Por Manuella Soares*
Nas últimas semanas, vivemos dias de muita angústia e dor ao assistirmos o noticiário de homens matando, mutilando e violando mulheres. Estamos nos dando conta, mais do que nunca, de que vivemos capturadas por uma estrutura misógina e patriarcal que perpetua a violência contra mulheres e também contra suas crianças. Esses assassinatos, praticados por parceiros ou ex-parceiros, não são eventos isolados, mas sim a expressão mais brutal de um sistema que molda desde cedo a submissão feminina como condição para a manutenção do capitalismo em sua fase neoliberal.
Desde a infância, meninas são educadas para servir como instrumentos na reprodução da vida, da força de trabalho que sustenta a vida social. Somos estruturalmente preparadas para garantir a sustentação de um modelo econômico que privilegia o homem enquanto sujeito social em todas as suas dimensões. Essa formação adestra as meninas para assumir as tarefas domésticas, o cuidado das crianças, adolescentes, idosos além dos próprios homens.
Enquanto nosso grito de socorro permanece sendo sistematicamente inviabilizado pela grande mídia (ainda que os casos mais aterrorizantes ou “espetaculares”, como uma mulher sendo arrastada em baixo de um carro pelo ex-namorado por um quilômetro tendo como resultado a amputação de suas pernas, venham à tona) permanecemos na função do cuidado dos homens, seja em casa ou mesmo nos ambientes de trabalho, como peça fundamental para a preservação dos privilégios masculinos dentro da família e da sociedade.
Não por acaso, João Antônio Miranda Tello Ramos Gonçalves matou a tiros a professora Allane de Souza Pedrotti Matos e a psicóloga Layse Costa Pinheiro nas instalações do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet), na Zona Norte do Rio. Joao mata as duas profissionais em seu ambiente de trabalho por não aceitar ser submetido hierarquicamente a mulheres. Essa tragédia é o retrato escancarado dessa cultura na qual os homens são criados para usufruírem todas as “possibilidades” que a sociedade capitalista os oferece, ainda que a possibilidade única para alguns seja trabalhar durante 16 horas em cima de uma bicicleta ou dentro de um automóvel, teleguiados por um aplicativo.
A ideologia permeada pela lógica biologizante da relação macho-fêmea, alicerçada em uma ciência de matriz positivista, eurocêntrica e colonial, atravessa esses corpos masculinos que se sentem autorizados a gerir (e até exterminar) os corpos que diferem dos seus. O adestramento do feminino e do masculino funciona como uma engrenagem do sistema patriarcal-capitalista, onde o corpo e a vida das mulheres são explorados e controlados pelos homens para garantir a continuidade do modelo econômico e social excludente e desigual. A naturalização dessa condição mantém as mulheres em um ciclo de opressão, onde a violência, tantas vezes mortal, torna-se uma consequência previsível. Enquanto isso, o Estado, longe de atuar como agente protetor, se omite ou até facilita a reprodução desse cenário violento ao não criminalizar discursos ideológicos de ódio que florescem nas redes sociais e na mídia digital. Movimentos misóginos como o red pill e incel (involuntary celibates) propagam a supremacia masculina, incentivando o ódio, a exclusão e a violência contra as mulheres, legitimando a opressão e a exclusão social numa extensão ampliada pela tecnociência e pelo capitalismo digital.
Epidemia de agressões
No Brasil, além do feminicídio, a violência doméstica configura uma epidemia que atinge a integridade física e mental das mulheres. As agressões são praticadas majoritariamente por homens em relações íntimas, com 33,4% das brasileiras acima de 16 anos sofrendo agressões físicas ou sexuais ao longo da vida e 43% incluindo abusos psicológicos, o que equivale a cerca de 27,6 milhões de vítimas. 1 A cada 15 segundos, uma mulher é agredida nesse país!
Números da morte
Entre 2013 e 2023, o Atlas da Violência 2025 registra 47.463 mulheres assassinadas no Brasil, com quase 4 mil homicídios femininos em 2023. Apenas parte deles é registrada formalmente como feminicídio (cerca de 37%).2
Mas as mulheres negras enfrentam taxas as mais altas taxas de violência e representam quase 70% das vítimas de feminicídio.3 A prevalência de violência por parceiro íntimo atinge o auge nas idades entre 25-34 anos (48,9%, com 24,8% sofrendo violência sexual) e 45-59 anos (44,2%, com 28,7% de agressões físicas).4
A casa que deveria ser nosso local mais seguro emerge como epicentro do terror, com 53,8% das violências mais graves ocorrendo dentro do próprio lar, por maridos, companheiros ou ex-parceiros, que controlam rotinas, negam recursos básicos e isolam suas vítimas.
Raízes patriarcais e ausência de políticas públicas
Essa matança sistemática reflete uma cultura machista enraizada, onde homens veem mulheres como propriedade, e sob constante ameaça: “se não for minha, não será de ninguém”. O quadro de tragédias anunciadas é reforçado por movimentos que combatem igualdade de gênero e extremistas que associam apoio à violência contra mulheres a ideologias radicais de direita.
Os dados do “Visível e Invisível”5 e Atlas da Violência expõem não apenas os números, mas denunciam a escalada do genocídio de gênero no Brasil. E o Estado brasileiro vem falhando ao cortar verbas para acolhimento, deixando milhões sem proteção efetiva, enquanto a subnotificação persiste: muitas vítimas não buscam polícia por medo ou descrédito. Somos o quinto país que mais mata mulheres no mundo!
Posicionamento masculino e reparação
É necessário exigirmos também uma responsabilização masculina coletiva (sim, homens que discordam dessa matança precisam se posicionar!) e investimentos urgentes em prevenção, justiça e educação para romper o ciclo de morte e terror imposto aos corpos femininos neste sistemas, onde o corpo e a vida das mulheres são explorados e controlados para garantir a continuidade do modelo econômico e social excludente e desigual.
A realidade grita na nossa cara com as mais de 1000 mulheres mortas em 2025 até novembro por homens e evidencia que não há separação entre violência patriarcal e lógica econômica capitalista: elas são partes indissociáveis de um mesmo sistema que explora corpos femininos, marginaliza vozes dissidentes e perpetua privilégios masculinos em todos os espaços sociais. Romper com essa estrutura exige não só políticas públicas eficazes, mas uma reforma profunda na cultura social, educacional e institucional que desconstrua o patriarcado em todas as suas formas e barreiras. Somente a desconstrução dessa matriz de dominação pode trazer possibilidades reais de segurança, liberdade e justiça para as mulheres brasileiras.
*Jornalista, mestre em Educação, Gestão e Difusão em Biociências e pós-graduanda em Fundamentos da Psicanálise, Teoria e Clínica
1 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, acessado em agenciapatriciagalvao.org, em 03/12/2025.
2 Atlas da Violência 2025, Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada, acessado em www.forumdeseguranca.com.br, em 03/12/2025.
3 Quem são as mulheres que o Brasil não protege?, Fundação Friedrich Ebert, 2025.
4 Atlas da Violência 2023, Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada e Fórum Brasileiro de Segurança Pública
5 Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, 5ª Edição, acessado em forumseguranca.org.br em 03/13/2025
Foto: Brasília (DF), 07/12/2025 – O Levante Mulheres Vivas realiza ato na área central de Brasília para denunciar o feminicídio e todas as formas de violência contra mulheres. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil