Alto contraste Modo escuro A+ Aumentar fonte Aa Fonte original A- Diminuir fonte Linha guia Redefinir
Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no estado do Rio de Janeiro - Telefone: (21) 2215-2443

Judiciário no Brasil ainda serve ao patriarcado

Hoje, o FSMJD vai debater o acesso à justiça para população vulnerável. Atividade virtual começa às 19h30 e mostrará experiências do Sisejufe/RJ e Sintrajufe/RS.

No último dia 24 de março, o Sisejufe participou da terceira mesa do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia, um ciclo de debates preparatórios para o Fórum Social Mundial que acontecerá de 27 a 30 de abril, em Porto Alegre (RS). O tema da mesa foi a “Despatriarcalização da Justiça”.

Participaram como convidadas a diretora do Sisejufe-RJ e integrante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) Anny Figueiredo; Luciana Krumenauaer, diretora do Sintrajufe-RS; Alessandra Andrade, diretora do Sintrajufe-RS e integrante do coletivo Voz Materna; Sofia Cavedon, deputada estadual do Rio Grande do Sul; e Ana Paula Cusinato, diretora de Comunicação da CUT-DF e, também, integrante da MMM.

Primeira a falar, Anny Figueiredo destacou alguns relatos de uma pesquisa feita com servidoras do Judiciário que revelam os impactos do patriarcalismo da Justiça, tanto para as trabalhadoras da Justiça como também no atendimento ao público e a importância das mulheres servidoras para a transformação dessa realidade. “Esses relatos de quem constrói o Judiciário e, também, de quem é atendido por ele, apontam que é preciso reorganizar a Justiça para que faça sentido para as pessoas que dependem dela. É necessário trazer as experiências das mulheres para o centro da organização do Judiciário e despatriarcalizá-lo”, afirmou.

Anny questionou que tipo de Justiça poderia atender não apenas à produção, mas, também, à reprodução da vida. Para a dirigente sindical, o papel que recai sobre as mulheres, especialmente o do cuidado, em todos os sentidos, precisa ser dividido por todos. Anny citou um outro problema enfrentado pelas mulheres do Judiciário: o assédio sexual, relatado por tantas servidoras. “queremos uma justiça que rompa com essa estrutura que beneficia os homens em detrimento das mulheres e que ignora as realidades enfrentadas por elas. Queremos um serviço público atento ao cuidado e às demandas diárias de quem o constitui. Queremos julgamentos que prezem pelas perspectivas femininas e uma Justiça que seja parceira na promoção da nossa autonomia”, concluiu.

Luciana Krumenauaer falou sobre as consequências de a figura masculina ser historicamente posta no centro de todos os estudos realizados pelas instituições acadêmicas. Nas escolas, nas universidades, nas pesquisas acadêmicas, a ciência dominante também tem sido masculina. Para ela, esse quadro começa a mudar a partir das lutas do movimento feminista. “Quando a gente estuda, quem é que a gente estuda? A gente estuda o homem médio. Quantas vezes a gente se deparou com isso?” Luciana entende que o Judiciário tem um papel relevante no processo de desconstruir essa hegemonia do “homem médio” como parâmetro de Justiça e seria preciso diversificar o olhar do Judiciário para as especificidades de gênero, do que é Direito na perspectiva da mulher.

“Isso tem que ser colocado, que nós temos várias ações com esse protocolo de julgamento na perspectiva de gênero. Isso é muito importante e não é tão fácil, né? A vida das mulheres já não é tão fácil. Ela vai para uma audiência, aquela mulher, onde está aquela criança, ela vai ter que ir sozinha, então tu que ter um juiz, uma juíza, o promotor, as servidoras e servidores que estão atendendo tem que ter essa visão maior da diversidade”.

Luciana se apresenta como feminista bissexual e fez questão de destacar que é preciso que o Judiciário tenha uma representação diversa em toda a sua estrutura, que abarque as questões de gênero e raça e, também, um olhar sobre a diversidade de relacionamentos. “Acredito que a diversidade vai muito além. Então, gênero raça e, também, a diversidade de amores. Porque isso também influencia no olhar das pessoas (sobre a Justiça)”.

