Por Cristiane Vianna Amaral*
Rubens Casara, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), acaba de lançar o livro “Estado Pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis”, pela Editora Civilização Brasileira. Ele é um dos que ficaram conhecidos como “Os quatro de Copacabana” (Editorial do Contraponto, nº 94, Nov/2017), em episódio no qual o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) os investiga por expressarem abertamente opinião contrária ao impedimento da então presidente da República Dilma Rousseff, em 2016, sofrendo na pele os efeitos do chamada Estado de Exceção permanente.
Para o mestre em Ciências Sociais e doutor em Direito a ideia de crise tornou-se um lugar comum para ocultar um novo modelo de Estado. O caráter pós-democrático desse Estado refere-se ao fim dos direitos e garantias fundamentais.
Na obra, ele denuncia um Estado em que o governo se põe abertamente a serviço do mercado, a manipulação do Poder Judiciário, o jogo eleitoral e práticas que atingem diretamente os servidores, como a concepção gestionária do mundo, com sua a meritocracia e lógica gerencial e eficientista, que trata os cidadãos como consumidores.
Por outro lado, Casara acredita que é possível construir condições para superar também o Estado pós-democrático. A partir da descoberta de um “comum”, que reúna pessoas em torno de um projeto, capaz de implantar uma democracia como nunca vista ainda no Brasil. Sua esperança parte do pressuposto de que a narrativa autoritária que se encontra por trás desse Estado é facilmente desconstruída.
Em entrevista ao Contraponto, Casara aponta que os cidadãos precisam arregaçar as mangas e, a partir do próprio remédio democrático, da participação popular na tomada de decisões e do respeito aos direitos fundamentais, das pessoas na rua discutido, rediscutindo ou voltando a discutir, construir condições objetivas para suplantar também o Estado Pós-democrático.
Contraponto: O senhor afirma em seu livro que o Estado Democrático de Direito não está em crise, mas que já vivemos em um outro patamar, a partir da razão neoliberal. O que isso significa?
Rubens Casara: Crise, por definição, é um estado passageiro, no qual o antigo ainda não desapareceu, mas que há possibilidade do novo vir a surgir. É um termo médico, surgido na Grécia, que retratava aquele momento em que o doente, a partir da evolução da própria doença, se recuperava ou morria. Quando ouvimos falar da crise do Estado Democrático de Direito o que se quer é esconder uma mudança paradigmática. O discurso de uma crise permanente do Estado Democrático serve para esconder que não estamos mais vivendo uma quadra histórica democrática. A tese que eu defendo nesse livro é que o Estado Democrático de Direito foi superado por uma outra forma jurídica que é a do Estado Pós-democrático. O Estado Democrático de Direito surge após a II Guerra Mundial, a partir da constatação de que não bastava um Estado regulado pelo Direito para evitar a barbárie. Sua principal característica não era a mera regulamentação do Estado por norma jurídica, mas a existência de limites rígidos para o exercício do poder, de limites intransponíveis ao exercício de qualquer poder. O que estamos vendo no atual contexto histórico é que esses limites desapareceram. E isso se dá em razão daquilo que os franceses Pierre Dardot e Christian Laval chamam de “razão neoliberal”, que se tornou a nova premissa de mundo: tudo e todos passam a ser vistos como mercadorias, portanto, como objetos negociáveis, descartáveis, inclusive os limites democráticos ao exercício do poder. Os direitos e garantias fundamentais, que eram os principais limites democráticos desse exercício, hoje são relativizados, afastados sem pudor. Nesse contexto, desaparece a dimensão material da democracia, desaparecem os valores democráticos. Direitos e garantias fundamentais passam a ser vistos como obstáculos aos fins do mercado ou à eficiência punitiva do Estado. Uma eficiência punitiva, vale dizer, que é posta em nome do projeto neoliberal. É preciso controlar os indesejáveis: aqueles que não tem capacidade de produção ou consumo e também os inimigos políticos do projeto neoliberal, inclusive os sindicatos e movimentos sociais. Os direitos e garantias fundamentais, que historicamente deveriam funcionar como limite ao arbítrio, ao abuso, hoje são vistos como obstáculos ao funcionamento do Estado Pós-democrático, à lógica neoliberal.
Contraponto: Os sindicatos estariam entre os inimigos políticos da lógica neoliberal, assim como os movimentos populares?
