Por Juarez Guimarães*
Com o artigo “O PSDB virou um partido golpista?”, publicado nesta Carta Maior, em dezembro de 2014, começou-se a se constituir um campo de previsão sobre a crise da democracia brasileira. Um campo de previsão, em uma conjuntura marcada exatamente pela ruptura de padrões políticos já instáveis, necessariamente inclui uma indeterminação mais larga que um tempo político mais institucionalizado mas visa principalmente criar uma narrativa e um sentido, uma bússola e um norte para os acontecimentos. Para ser capaz disso, este campo de previsão precisa se inscrever em temporalidades e horizontes internacionais mais largos, centralizar-se conceitualmente na nova ordem do conflito de poder, ser capaz de analisar a força objetiva das vontades políticas que organizam a disputa e pensá-la nas condições subjetivas de classe que as enquadram.
De 2014 para cá, foram seis os momentos decisivos de atualização e construção deste campo de previsão, é claro, em diálogo sempre com a inteligência de esquerda da democracia brasileira e internacional. O primeiro foi exatamente o artigo citado: ao identificar a mudança de natureza do PSDB, de um partido de oposição neoliberal a um partido golpista animado de um novo programa neoliberal radical, previa, pela força política deste partido, um tempo de aguda desestabilização do segundo mandato de Dilma Roussef. Em um outro artigo intitulado “Um escândalo chamado Armínio Fraga”, publicado também em dezembro na Carta Maior, correlacionava-se esta mudança de natureza do PSDB a uma mudança de sua base orgânica: “da avenida Paulista a Wall Street”, afirmava-se, isto é, da expressão dos interesses do capital financeiro nacional e internacional, a uma expressão mais em sintonia e atualizada com o capital financeiro internacional. Mas ainda não havia uma consciência plena do que passou-se a chamar depois de “terceira fase do neoliberalismo”, isto é, de uma nova fase após a crise internacional de 2008, na qual as rupturas dos atores políticos neoliberais com a democracia iriam ao centro.
Um terceiro momento valeu com uma sirene de alerta: o artigo “O risco de se chegar atrasado ao golpe”, publicado em 25 de março de 2015 na Carta Maior, aliava o impacto das grandes manifestações da direita que tomaram as ruas com a impressionante e rápida deterioração da popularidade do segundo governo Dilma, após as suas escolhas principalmente na área da economia. Ao final, o artigo propunha a formação de uma frente em defesa da democracia e condicionava a possibilidade de um sucesso de tal iniciativa política a uma mudança radical na orientação neoliberal da política econômica, a cargo de Joaquim Levy. Havia uma vontade política já avançada em sua organização de derrubar o governo Dilma, a partir de um programa neoliberal radical, e seria ilusão busca uma repactuação com ela.
Um quarto artigo, “Nove teses sobre a contra-revolução neoliberal”, publicado em 12 de maio de 2016 na Carta Maior, procurava criar um conceito histórico de enquadramento do sentido do golpe, como sendo o projeto de criar no Brasil, a partir da destruição da Constituição de 1988, um Estado neoliberal no Brasil. O programa do golpe previa a destruição de décadas de direito acumulados e décadas de destruição de direitos no futuro. O Estado nacional seria destruído em seus fundamentos de soberania e as instituições da democracia perderiam qualquer relação com um fundamento de soberania popular, com foco na violência contra os negros, as mulheres, os pobres no campo.. Autocracia e capitalismo, atualizando Florestan Fernandes de “A revolução burguesa no Brasil”.
Um quinto ensaio, “A dinâmica da contra-revolução neoliberal”, publicado na revista Democracia Socialista, em meados do primeiro semestre de 2017, identificava um início sólido de virada na formação da opinião pública diante do golpe, com uma dinâmica clara do aprofundamento de sua impopularidade e um certo início de retomada da popularidade do PT e, principalmente, da liderança política de Lula. Ao seu final, fazia-se a previsão, seguindo o conceito maquiaveliano da conjunção de coerção e consenso na formação do poder político: “É esta distância entre o poder da coalizão golpista nas instituições e nos oligopólios de mídia e a sua base de legitimação e popularidade que faz prever como provável uma espécie de 1968 na dinâmica da contra-revolução neoliberal: isto é, um golpe dentro do golpe”.
O sexto momento, certamente o que alcançou maior publicidade, foi em julho de 2017, em uma entrevista ao editor do Sul 21, Marco Weisheimer, depois replicado em muitos outros sites, com o título “Nada mais desmobilizador do que 2018”. Lá se desenvolvia, enfim, uma inscrição do golpe no Brasil em uma temporalidade e dimensão internacional mais larga, de uma época mundial crescentemente dominada pelo neoliberalismo, em diálogo com uma nova literatura internacional e o brilhante livro de Wanderley Guilherme dos Santos, “A democracia impedida. O Brasil no século XXI”. E criticava a ilusão de que todas as expectativas deveriam ser canalizadas para as eleições presidenciais de 2018, a serem realizadas em regime de normalidade democrática. Entre 2017 e outubro de 2018, haveria “um abismo” e se não tivéssemos consciência dele, poderíamos ser por ele tragados.
