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Domésticas sobre declaração preconceituosa de Paulo Guedes: “Governo só abre a boca para falar besteira”

Sem nenhum constrangimento, ministro afirma que, quando o dólar estava a R$ 1,80, tinha “todo mundo indo pra Disneylândia, empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada”

“Se a gente tiver condições, vai aonde a gente quiser”, disse Antônia da Silva, 49, de Maceió. “Sendo empregada ou não, a pessoa vai com seu dinheiro digno, seu suor”, afirmou Marinalva de Souza, 51, de São Paulo. As duas são empregadas domésticas e respondem às declarações do ministro Paulo Guedes, da Economia, na tarde de ontem (12/2).

Em um evento privado, Guedes afirmou que, quando o dólar estava a R$ 1,80, tinha “todo mundo indo pra Disneylândia, empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada”. Ele também sugeriu que o brasileiro viaje pelo Brasil, vá “passear em Foz do Iguaçu, passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita”, e defendeu que o dólar alto é bom para as exportações.

“Ele viaja em aviões com o nosso dinheiro”

A fala não pegou bem entre trabalhadores do serviço doméstico. Para Antônia, um “representante do povo” deveria estimular as pessoas a terem “mais oportunidades”, não o contrário.

“Não tem por que ele falar nisso, a gente está no nosso direito [de viajar]. Se a empregada tem condições, pode ir para São Paulo, Disney, Europa, qualquer canto. Ela é quem escolhe, não ele”, declarou.

Ela diz que nunca saiu do Brasil e não tem vontade de fazer turismo fora do país. Mesmo assim, avalia que está mais difícil viajar para o exterior. “Eu não sei quanto é o dólar, nunca soube, mas vejo todo mundo reclamar. Só acho estranho que uma pessoa do governo ache isso bom para o povo”, afirmou.

Marinalva concorda. Para ela, um ministro “que vai para os Estados Unidos sempre” não deveria achar “que é um direito só dele”.

Sendo empregada ou não, a pessoa vai com seu dinheiro digno, seu suor. É ela quem escolhe porque foi ela quem pagou. E ele? Ele viaja nos aviões com o nosso dinheiro. A gente, não. A gente vai para onde quiser com o nosso dinheiro.

“Isso é coisa de quem acha doméstica menor”

Para a diarista Maria Aparecida Gomes, 38, de Maceió, a posição de Guedes é a de representantes que acreditam que “pessoas com menos condições não têm o mesmo direito de se divertir”.

A gente também precisa ter uma vida divertida. E se eu quiser ir [para fora do país] duas vezes? Isso [a declaração de Guedes] é coisa de quem acha empregada doméstica menor.

“Ele está representando uma visão da elite da sociedade, de classe alta. Ele não vê a doméstica como gente, vê como uma escrava que só tem direito de comer o resto”, criticou Marinalva.

Ela diz acreditar que, além de ter pouca oportunidade de viajar, pessoas mais pobres sofrem com falta de conhecimento, estimulada “pelas pessoas mais ricas”.

“Tenho muita amiga que não sabe nem pegar avião por falta de conhecimento. Viaja para o

Nordeste de ônibus, leva três dias e paga R$ 550, quando uma promoção de avião era R$ 250. Ele [Guedes] quer mudar isso? Para ele está bom

“, afirmou Marinalva.

“Tem empregada que, no almoço, vai comer lanche, em vez de entrar no [restaurante a] quilo. Paga mais caro por uma comida pior porque acha que restaurante é lugar da patroa, de gente rica. Para o ministro isso é ruim? Ele acha bom. Mas eu digo: a gente pode entrar onde quiser, é só ter conhecimento”, continua.

“Não está fácil viajar nem pelo Brasil”

Maria Aparecida nunca saiu do Brasil e questiona a sugestão de Guedes, de que os brasileiros viagem internamente. “Não está fácil nem viajar pelo Brasil, ela disse.

Moradora de Maceió, ela diz que não conhece a região Sudeste, por exemplo, e que a situação econômica a impede de viajar. “Eu quero ir, sim, só que é difícil. Ele [Guedes] deveria ajudar, não é?”, pergunta a diarista.

Também de Maceió, Antônia viajou de avião pela primeira vez no ano passado, quando foi conhecer a neta, no interior de São Paulo.

Por um familiar, para visitar parente, a gente viaja. Mas não é tão fácil. Falta tempo e não sobra dinheiro no dia a dia. A vida é difícil, não é? Não é fácil assim viajar.

“Governo só abre a boca para falar besteira”

Marinalva tem três filhos. Junto com o marido, que trabalha como porteiro em São Paulo, conseguiu enviar dois deles para o exterior. Um fez estágio nos Estados Unidos, outra, um curso na França. Agora, ela diz que isso é impossível.