Rubens Casara: A expressão Pós-democracia surge com o inglês Colin Crouch. Ele visava, com esse termo, dar conta do seguinte fenômeno: há uma casca democrática, uma aparência de legalidade enquanto que, no fundo, as grandes decisões políticas deixam de atender à participação popular e passam a ser tomadas pelas corporações econômicas, em completa desconsideração das manifestações populares e da pressão legítima que historicamente foi exercida pelos sindicatos. Mais do que isso, na Pós-democracia os sindicados passam a ser vistos, mesmo, como um obstáculo ao projeto neoliberal. Tanto o voto popular quanto a pressão dos sindicatos perdem importância. Não é obra do acaso os ataques que os sindicatos têm sofrido em todo mundo capitalista pelos titulares do poder político que, na Pós-democracia, também são os titulares do poder econômico.
Contraponto: A Justiça Eleitoral, por meio dos guardiões do voto, que são os tribunais regionais eleitorais, têm sido sucateada e os servidores vêm sofrendo muitas pressões. Esses ataques também fazem parte da lógica neoliberal?
Rubens Casara: Tudo isso segue esse mesmo movimento de ver aquilo que pode representar um obstáculo ao projeto neoliberal como algo a ser destruído, algo a ser desmontado. Os exemplos não faltam: os ataques estruturais à Justiça Eleitoral e a chamada “flexibilização trabalhista”, que na verdade é um projeto de destruição dos direitos e garantias previstos na legislação trabalhista desde Getúlio Vargas, estão dentro desse movimento, assim como o projeto de Reforma da Previdência Social. Tudo aquilo que possa reduzir os lucros dos detentores do poder econômico, limitar o potencial de expansão do capital, em especial do capital financeiro, segundo a lógica Pós-democrática, deve ser descartado.
Contraponto: Como os servidores públicos podem contribuir para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos previstos em um regime democrático?
Rubens Casara: A solução passa por ressignificar os valores que condicionam nossa atuação no mundo, desmercantilizando-os e reconstruindo os limites democráticos. Se na Pós-democracia todos os valores são tratados segundo a lógica das mercadorias, ou seja, como “negociáveis”, nós temos que resgatar a percepção de que alguns valores são inegociáveis, de que a dignidade da pessoa humana, por exemplo, é um limite intransponível aos desejos dos detentores do poder político e do poder econômico. A jornalista Naomi Klein lançou recentemente o livro “Não basta dizer não”. A nossa atuação como funcionários públicos, preocupados com o restabelecimento do Estado Democrático de Direito, passa muito pelo que a autora aponta em sua obra: é muito fácil se indignar com determinadas políticas pautadas pelo ideal neoliberal, mas, para além de dizer não a essas políticas, nós precisamos criar narrativas atrativas para disputar o jogo político. Nós temos que compreender o que está acontecendo, o motivo pelo qual o Estado Democrático de Direito foi posto de lado e, a partir dessa compreensão, pensar discursos e estratégias de atuação concretas, reais, para suplantar esse modelo. Nós precisamos mostrar ao cidadão que está sendo explorado – mas que em razão da ideologia não percebe a exploração -, que as coisas podem ser diferentes e, principalmente, melhores. Após identificarmos como chegamos até esse ponto em que se naturalizou a violação da democracia, é preciso encontrar um “comum” pelo qual valha a pena lutar. Penso que uma Educação para o respeito aos direitos e garantias fundamentais, que devem voltar a ser percebidos não apenas como conquistas civilizatórias, mas principalmente como limites à barbárie, é um primeiro passo na construção coletiva desse “comum”.
Contraponto: No entanto, os servidores, assim como a população brasileira como um todo, encontram-se num estado de apatia. É possível mudar essa situação?
Rubens Casara: A razão neoliberal, essa nova razão de mundo, assim como toda a ideologia, não é percebida enquanto tal. Isso faz com que pessoas que são oprimidas por esse modo de ver e atuar no mundo não percebam que estão sendo exploradas e que seus direitos estão a ser extintos diante de seus olhos. Hoje é fácil encontrar na rua pessoas que são brutalmente exploradas, mas que foram levadas a acreditar que são uma espécie de “empresárias de si mesmas” e que, a partir da meritocracia, em breve, se tornarão os próximos milionários. Nós temos que desvelar essa ideologia, mostrar que existe uma estratégia de controle da população da qual elas são vitimas inconscientes. O filósofo coreano Byung-ChulHan chama essa manifestação de “poder sobre as pessoas”, que passam a contribuir para a sua própria exploração, de psicopoder. Esse é tão efetivo, ou mais, do que as manifestações do poder punitivo para controlar os indesejáveis. A construção comum de uma saída democrática passa, então, por desnudar essa e todas as demais formas de opressão, passa também por resgatar o diálogo e construir uma consciência moral que se oponha à barbárie. Precisamos, ainda, redescobrir categorias e pensadores que foram deixados de lado pela razão neoliberal por serem “perigosos”, por serem indesejáveis. Temos que voltar a estudar coisas como a ideologia e a luta de classes. Refletir sobre a origem da tradição autoritária em que o Brasil foi lançado, em especial sobre os efeitos da escravidão sobre nós. Resgatar a importância das utopias, afinal um outro mundo ainda é possível. Ler Adorno, Benjamin, Gramsci, Fromm, Paulo Freire, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e outros teóricos que acreditavam na necessidade de um mundo melhor.
Contraponto: No livro, você critica a meritocracia e a lógica gerencial e eficientista, essa última, como entrave a qualquer pretensão da atividade jurídica voltar-se a realização de direitos e garantias fundamentais. Como é possível alertar os servidores sobre esses princípios que estão sendo introduzidos no serviço público em proveito do neoliberalismo?
Rubens Casara: Os servidores, cada um de nós, também foram lançados nessa linguagem e nessa tradição neoliberal autoritária e então passam a agir condicionados por esses valores, por essa tradição. Precisamos, primeiro, desvelar o que há de autoritário e de estratégia de dominação a agir sobre nós, para, em seguida, começar a construir uma tradição em sentido contrário, democrática, de respeito aos direitos dos outros, às diferenças, à alteridade, que parta do conhecimento e da compreensão dos problemas para encontrar, dentro de um projeto coletivo, uma saída. Por sermos seres lançados na linguagem, e essa sempre antecipa sentidos, interpretamos ao agir no mundo. O resultado dessa interpretação sofre vários condicionamentos, a maioria deles inconscientes. Devemos, para mudar o atual estado de coisas nos interpretar, tentar localizar e identificar nossas pré-compreensões e preconceitos, para podermos interpretar e agir melhor; a razão neoliberal que faz crer que o mundo não pode ser transformado. A compreensão de que se não houver mudanças a vida no planeta se torna insuportável e corre sérios riscos é um primeiro passo para romper com a inércia e superar o projeto neoliberal.
Contraponto: No mesmo sentido, o senhor afirma que a Pós-Democracia também induziria à produção massificada de decisões judiciais, a partir do uso de modelos padronizados como forma de aumentar a produtividade, agradar a uma parcela de consumidores, já que as pessoas não são mais vistas como cidadãos, e estabilizar o mercado.
Rubens Casara: O Poder Judiciário no Estado Pós-democrático condicionado pela razão neoliberal tem apenas duas finalidades: por um lado ele é um homologador das expectativas do mercado, por outro, ele passa também a produzir mercadorias. Essa lógica de produção massificada de decisões-mercadorias tem tomado conta do nosso serviço. E algumas mercadorias são, talvez, mais interessantes: as espetaculares. É possível perceber a transformação de vários casos judiciais em espetáculos que estão sendo explorados pelos veículos de comunicação de massa. Então temos a mercadoria massificada de um lado e a espetacular do outro, essa última será vendida para os meios de comunicação de massa.
Contraponto: Na semana passada foram divulgadas imagens do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral usando algemas nos punhos e tornozelos. Muitas pessoas e até parte da imprensa comemoraram a atuação da Polícia Federal. No entanto, o procedimento também sofreu críticas por parte de alguns juristas. Podemos dizer que esse acontecimento faz parte da lógica de espetacularização?
Rubens Casara: Aquelas imagens me parecem um sintoma muito claro dessa mercantilização do sistema de Justiça. A imagem foi produzida para ser vendida. Um espetáculo para uma audiência que se encontra condicionada por uma tradição autoritária, quando não uma audiência sádica. Violações à legalidade, como o uso abusivo de algemas, ocorrem mesmo no ambiente do Estado Democrático de Direito. O problema da Pós-democracia é que os valores democráticos, como o respeito à dignidade da pessoa humana, passam a ser completamente desconsiderados. Quando se vê uma parcela grande da população aplaudindo aquele tipo de imagem, que retrata o uso abusivo e desnecessário de algemas, é porque os valores democráticos desapareceram e isso é um claro sintoma do Estado Pós-democrático.
Contraponto: O Estado Democrático de Direito nunca foi vivido plenamente pela grande maioria da população brasileira. Vários direitos previstos na Constituição nunca foram sequer regulamentados. Isso poderia, em parte, explicar o pouco valor que parte da população dá à defesa da democracia?