Judiciário ainda serve ao patriarcado

Alessandra Andrade falou a violência institucional a que mães são submetidas quando recorrem ao Judiciário em busca de justiça para agressões sofridas por elas e ou por seus filhos. “O judiciário serve ao patriarcado aos interesses e para proteger a posse dos patriarcas. As leis, de forma seletiva, beneficiam os agressores, em sua maioria homens, invisibilizando a fala das vítimas, em sua maioria mulheres e crianças”.

Luciana chamou atenção para o machismo que acaba sendo reproduzido até por mulheres no Poder Judiciário. “Apesar de muitas mulheres estarem chegando a posições de poder no judiciário, o que se observa é que muitas não se libertaram da cultura machista e operam com mãos mais pesadas do que homens.”

A diretora sindical também tocou no tema do feminicídio, denunciando o papel do Judiciário como um grande estimulador da violência doméstica quando atua no sentido da conciliação da mulher com seus agressores. “Na média, 80% das vítimas são mães, chegando a 89% em alguns estados. Sendo que grande parte tinha filhos com seus assassinos. O Judiciário é grande estimulador dessas mortes quando não acolhe as denúncias, quando manda as mulheres se reconciliarem com seus agressores pelo bem da família margarina, quando menospreza relatos de violência tipificando-os como conflito familiar”.

Sofia Cavedon trouxe para o debate a importância de uma educação não sexista, que previna a violência contra mulheres, como parte da formação escolar. A deputada falou sobre o papel histórico da mulher na reprodução da sociedade capitalista. Citando a socióloga italiana Silvia Federici, relatou sobre como surgiram as primeiras leis, que foram feitas justamente para subordinar a mulher aos interesses da acumulação do capital, na medida em que o Estado capitalista passou a controlar o espaço de trabalho, o corpo e a reprodução da mulher.

“De todos os pontos de vista, afirma Silvia, social econômico cultural e político, a caça as bruxas foi um momento decisivo na vida das mulheres, visto que a caças às bruxas destruiu todo um universo de práticas femininas, de relações coletivas, de sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista, assim como a condição necessária para sua resistência na luta contra o feudalismo.”

Primeiro código penal foi criado para perseguir as mulher

Paola Bettamio falou sobre como as bases do Direito Penal foram constituídas para criminalizar as mulheres apenas por serem mulheres. “Desde a idade média, as mulheres são criminalizadas a partir das concepções morais. O que aconteceu na idade média com a caça às bruxas é um marco histórico, não só de criminalização do gênero feminino, mas também um enquadramento teórico que vai dar fundamento para a criação de uma primeira codificação dentro do processo penal”.

Paola citou o livro Martelo das Feiticeiras que traz a primeira estrutura de código penal que se tem conhecimento – Malleus Maleficarum – e que foi amplamente usada durante toda a inquisição na Europa e nas colônias europeias. Todo esse aparato para manter sobre forte controle o corpo e o comportamento social da mulher que deveria ser obediente ao patriarca ou, mais diretamente, ao Estado.

“Se a gente pensa hoje nessa trajetória histórica, a gente passa a entender que as regras do patriarcado também, de alguma forma, foram as regras penais de controle pela lei. Uma coisa que eu costumo falar muito é sobre esse resquício de violência doméstica que vivemos até hoje no Brasil. Durante o período colonial, se autorizava legalmente o marido a matar a mulher caso a encontrasse estado de adultério. Isso foi um artigo que perdurou durante anos no Brasil”. O contrário, obviamente, não era permitido.
Para a pesquisadora, as servidoras das instituições judiciárias precisam se apropriar do sistema e lutar por uma Justiça que promova a igualdade de gênero e rompa com a divisão sexual do trabalho.

Encerrando, Ana Paula Cusinato pontuou para a necessidade de um debate transversal que traga para o centro o debate sobre a mulher no contexto de classe. ‘Nós precisamos nos colocar como mãe mulheres trabalhadoras. E mulheres antirracistas, anticapacitistas, LGBT, enfim, como mulheres que debatem o meio ambiente e como ativistas de direitos. Mas, em todas essas falas, precisamos nos reconhecer como parte trabalhadora. Penso que esse hoje é o nosso maior desafio”.

 

Manuella Soares, jornalista, especial para o Sisejufe.

Últimas Notícias