A população brasileira ainda vai sentir impactos negativos das reformas que reduziram a proteção dos trabalhadores nos últimos anos. A renda está caindo, novas contratações já são feitas com salários menores do que em 2017 e empresas têm sido orientadas a demitirem empregados e contratarem pessoas como empresários individuais. “Foram quatro anos em que tivemos um movimento muito direcionado à flexibilização da legislação trabalhista e, ultimamente, à extinção da legislação trabalhista.”
A avaliação foi feita por Ronaldo Curado Fleury, em entrevista para o UOL. Esta quarta (21) é seu último dia como procurador-geral do Trabalho. Amanhã, seu sucessor, Alberto Bastos Balazeiro, assume a chefia do Ministério Público do Trabalho por, no mínimo, dois anos.
Tendo assumido em 2015 e sido reconduzido em 2017, Fleury atravessou o período de três presidentes da República – Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. E também do trâmite da Reforma Trabalhista, da Lei da Terceirização Ampla, da Reforma da Previdência, da Medida Provisória da “Liberdade Econômica” e de tentativas de enfraquecer o conceito de trabalho escravo.
Para ele, “a Reforma Trabalhista buscou todas as formas de fraudes que existiam e legalizou. Se fosse no Direito Penal, a partir de agora roubar seria permitido”.
“Uberização” Diz que falta proteção aos trabalhadores de aplicativos e que a “uberização” está longe de ser empreendedorismo e precisa ser regulamentada. “Ele é um trabalhador para uma empresa que lucra com esse trabalho.” Fleury lembra que a equidade no trabalho, um dos temas eleitorais do ano passado, ainda passa longe.
De acordo com dados do observatório do MPT sobre o tema, as mulheres negras recebem 55% do salário médio dos homens brancos. E 90% das pessoas trans são empurradas para a prostituição por absoluta falta de oportunidade.
Critica uma dos bordões do presidente Jair Bolsonaro, de que trabalhadores vão ter que escolher se querem menos direitos e emprego ou todos os direitos e desemprego. “Essa escolha não existe em lugar nenhum do mundo. Se você pegar a economia mais liberal nas relações de trabalho, os EUA, verá que a questão de saúde e segurança é extremamente rigorosa. Até porque as empresas têm receio. Se um trabalhador perder uma mão ou um braço, as indenizações podem levar a empresa a quebrar”, afirma.
Por fim, tratou do tema do momento: o nepotismo. “Não são poucos os casos em que prefeitos, ministros, governadores se utilizam de empresas terceirizadas para colocar parentes”, comentando casos que vêm sendo combatidos pelo órgão.
Leia os principais trechos da entrevista:
Como você vê esse período de turbulência do ponto de vista dos direitos trabalhistas?
Foram quatro anos em que tivemos um movimento muito direcionado à flexibilização da legislação trabalhista e, ultimamente, à extinção da legislação trabalhista. Nós temos que modernizá-la, mas protegendo o trabalhador. O Direito do Trabalho existe em função da desigualdade que há entre trabalhadores e empregadores, da mesma forma que o Direito do Consumidor existe por conta da diferença entre o consumidor e o fornecedor de serviços e produtos.
Com 13 milhões de desempregados e 4 milhões de desalentados, quando o trabalhador mais precisa da proteção do Estado, acontece exatamente o inverso, no sentido de desregulamentar. Fala-se até em uma relação de trabalho sem direitos – um contrato entre duas partes no qual uma tem indiscutivelmente o poder econômico, de manter a contratação, e à outra só resta o trabalho sem proteções trabalhistas, sociais e previdenciárias.
Essas reformas pelas quais passamos nos últimos anos foram um avanço ou um retrocesso?
Foram retrocesso, sem dúvida. Algumas regras implantadas existiam antes da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho]. Ou seja, nós tivemos um retrocesso de quase 80 anos. O governo e o Parlamento, que aprovou as regras da Reforma Trabalhista, trouxeram para nossa legislação os contratos que existem lá fora, mas sem a contraparte, que seriam as proteções. Por exemplo, o trabalho intermitente. Muito se falava que ele existe na Europa, nos Estados Unidos, na Austrália.
Mas nos EUA, um salário-hora mínimo médio está na faixa de 12 dólares. Enquanto, no Brasil, é um dólar. Se queremos trazer um normativo de fora, vamos trazer ele inteiro, não trazer apenas o que interessa a uma parte da relação, que é o que aconteceu aqui no Brasil. A Reforma Trabalhista buscou todas as formas de fraudes que existiam e legalizou. Mutatis mutandis (expressão do latim que significa algo como “feitas algumas alterações”), se fosse no Direito Penal, a partir de agora roubar seria permitido.
Por exemplo, “pejotização” sempre foi considerada uma fraude da relação de emprego. Você fantasia uma relação de prestação de serviços de natureza civil para mascarar um contrato de trabalho. Só que era usado em grandes contratos de trabalho, de expoentes do jornalismo, da medicina, da advocacia. Agora, está permitido. Vivemos num país capitalista, mas permite-se, hoje, uma empresa sem empregados. O capitalismo, que se funda no capital e no trabalho, vai ter capital e não vai ter trabalho.
Mas os defensores da Reforma Trabalhista dizem que isso continua uma fraude.
Mas não é o que eles escreveram. Nós apresentamos alternativas durante o processo da Reforma Trabalhista que impunham limitações, como uma proposta de emenda no sentido de que a “pejotização” só seria permitida naquelas situações em que o trabalho tivesse uma natureza própria de prestação do serviço de autônomo, como em alguns casos de médicos ou de alguns jornalistas.
Então, a população ainda vai sentir o impacto dessas mudanças nos últimos anos?
Ainda vai sentir o impacto. Os números do antigo Ministério do Trabalho, hoje Ministério da Economia, já mostram uma diminuição da renda do brasileiro. As novas contratações estão sendo por salários menores do que os que eram praticados em 2017. E muitas empresas têm sido orientadas por seus advogados a demitirem os trabalhadores e contratarem como “PJ”. Aproveito aqui para falar às empresas que, por favor, não façam isso, porque é uma fraude escancarada. Se notícias desse teor chegarem ao Ministério Público do Trabalho, certamente essas empresas serão investigadas porque é uma forma de mascarar relação de emprego. O que – ainda – é vedado à legislação.
O presidente da República, desde a campanha eleitoral do ano passado, repete insistentemente que os trabalhadores vão ter que escolher se querem menos direitos e emprego ou todos os direitos e desemprego. Essa dicotomia é real? Essa escolha está posta à mesa?
Essa escolha não existe em lugar nenhum do mundo. Se você pegar a economia mais liberal que existe nas relações de trabalho, que são os EUA, verá que a questão de saúde e segurança é extremamente rigorosa. Até porque as empresas têm receio. Se um trabalhador perder uma mão ou um braço, as indenizações lá podem levar a empresa a quebrar.
E isso vai contra o princípio básico da própria vida em sociedade que todas as relações pressupõem direitos e deveres. Como podemos falar em relações de trabalho onde só para uma parte não cabe direito? Ela só vai ter o dever de trabalhar? E o empregador, ele não vai poder exigir o trabalho de uma forma ou de outra? Ele precisa ter esse direito, afinal é a empresa dele, botou o dinheiro, quer ter um lucro. O empregador não vai ter o dever de manter o meio ambiente de trabalho saudável e seguro?
Temos cerca de sete meses da tragédia em Brumadinho (MG), ainda estamos contando os mortos, e já há um processo de revisão das Normas Regulamentadoras [37 normas com obrigações de trabalhadores e empregadores para evitar doenças e acidentes] em que o presidente da República fala da extinção de 90% delas. O MPT foi convidado pelo Ministério da Economia a participar do processo e não está havendo essa extinção de 90%. Algumas normas precisavam mesmo ser atualizadas, outras caíram em desuso. O que não pode ocorrer é uma fala como essa no sentido de que as empresas ficam liberadas para fazer o que quiserem.
Você falou de Brumadinho. Uma das questões polêmicas da Reforma Trabalhista é que ela limitou a indenização por danos morais a 50 salários contratuais da vítima. Em determinado momento, os advogados da Vale quiseram colocar isso na mesa de negociações sobre as indenizações da tragédia, mas o MPT conseguiu fechar um acordo [cerca de R$ 3,8 milhões para cada núcleo familiar de trabalhador]. Isso pode ajudar a mudar esse ponto da lei?
Tem uma frase no direito sobre a criação de leis que diz que quando a lei desconhece a realidade, a realidade se vinga e despreza a lei. E foi exatamente o caso. Essa previsão de limitação do dano moral individual – que é a dor da pessoa, o sofrimento causado à família daquela pessoa no caso da morte – a 50 vezes o salário da pessoa traz duas situações extremamente cruéis. A primeira é a divisão em castas: a dor de uma pessoa que ganha mais vale mais do que a dor de uma pessoa que ganha menos. Só há paralelo de legislação assim no mundo no Código de Hamurabi, datado de mais de 3.000 anos atrás, na Babilônia, o primeiro código reconhecido da humanidade. Lá dizia que havia uma indeniz.
Uma outra situação é a redução do ser humano por ser trabalhador. A indenização de quem não era trabalhador será definida pelo Código Civil e não pela lei trabalhista, considerando-se uma série de fatores. Na tragédia de Brumadinho, havia uma pousada muito famosa, no qual proprietário e turistas foram tragados pela lama. A Vale vai pagar a indenização dessas pessoas de acordo com o que for determinado pelo juiz, independentemente do salário que ganhavam. E havia um trabalhador que tinha um sítio e foi levado pela lama. A esposa dizia que ele estava de folga e a Vale que ele estava trabalhando. Por quê? Porque se estivesse trabalhando, a indenização estaria limitada. chegou a crueldade do legislador ao estabelecer essa limitação.