Rubens Casara: Isso faz com que, aqui em nosso país, ao contrário do que acontece, por exemplo, na França e na Inglaterra, a transformação do Estado Democrático de Direito em Pós-democrático tenha se dado de uma maneira muito fácil. A transformação de um Estado Democrático de baixa intensidade em um modelo pós-democrático se deu sem traumas. No Brasil, uma grande parcela da população nunca se sentiu, de fato, num Estado Democrático de Direito, e isso se explica em razão da natureza autoritária da sociedade brasileira, que foi forjada a partir da crença na possibilidade da hierarquização de pessoas. A escravidão nos legou a percepção de que existem pessoas que podem ser excluídas, eliminadas, tratadas como objeto. A tradição autoritária sempre fez com que o Estado Democrático de Direito no Brasil fosse de baixa intensidade. Quando se fala que esse Estado foi superado pelo Pós-democrático, o que se quer deixar claro é que sequer aqueles valores que ainda serviam como guia, como limite, desapareceram. Hoje, os próprios limites semânticos que constam do texto da Constituição são ignorados sem pudor. Juízes violam a lei sem constrangimento. Pessoas são condenadas sem prova segura. Os valores da jurisdição democrática, a verdade e a liberdade são ignorados. Juízos morais, construídos à luz da razão neoliberal, substituem os juízos jurídicos. Isso é pós-democracia. Inegável: em um Estado em que para uma grande parcela da população os direitos e garantias fundamentais nunca chegaram a ser concretizados, você tem uma facilidade muito maior de produzir essa mudança paradigmática em direção ao Estado Pós-democrático.
Contraponto: Em seu livro, você afirma que na Pós-democracia as eleições se revelam uma fraude, um jogo de cartas marcadas, nos quais os detentores do poder econômico não apenas “compram” representantes, como guardam um trunfo para situações excepcionais como um resultado indesejado no processo eleitoral. O julgamento do ex-presidente Lula, nesta quarta-feira, 24/01, primeiro colocado nas pesquisas eleitorais para a Presidência da República, faz parte dessa lógica? Qual o valor simbólico desse acontecimento?
Rubens Casara: Esse julgamento chama a atenção de todo o mundo. Ele pode ser interpretado como um teste para se saber o que restou da democracia no Brasil. Temos o confronto de duas narrativas muito distintas. Por um lado, aqueles que desejam a impossibilidade do ex-presidente Lula ser candidato, que torcem pela manutenção da sentença pelo TRF4. Por outro lado, aqueles que estão mais preocupados com as regras do jogo democrático ou que querem que o ex-presidente se candidate, torcem pela reforma dessa decisão. O problema é que, no Estado Democrático de Direito a “torcida” não deveria contar muito. Nesse modelo, a manutenção, a anulação ou a reforma da decisão deveria ser pautada pelo projeto constitucional, pelo respeito às garantias fundamentais e às regras probatórias. O desafio dos três desembargadores do TRF-4 será o de produzir uma decisão adequada ao projeto constitucional, que respeite as regras e princípios que se referem a temas como imparcialidade, competência, vedação das provas e cadeia de custódia probatória, bem como que se mostre adequada à dogmática penal. Li as principais peças do processo, por curiosidade acadêmica, e o desafio dos desembargadores é enorme. Diante de um patrimônio autoritário e de um patrimônio democrático, ambos à disposição para se construir a decisão judicial, a opção dos desembargadores do TRF-4 terá um efeito imenso na trama simbólico-imaginária que chamamos de realidade. Se pairar qualquer dúvida sobre a legitimidade de uma eventual condenação, todo o sistema de Justiça sofrerá um abalo inédito de credibilidade. Uma decisão que não elimine todas as dúvidas que as partes, os analistas e juristas que analisaram a sentença produziram fará com que desapareça para uma grande parcela da população, pelo menos para a parcela da população com preocupação democrática, a esperança de ainda viver em um ambiente minimamente democrático. Uma eventual condenação que não esclareça e convença a população, em especial, aqueles que acreditam nos valores democráticos, de que as formas e garantias processuais foram respeitas e que o ex-presidente cometeu o crime a ele atribuído será vista como sinal do uso político do Poder Judiciário pelos detentores do poder político e do poder econômico, até porque, nas democracias, a dúvida deve sempre favorecer ao imputado.
*Da Redação
Fotos: Max Leone
Edição: Fortunato Mauro