Neste ensaio, procura-se desvendar este “abismo” (que , aliás, foi parar em um artigo no New York Times de 23 de janeiro de 2018, “Brazil´s democracy pushed to the abyss”, de autoria de Mark Weisbrot, o qual afirmava que a condenação de Lula pelo TRF-4 conduzia a democracia brasileira a um abismo em 2018), através do conceito de “ditadura neoliberal”.
Neoliberalismo e fim da democracia
Já há uma ampla literatura internacional, em geral desconhecida pela esquerda brasileira e muito pouco refletida na própria ciência política do país, dedicada a diagnosticar o antagonismo entre ordens neoliberais e democracias. Um autor que tem trabalhado com centralidade este idéia é, por exemplo, Ian Bruff, professor da Universidade de Manchester, embora não tenha claramente uma formação mais profunda em filosofia política. Em seu ensaio “Authoritarian Neoliberalism and the myth of free markets” (“O autoritarismo neoliberal e o mito dos mercados livres”), publicado na revista Roar número 4, ele se centra na crítica a uma certa retórica da esquerda que associa neoliberalismo e mercados livres ou desregulados. Ao contrário, o neoliberalismo desde os seus fundadores, é um projeto de poder autoritário, coercitivo, não democrático e desigual de reorganização da sociedade a partir de seus parâmetros de interesses.
Ele anota em outro ensaio, “Neoliberalism and authoritarianism” ( “ Neoliberalismo e autoritarianismo”) que aquele que é considerado o principal autor do neoliberalismo, Friedrich Hayeck, já argumentava nos anos 70 que “as instituições políticas dominantes no mundo Ocidental necessariamente produziriam uma deriva ( em direção à destruição do mercado) que poderia apenas ser detida ou prevenida pela mudança destas instituições”. Seria necessário restringir severamente o poder dos parlamentos eleitos em favor de instituições de salva-guarda. Estas alva-guardas tornariam possível ao executivo forçar a obediência às regras gerais que deveriam ser aplicadas a todos: “ A raiz do mal é assim o poder ilimitado do legislativo nas modernas democracias, um poder que a maioria vai ser constantemente forçada a usar de modo a que a maior parte de seus membros não deseja. O que chamamos a vontade da maioria é assim na realidade um artifício das instituições existentes, e particularmente a onipotência do poder legislativo, o qual através dos mecanismos do processo político vai ser dirigido a coisas que a maioria de seus membros não desejam realmente, simplesmente porque não existem limites formais aos seus poderes” ( “Economic, freedom and representative government, Institute of Economics Affairs, Fourth Winscott memorial lecture, Occasional papers”, número 39, 1973).
De modo equilibrado, Ian Bruff procura evidenciar que esta dinâmica política do neoliberalismo em direção a um Estado forte e mais autoritário convive com uma maior fragilidade e com uma forte deslegitimação. Isto é, ele pode e deve ser enfrentado e, eventualmente vencido, no terreno da luta democrática, que seja capaz de organizar e legitimar sua força política em maiorias.
Uma ditadura neoliberal?
A análise de que o impeachment, sem respaldo constitucional, da presidenta Dilma em 2016 era um golpe parlamentar foi fixado na ciência política brasileira através do professor Wanderley Guilherme dos Santos, identificando a sua diferença e novidade em relação a um golpe militar.
A defesa de que, a partir daí, entramos em um regime de exceção foi feita imediatamente por Luís Felipe Miguel, a partir do comprometimento do pretenso guardião constitucional – o STF – com o próprio golpe. Devemos a toda uma rica e plural inteligência jurídica democrática brasileira a demonstração de que as decisões judiciais, em um intenso e cada vez maior processo de judicialização da política, passavam a operar fora do devido processo legal, em meio a jurisprudências excepcionais, seletivamente orientadas. O professor Fábio Wanderley Reis, chama a atenção de forma reiterada, para a gravidade da decisão do pleno do TRF-4 tomada em 2017 que ,apenas com um voto contrário, legitimou a jurisprudência de exceção como apropriada ao atual contexto brasileiro. O silêncio, então, do STF a este escândalo confirmava a sua adesão ao regime de exceção em que vivemos.
André Singer já havia postulado, desde 2017, que o fato decisivo para caracterizar um rompimento definitivo com a democracia seria a condenação e o impedimento da candidatura de Lula às eleições presidenciais de 2018. Certamente o colega da USP mirava na definição liberal minimalista de democracia, relacionado-a a alguns critérios básicos de possibilidade de alternância de governo e à manutenção das regras do jogo. Com a antecipação e a confirmação da condenação de Lula pelo TRF4, com penas aumentadas, e a decisão sobre uma sua possível prisão imediata, agravada agora com a vontade manifesta pelo atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral de antecipar a decisão sobre a interdição da candidatura de Lula à presidência, uma segunda fase do golpe, se diz, estaria em andamento.
