essas circunstâncias, indagações sobre o peso das despesas de pessoal despontam naturalmente. Como lidar com a previsível escassez de recursos orçamentários? O ordenamento proporciona respostas das mais variadas, com distintos graus de complexidade e impacto. Isso inclui, especificamente no tocante aos servidores públicos, a possibilidade de:
1) postergação de concursos públicos, principalmente de atos de nomeação, posse e contratação. Para isso, os entes públicos podem se valer da prorrogação dos prazos de validade de concursos recém finalizados e, para os futuros, de maneira prudente, deverão utilizar prazos de validade próximos ao teto de 2 anos, podendo estendê-los por igual período;
2) congelamento de reajustes salariais, dado que o art. 169, § 1º da Constituição exige receita orçamentária suficiente para tanto, levando-se em conta as projeções de despesa de pessoal e os acréscimos dela decorrentes. Anote-se, ainda, que o governo federal está em negociação no intuito de prever o congelamento como contrapartida da ajuda aprovada na Câmara aos estados por redução de receitas, sobretudo de ICMS;
3) adoção de programas de demissão voluntária, cujos incentivos financeiros não são computados para fins do cálculo dos limites de despesas com pessoal nos termos do art. 19, § 1o da Lei de Responsabilidade Fiscal; e
4) exoneração para adaptação a limites fiscais. Nos termos da art. 169, § 3º e 4º da Constituição, a Administração Pública está autorizada a exonerar para se adaptar a limites fiscais (previstos nos art. 19 e 20 da LRF).
De que maneira? A Constituição da República estipula uma ordem de medidas que se inicia com (i) a redução de despesas com comissionados e funções de confiança em pelo menos 20%; (ii) exoneração dos servidores não estáveis (efetivos sem estabilidade, empregados e temporários); e (iii) subsidiariamente, caso as metas não sejam alcançadas, os servidores estáveis poderão ser desligados com a garantia de indenização de um mês de trabalho por ano de serviço.
Com isso, cargos, empregos e funções ficam extintos e a Administração Pública, proibida de recriar outros com atribuições iguais ou assemelhadas pelo prazo de quatro anos. Essas restrições do art. 169, § 4o não se aplicam, porém, a servidores de provimento vitalício, como juízes e promotores.
Considerando-se que o texto constitucional autoriza medidas tão drásticas e com implicações tão duradouras, por que não adotar soluções mais brandas como a redução de jornada e proporcionalmente da remuneração? Essa questão é inevitável, inclusive porque parlamentares apresentaram projetos de lei para reduzir remuneração de servidores durante a pandemia, estipulando descontos progressivos de acordo com o aumento da remuneração em cada caso.
A ideia tem suas justificativas lógicas. Afinal, uma vez que a Constituição permite exonerar por excesso de despesas, por que não autorizaria a adoção de medidas mais brandas, como a manutenção do servidor com redução de remuneração?
Afora questões sobre reserva de iniciativa, autonomia federativa e divisão de poderes, a principal barreira jurídica a propostas do gênero reside no art. 37, inciso XV da Constituição da República, que prevê a irredutibilidade dos subsídios e dos vencimentos de ocupantes de cargos e empregos públicos.
Até hoje, autoriza-se excepcionar essa barreira apenas: (i) para dar cumprimento a tetos (art. 37, inciso XI) ou (ii) por variação tributária, por exemplo, em virtude de aumento de alíquota de imposto de renda (art. 153, III).
Mas e o art. 23, § 2o da LRF? Como se sabe, esse dispositivo vai além dessas duas exceções ao prever a faculdade de se reduzir temporariamente a jornada de trabalho com a consequente adequação dos vencimentos à nova carga horária.
Esse artigo incluiu a redução de jornada e de remuneração com uma alternativa à medida de exoneração do art. 169, § 4o da Constituição. Ocorre que, na ADI nº 2.238-5, o STF formou maioria em agosto de 2019, entendendo que a redução de jornada é inconstitucional.
Apesar dos adequados votos de Alexandre de Moraes, Barroso e Gilmar Mendes pela manutenção dessa alternativa mais razoável que a exoneração, a maioria dos Ministros entendeu ser inconstitucional a redução, mantendo a suspensão do artigo determinada pelo Supremo em liminar de 2002. No entanto, o julgamento ainda não se concluiu, pois a votação foi suspensa e deveria ser retomada em 2020.
É aqui que se pergunta: não deveriam os ministros rever seus votos? Se petrificado nesse momento, o entendimento de inconstitucionalidade da redução de jornada certamente terá efeitos terríveis, pois excluirá do ordenamento uma solução muito mais branda e socialmente razoável que a prevista no art. 169, § 4º da Constituição.
Se mantido na LRF, o dispositivo permitirá que, no futuro próximo, postos de trabalho sejam mantidos com algumas restrições e posteriormente normalizadas as remunerações, afastando-se tanto os danos potenciais quanto as amarras que acompanham a exoneração por excesso de despesa prevista no art. 169 da Constituição.
Fonte: Site Jota – por Thiago Marrara – Professor de direito administrativo da USP (FDRP). Doutor pela Universidade de Munique (LMU). Advogado consultor.