Um dos temas mais polêmicos hoje é a “uberização”, o trabalho por aplicativos. É possível enquadrar essas novas relações na CLT? Vai ser necessário criar uma nova regulação? Empresas afirmam que não há vínculos empregatícios na relação entre elas e os prestadores de serviços.
Já há decisões sobre isso na Espanha. Na Inglaterra, inclusive, uma decisão foi confirmada pelo tribunal recursal trabalhista. Durante a Reforma Trabalhista, esse tema foi uma das propostas que levamos à comissão especial na Câmara dos Deputados. Se o objetivo era falar de modernização das relações do trabalho, vamos discutir a forma mais moderna que existe, que é a “uberização”. Infelizmente, perdeu-se a oportunidade de tratar de um tema que hoje atinge cerca de 5 milhões de brasileiros, sem qualquer proteção, praticamente à margem da lei. Fizemos um grande estudo sobre essa temática, que aponta caminhos que, com a legislação que temos hoje, conseguimos regular essa prestação do trabalho. Ajuizamos uma ação civil pública contra a maior dessas empresas para que haja reconhecimento do vínculo de emprego nas hipóteses onde ele está presente.
O cidadão é um autônomo que se vê obrigado a um contrato de adesão. Não pode negociar nada, o contrato é aquilo, aquela forma de remuneração. E trabalha 12, 13, 14 horas no aplicativo. Não é empreendedorismo não, ele é um trabalhador para uma empresa que lucra com esse trabalho. Elas [as empresas] não recolhem à Previdência, impostos.
A MP da “Liberdade Econômica” propõe autorização para que esses trabalhadores de aplicativos possam se tornar Microempreendedores Individuais, contribuindo sobre um salário mínimo à Previdência.
Uma empresa do tamanho da Uber com várias empresas prestando serviço para ela, empresas individuais. É uma coisa meio maluca: eu sou empresário e tenho 1000 empresários trabalhando para mim e me dando lucro. E eu que vou impor todas as regras, não aceito que nada se negocie. Isso não existe em qualquer raciocínio de mundo civilizado. E já está caminhando para vans, fala-se em micro-ônibus. Daqui a pouco, no andar da carruagem, teremos linhas de ônibus feitas pela Uber. Prefiro nem cogitar, mas em um acidente em que morram 40 pessoas num ônibus tipo Uber, quem será o responsável? O motorista? Hoje, as empresas de transporte público são reguladas pelo governo.
Há um processo de desregulamentação do trabalho no Brasil?
Para onde a gente vai? Com a velocidade e a imprevisibilidade das mudanças, hoje qualquer tentativa de saber como será o mercado de trabalho é um mero chute. Em países como Coréia do Sul e Japão, extremamente evoluídos tecnologicamente e que têm relações de trabalho mais flexibilizadas, até hoje o que prevalece é a relação de emprego. Ainda é a busca pela sensação de pertencimento do empregado na empresa. Por um motivo muito simples: se o empregado tem essa sensação, ele tem a ideia de que faz parte da empresa e de sua lucratividade. Vai trabalhar melhor, vai lutar pela empresa, que vai ter mais lucro.
Uma questão presente na campanha eleitoral foi a da diversidade e da equidade no trabalho. O próprio presidente, durante as eleições, foi cobrado a dizer o que faria para garantir essa equidade. Como poderíamos avançar?
Lançamos o Observatório de Diversidade e da Igualdade de Oportunidade, em que coletamos e cruzamos dados públicos para fornecer informações que sirvam para que governo federal, de estados e de municípios possam fazer suas próprias políticas públicas. O Observatório mostra que as mulheres negras recebem 55% do salário médio dos homens brancos. Ou seja, estamos tratando de quase metade da remuneração pela mesma função. E elas têm uma expectativa de vida de 38 anos, semelhante à da época do mercantilismo quando o Brasil foi descoberto.
Recentemente fechamos um termo de cooperação com a Febraban para incentivar os bancos a oferecerem oportunidade a todos os que chamamos de grupos sociais minoritários – que, na verdade, se juntarmos todos, teremos maioria. Capacitação, acesso ao mercado. Estamos mostrando que diversidade dá lucro. Empresa que se preocupa em ter dentro de sua representação a diversidade compatível com a da nossa população, que representa efetivamente a nossa realidade. Fazemos a capacitação de pessoas trans, de moradores de rua, e as empresas estão buscando as pessoas para serem contratadas.
Fonte: UOL/Leonardo Sakamoto