Apesar da Língua Brasileira de Sinais (Libras) ter sido oficialmente reconhecida em 2002 como um meio legal de comunicação e expressão, grande parte das pessoas surdas ou com deficiência auditiva do Brasil não têm acesso a informações corretas sobre o novo coronavírus e suas medidas de prevenção. Essa demografia, também impactada pelas medidas de distanciamento social para evitar o contágio, conta com poucos canais de comunicação dispostos a repassar adequadamente as noticias sobre a pandemia. Por conta disso, informações básicas como a forma correta de lavar as mãos, a importância do isolamento e outras medidas não chegam até a comunidade.
Segundo o IBGE de 2010, 9,7 milhões de brasileiros são surdos ou possuem deficiência auditiva. Ao contrário do que se pode imaginar, nem todos os surdos dominam a língua portuguesa. A língua de sinais possui morfologia, sintaxe e regras gramaticais próprias — o que a qualifica não como muleta da língua falada, mas como um idioma completamente independente. Por conta disso, nem sempre um texto escrito será o suficiente para os surdos, muitos dos quais têm a Libras como língua materna. É como se uma pessoa ouvinte cuja língua materna é o português tentasse ler um texto em inglês sem dominar o idioma. Assim, reportagens escritas ou o closed caption da televisão não contemplam todo surdo no Brasil.
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“Um número expressivo de surdos brasileiros não falam português, e eles vão receber essas informações [sobre o Sars-Cov-2] por meio da própria família, que trarão informações picadas, ou por meio de outros surdos”, explica Lúcio Cruz Silveira Amorim, professor do núcleo de Libras e Educação Especial da Faculdade de Educação na UFU (Universidade Federal de Uberlândia). “Recebi as notícias pela internet, mas não entendi muito bem o que estava sendo dito. Precisei ler dez vezes, e mesmo depois de ler não achei que fosse uma coisa relevante.”
Amorim, como muitos outros surdos da comunidade que leem o português escrito, se dispõe a esclarecer dúvidas sobre termos médicos e outras questões surgidas com a pandemia, mas alerta para o grande volume de conteúdos não confiáveis que chegam até a comunidade. “São informações enviesadas, erradas e achismos sobre uma questão muito grave”, explica.
Pronunciamentos oficiais nem sempre são compreensíveis
Nos últimos anos, se tornou obrigatório: todo pronunciamento oficial do poder público precisa de tradução simultânea em Libras. Para os ouvintes, a mera presença de um intérprete parece resolver a questão, porém, para os surdos, nem sempre essa presença é aproveitada como deveria. Em diversas ocasiões — como nas coletivas de imprensa do governador de São Paulo, João Doria — é possível perceber que há um intérprete presente. No entanto, poucas emissoras brasileiras (exceto as obrigadas a isso, por serem estatais) se preocupam em manter o intérprete enquadrado em cena para transmitir também em língua de sinais. No fim das contas, os surdos consideram que a obrigatoriedade acaba sendo tratada como “perfumaria”.
Na semana passada, o governador do Espírito Santo fez um pronunciamento por meio da sua página oficial do Facebook para explicar as medidas tomadas no estado em relação ao novo coronavírus. Tinha a seu lado uma intérprete de Libras que, segundo muitos internautas surdos, não estava traduzindo corretamente e, ao ser questionada, alegou estar fazendo um trabalho voluntário.
Também pelo Facebook, Fernando Parente Jr, presidente da Febrapils (Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-Intérpretes de Língua de Sinais) criticou o desempenho da suposta intérprete.
Na posse do presidente da República em janeiro de 2019, a primeira-dama Michelle Bolsonaro discursou em Libras para chamar atenção aos direitos dos surdos e de pessoas com deficiência auditiva. A própria primeira-dama atuava como intérprete nos cultos ministrados no Ministério dos Surdos e Mudos da Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Carro chefe das atividades da primeira-dama, a questão da inclusão das Libras no país pouco avançou para incluir a comunidade surda no acesso às informações de interesse público.
Para Thyago de Souza Santos, tradutor intérprete de Língua de Sinais/Português TILSP, a abordagem do Governo Federal ao tratar a profissão como voluntariado complica a convocação de profissionais com proficiência e capacitados na língua de sinais, como no caso do Espírito Santo. “Ano passado, uma campanha feita pelo governo federal incentivou o trabalho voluntário de intérpretes de Libras, então é como se fôssemos missionários de igreja. Nossa trabalho não é visto como profissão, mas como assistencialismo. Nenhum desses veículos de informação destina verbas para acessibilidade, porque você encontra alguém disposto a fazer o trabalho de forma voluntária. Por amor, digamos assim”, explica. A falta de um órgão fiscalizador do trabalho dos intérpretes também contribui para que a tradução do português para a língua de sinais não seja padronizada em todos os pronunciamentos e meios de comunicação.
