Mas “não podem e não devem aplicar leis que sejam inconstitucionais ou que violem os princípios fundamentais inseridos na Constituição”
Por José Nascimento Araújo Neto*
Alguns órgãos da imprensa vêm publicando artigos afirmando que os juízes do Trabalho, em ato de franca desobediência, não aplicariam a lei da Reforma Trabalhista. Ao fazerem tal afirmação, falseiam a verdade.
Ao tomarem posse, os juízes juram solenemente obedecer a Constituição e as leis da República. Esta sequência não é por acaso e nem a ordem dos fatores não altera o produto. As leis devem guardar coerência com a Constituição, vale dizer, não podem desrespeitá-la, contrariar seus princípios fundamentais ou colidir com suas regras. Mas e se uma lei ferir a Constituição? O juiz é obrigado a não aplicá-la, ou, em outras palavras, a paralisar sua eficácia (não vale a pena aqui, falar em controle difuso ou concentrado da constitucionalidade).
A lei da Reforma Trabalhista é extremamente polêmica e muitíssimo mal redigida. Contém, a meu ver, uma quantidade enorme de artigos de constitucionalidade duvidosíssima (para dizer o mínimo), os quais não podem ser automaticamente aplicados sob pena de se violar frontalmente a Carta Magna (como os juristas gostam de dizer).
Mas quem inventou isso? Montesquieu, em seu “Do espírito das leis”, já falava em freios e contrapesos como fator de equilíbrio entre os três poderes. Mas foram os americanos que, de forma genial, materializaram tal equilíbrio.
De que forma? Os EUA sempre tiveram um Executivo, um Legislativo e um Judiciário fortes. Mas só se tornaram realmente harmônicos e capazes de se controlarem um ao outro a partir de 1803 (todo calouro de Direito aprende isso no primeiro ano, ao estudar o famoso caso Marbury versus Madison), quando a Suprema Corte (o STF deles) decidiu que qualquer lei deveria ser objeto do chamado judicial review, ou revisão judicial, para verificação de sua constitucionalidade. Em outras palavras: o Legislativo, expressão, em tese, da vontade geral da Nação, editaria as leis. O Judiciário, guardião da Constituição, afirmaria se tal lei deve ou não ser aplicada se estiver conforme a Constituição e seus princípios fundamentais.
É por isso que não se pode afirmar, de forma leviana, que os juízes vão se “amotinar” em face da reforma. Ou muito menos se proclamar, como fez um colega, em artigo de O Globo, que “os juízes devem aplicar a lei”. Tal afirmação parece ser de uma obviedade digna do Conselheiro Acácio. Mas é vazia. Juízes não podem e não devem aplicar leis que sejam inconstitucionais ou que violem os princípios fundamentais inseridos na Constituição. Juízes não são a “boca inanimada da lei” (ainda, aqui, Montesquieu), nem seres infantilizados ou robotizados que, em nome de uma impossível neutralidade (que não se confunde com imparcialidade), apenas repitam, de forma acrítica, o texto legal em sua literalidade.
O que ocorreu foi o seguinte: a reforma não foi pensada por intelectuais liberais que pretendessem formular um projeto para o mundo do trabalho no Brasil, mas gestada às pressas pelas canetas de aluguel dos assessores jurídicos das entidades patronais. De forma precipitada e açodada, produziram um texto confuso, de má qualidade literária e pleno de virtuais inconstitucionalidades. Daí a razão da impossibilidade de sua aplicação plena e imediata.
Finalizando o textão, repito uma colega e, parafraseando Drummond, digo que a lei não poderá passar, em muitos aspectos, por que: “Havia uma Constituição no meio do caminha. No meio do caminho havia uma Constituição. Havia uma Constituição no meio do caminho. Nunca esquecerei desse acontecimento na vida das minhas retinas tão fatigadas”.
*José Nascimento Araújo Neto é juiz federal, desembargador e corregedor do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT1), Rio de Janeiro