“É melhor para as exportações? É melhor para ele, que é rico, é empresário. Agora, a classe média e a classe baixa não conseguem fazer essas coisas. Há uns dez anos, eu ganhava dinheiro que dava para colocar as crianças em aula de inglês. E hoje? Hoje quem tem filho pequeno não paga nem escola”, afirma.

Ela diz que tem uma série de colegas que não tem condições de pagar por uma educação melhor para os filhos e acabam sem estimular que eles façam faculdade.

“Ele [Guedes] fala em dólar, em um monte de coisa que eu nunca ouvi, mas é bom para as pessoas? As pessoas estão sem dinheiro, e ele fala uma besteira dessas. Anota aí: eu sou doméstica, mas tenho vergonha de toda a direção do governo que está aí, porque, quando abrem a boca, só falam besteira. Eu posso falar besteira —não sou pessoa pública, não represento ninguém. Eles representam o Brasil”, criticou Marinalva.

Fonte: UOL

Ministro Paulo Guedes, fui empregada doméstica e preciso te dizer uma coisa

Preta Rara: “Sei o que é ser impedida de usar o mesmo banheiro do patrão ou de se alimentar da comida que ela mesma faz para os seus senhores.”Imagem: Arquivo Pessoal

O Brasil ainda vive um ranço colonial. Por isso, nem me assusto com comentários como o de Paulo Guedes pontuando como negativa a época em que o dólar estava baixo e que empregadas domésticas iam à Disney. “Uma festa danada”, disse, sem nenhum constrangimento.

Ministro, o nosso lugar vem sendo construído há muitos séculos. Durante o período escravagista, os escravos domésticos eram tratados como se fossem da família. Hoje são as trabalhadoras domésticas que passam por situações que se assemelham no requinte de crueldade. Eu já fui empregada doméstica, e sei o que é ser impedida de usar o mesmo banheiro do patrão ou de se alimentar da comida que ela mesma faz para os seus senhores.

Me lembro bem dessa época de dólar baixo, ministro. Em que os pobres ascenderam economicamente por meio do acesso à educação. Ganhamos a possibilidade de ingressar nas universidades — para estudar, e não somente pra limpar as salas e os banheiros. As frases que eu mais escutava era: “Agora o filho da empregada está pegando a vaga do filho da patroa.” Como se o segundo tivesse mais direitos que o primeiro.

Paulo Guedes, se dependesse da nossa sagacidade de vencer, esse país seria outro, com um olhar humanizado para a classe trabalhadora que sustenta esse país nas costas e em pé.

Se as leis trabalhistas fossem de fato cumpridas, haveria mesmo muitas domésticas lotando os aeroportos com orelhinhas de Mickey, voltando de nossas férias na Disney.

Somos desumanizadas, tratadas como propriedade pelos patrões, que exigem excelência do nosso trabalho, mas que se recusam a pagar pelos nossos direitos como trabalhadores, que não reconhecem valor no nosso esforço. (Vale ressaltar que na criação da PEC das Domésticas, o único que votou contra foi o nosso atual presidente, seu chefe.)

Essa sua fala é triste, mas, de novo, não me surpreende. Esse é o pensamento de grande parte da elite brasileira, que quer deixar “cada um no seu devido lugar”, que “não se mistura”, que acha um absurdo um pobre e/ou preto ter o mesmo direito que eles ao lazer, à educação, à habitação – e, como você, fala sobre isso com a maior naturalidade, nem consegue se atentar ao absurdo dessas considerações.

O atual governo é o reflexo de uma sociedade escravagista que sempre teve o olhar nos moldes operantes do patrão e não do trabalhador.

No ano passado, lancei um livro chamado “Eu Empregada Doméstica, a senzala moderna é o quartinho da empregada”, trazendo à tona relatos anônimos de trabalhadoras domésticas de diversas regiões do Brasil. Trago a história de minha avó e mãe, que também foram domésticas, que demonstra como essa profissão é uma herança para as mulheres pretas nesse país. Mas levanto a cada manhã disposta a lutar para que, um dia, esse placar mude e possamos ter uma profissão humanizada e digna como outras.

Ser doméstica no Brasil é ser inferiorizada, invisível. Não é uma profissão almejada, desejada — é uma profissão das que não têm escolha.

Faço minhas as palavras da deputada Benedita da Silva e peço que respeite as trabalhadoras domésticas: se elas estão indo para a Disney e os filhos delas para a universidade foi porque os governos anteriores possibilitaram esse acesso que o seu governo racista e preconceituoso vem destruindo.

Eu, Preta Rara, artista, rapper, historiadora, mulher preta e gorda digo aos berros que esse governo não me representa. Resisto e existo todos os dias, na esperança de que todos os trabalhadores, domésticos ou não, possam planejar uma viagem a Disney, a Nova York ou a Paris, se assim quiserem.

Meu grande abraço a todas as trabalhadoras domésticas do Brasil.

Fonte: UOL – Mulher Sem Vergonha

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