A falta de qualidade nas interpretações não para por aí. “Algumas emissoras disponibilizaram janelas com interpretação em Libras, mas não consegui entender nada do que estava sendo traduzido. Eram péssimos profissionais. Entendi melhor o que estava sendo dito em língua portuguesa”, conta Heloise Gripp, professora de Libras na Faculdade de Libras Letras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Gripp pertence à segunda geração de uma família de surdos e possui proficiência em língua portuguesa e língua de sinais.
Por conta disso, é ela que mantém a família informada sobre as precauções para se prevenir da covid-19. Para a professora, muitas vezes os intérpretes escolhidos não possuem um nível equivalente de formação e proficiência e, assim, as informações se perdem. “Como em várias ocasiões é necessário um revezamento entre intérpretes, às vezes você está vendo um profissional fazer uma interpretação muito boa e em seguida entra outro, de um nível diferente. Isso faz com que se perca o que está sendo passado”, conta.
“Os surdos ficam aquém das informações que são passadas”
Os desencontros de medidas e informações entre Governo Federal e Ministério da Saúde, somadas à enxurrada de informações não confiáveis compartilhadas pelas redes sociais, são suficientes para confundir muitos ouvintes. No caso da comunidade surda, os pronunciamentos oficiais, mesmo com falhas de tradução, são um dos poucos meios de obter informações.
Claudia Hayakawa, guia turística, costuma checar a veracidade das notícias usando a internet, mas percebeu que muitos surdos idosos minimizaram o impacto do Sars-Cov-2 no Brasil após o pronunciamento presidencial feito no dia 24 de março, quando Bolsonaro disse que o país deveria voltar ao normal o mais rápido possível. “As pessoas surdas têm ficado em casa, mas isso acabou causando uma questão séria na comunidade, porque alguns passaram a descartar as recomendações contra o contágio. Alguns surdos também têm saído por conta do trabalho, porque não foram dispensados”, conta Hayawaka. “É muito importante para nós ter acesso linguístico e medidas para favorecer esse acesso. Sem isso, sempre ficaremos aquém das informações não só no caso das notícias, mas em todos os aspectos”, afirma.
Como nem todo surdo consegue entender toda a terminologia médica usada para falar da covid-19, muitos ainda não adotaram o isolamento porque simplesmente não lhes foi explicada a importância desta medida. “A maioria dos surdos nasce em famílias de ouvintes, que não aprendem língua de sinais. Por isso, muitas crianças surdas não ficam sabendo o motivo de não estarem indo para a escola. Alguns ficam em casa, mas outros não fazem quarentena por não entenderem o que está acontecendo”, reclama Lucio Amorim.
Ruídos
O acesso prejudicado a informações sobre saúde não reflete apenas uma falta de iniciativa do poder público em valorizar intérpretes e pensar meios eficazes de traduzir a língua portuguesa para a Libras, mas também evidencia problemas na própria educação brasileira ao atender os alunos surdos. Para Nubia Garcia Vianna, fonoaudióloga, sanitarista, doutora em Saúde Pública e professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), isso dificulta o aprendizado da língua portuguesa, seja falada ou escrita, pelos surdos. A negligência também prejudica o aprendizado de Libras das crianças surdas por falta de contato prematuro com outros membros da comunidade.
A consequência da falta de comunicação em Libras é uma ausência de informações básicas, especialmente no tocante à saúde, muito antes da chegada da pandemia ao Brasil. “Infelizmente, os surdos não têm acesso às coisas mais simples e básicas da nossa vida diária. Se, para nós, é óbvio que usar camisinha previne infecções sexualmente transmissíveis, não é para todo surdo que isso está claro, porque faltam informações. Essa precariedade vai das coisas mais simples às mais complexas. Quando a pandemia começou a estourar no Brasil, tive acesso a vídeos gravados por surdos falando que não deveríamos nos preocupar. A informação vem truncada, e isso causa um grande ruído na comunicação”, aponta Vianna.
A ajuda vem da própria comunidade
Com um intérprete, Vianna ajudou a produzir um vídeo em Libras para passar informações e cuidados sobre o novo coronavírus publicado na página de Pedro Tourinho, médico sanitarista e vereador de Campinas eleito pelo PT (Partido dos Trabalhadores). Algumas associações também se dispuseram a tentar criar canais seguros para a divulgação de dados corretos sobre a pandemia. Nas redes sociais e em grupos fechados, surdos com profiência em português e intérpretes estão gravando por conta própria vídeos com reportagens traduzidas para língua de sinais. Um desses grupos, o Central Libras/Coronavírus, conta com mais de sete mil membros.
Fonte: Marie Declercq – Do TAB