Mas é próprio da condição do abismo, não ter um fundo certo. Agora, com a decisão Temer- Globo, que conta com o apoio de Alckmin, de intervenção militar no Rio e a formação de um Ministério Extraordinário da Segurança Pública, é o poder militar que vem ao centro da dinâmica golpista. Para onde vamos, o que está mesmo se armando?
O conceito que se propõe de ditadura neoliberal visa exatamente entender o que está acontecendo. Chamamos de ditadura neoliberal um poder que não está disposto a se submeter à imprevisibilidade da disputa democrática, que não está apenas fora da democracia, mas contra a democracia. Se este poder político conseguir se organizar para vencer eleições presidenciais e para o Congresso Nacional em uma situação de forte ou quase certa previsão de vitória, ele as instrumentalizará pelos meios que forem necessários. Se não houver esta possibilidade, este poder agirá com uma violência judicial e repressiva cada vez maior para garantir, de forma inequívoca, que o programa neoliberal radical que organiza o golpe continuará a ser implementado. Não faz parte da coalizão golpista a imaginação da possibilidade de que a esquerda vença as eleições em 2018.
Uma ditadura neoliberal certamente não é uma ditadura militar, embora deva se apoiar cada vez mais nos poderes repressivos do Estado. Ela pode conviver com eleições, desde que forças anti-neoliberais não possam vencer e governar. A construção de leis e instituições que escapem ao controle democrático é, neste sentido, fundamental. A organização de uma nova capacidade repressiva é também decisiva, implicando certamente em fortes ataques aos mínimos padrões democráticos de direitos humanos.
Uma ditadura neoliberal se diferencia de uma “democracia de baixa intensidade”, como gosta de formular Boaventura dos Santos, identificando uma dinâmica elitista das democracias liberais contemporâneas de restringirem até as mínimas arenas democráticas, exatamente por esta disposição de liquidar a disputa democrática de governos. É preciso compreender que a contra-revolução neoliberal é um projeto de Estado, isto é, de longo prazo.
Um caminho democrático
Se o abismo é a ditadura neoliberal, a dinâmica abismal é – em um contexto cada vez maior de deslegitimação do golpe como tem se procurado analisar na série “A narrativa golpista e os caminhos para vencê-la”, em co-autoria com Eliara Santana – aquela que faz uso cada vez mais intenso da violência judicial e da repressão. A tentativa agora de casar agenda da segurança pública com a militarização é claramente uma busca também de relegitimação de uma narrativa que já não forma maioria na sociedade brasileira e é vista com desconfiança até mesmo por parte da base eleitoral da coalizão golpista.
A partir desta análise, entende-se a veemência e o acerto da posição do professor Wanderley Guilherme dos Santos, no sentido de que no momento em que a coalizão golpista mais agride a democracia é hora cada vez mais de defendê-la. Em 1968, forças majoritárias de esquerda reagiram ao aprofundamento da ditadura militar, pelo caminho então legítimo mas sem legitimidade construída, das armas. A disposição de não abandonar o terreno da disputa eleitoral, de disputá-la mesmo em meio à violência e arbitrariedade judicial, mais do que uma estratégia é um fundamento de valor: a esquerda brasileira enfrenta o golpe no terreno da formação da vontade das maiorias a partir de seu programa democrático-popular. Esta disputa eleitoral integra a disputa do poder comunicativo, procurando derrotar a narrativa golpista em crise a partir de uma narrativa alternativa do golpe. É fundamental, neste sentido, o Encontro Nacional de Comunicação convocada para abril deste ano.
Esta posição acertada deveria ser combinada, em primeiro lugar, com uma larga disposição de unidade das forças anti-golpistas. Fixado o terreno da unidade – a luta contra o golpe e seu programa neoliberal, inclusive com o compromisso da realização de um plebiscito revogatório de suas leis e medidas – não há razão para a divisão das esquerdas em um momento tão decisivo. Sem ela, não se fará a resistência e não se construirá um caminho de superação do golpe. É fundamental, neste sentido, a iniciativa das Fundações do PT, PC do B, PSOL e PDT de construírem uma plataforma comum.
Por fim, a dinâmica abismal acima descrita, de crescente violência judicial e agora de militarização, só poderá ser vencida com um padrão de mobilização e de organização social muito maior do que até agora a esquerda brasileira, em seu pluralismo, foi capaz de demonstrar. A organização de comitês populares e a proposta que está sendo chamada de Congresso do Povo Brasileiro, a ser realizado em meados deste ano, é fundamental.
As ruas já deram a faixa de campeão ao histórico enredo da Tuiuti, que traz os temas da liberdade e da escravidão para o centro da disputa de valores e futuros do Brasil. Para que o carnaval em 2018 não termine em quarta-feira de cinzas, será necessário encontrar os caminhos para vencer a ditadura neoliberal.
*Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Artigo publicado originalmente no Portal Carta Maior