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Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no estado do Rio de Janeiro - Telefone: (21) 2215-2443

A Tragédia da Pandemia

O serviço público está na linha de frente no combate à maior crise humanitária da nossa época

A Tragédia da Pandemia, SISEJUFE
Crédito fotos: Thales Renato Ferreira/ Mídia Ninja

Por Henri Figueiredo*

Na véspera do Dia Mundial da Saúde, 7 de abril, o Brasil registrou mais um recorde macabro de mortes pela covid-19: 4.211 em 24 horas, elevando para 337.364 óbitos notificados desde o início da pandemia. Neste mesmo dia, apenas 9,81% da população de 211 milhões de brasileiros e brasileiras já havia tomado ao menos uma dose da vacina contra o novo coronavírus. A maior tragédia humanitária dos nossos tempos já vitimou quase 3 milhões de pessoas por todo o mundo e o Brasil é, hoje, o epicentro da pandemia. Neste quadro trágico, há cidadãos e cidadãs que estão fora do isolamento social não porque negam a situação, mas porque formam a linha de frente no combate à doença.

A Tragédia da Pandemia, SISEJUFE
Crédito fotos: Thales Renato Ferreira/ Mídia Ninja

No senso comum, quando se fala nos trabalhadores e trabalhadoras “da linha frente de combate à pandemia” imagina-se, imediatamente, médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. No entanto, também estão na linha de frente uma série de outras categorias, a começar pelas equipes de limpeza das instituições de saúde, os servidores e servidoras da assistência social, educação, segurança pública, sistema prisional, judiciário, limpeza pública, coleta de resíduos sólidos, funerárias e cemitérios, água e saneamento, energia e também o setor de tributação – pois em diversos países, essas categorias trabalham para sustentar as medidas e os decretos de distanciamento social.

Além da inépcia do governo federal, está se criando um consenso entre especialistas da área de saúde e entre representações de classe, especialmente as dos servidores públicos, que as medidas de austeridade fiscal que vêm sendo aprovadas e implementadas, desde 2016, causaram danos a programas sociais e aumentaram a vulnerabilidade dos brasileiros à pandemia. Essa é, por exemplo, a conclusão da pesquisa “O Brasil com baixa imunidade”, publicada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e baseada em números do Orçamento Geral da União entre 2014 e 2019.

De acordo com o servidor da Receita Federal Dão Real Pereira dos Santos, 60 anos, que é vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal e membro do Coletivo Auditores Fiscais pela Democracia, a PEC do Teto de Gastos (Emenda Constitucional 95) nunca foi necessária. “O país nunca precisou congelar gastos. Era uma oportunidade, em 2016, de manter o Estado de Bem Estar Social, diante da crise, impondo medidas de aumentar tributos sobre os mais ricos. Por exemplo, revogando a isenção sobre lucros e dividendos, que foi criada em 1995. Os oportunistas aproveitaram a crise e resolveram inviabilizar a continuidade do Estado de Bem Estar Social. Então, o congelamento dos gastos nada mais fez do que interromper um processo de direitos sociais que começou em 1988”, explica Dão Real.

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Dão Real Pereira dos Santos, vice-presidente do Instituto de Justiça Fiscal, avalia que o congelamento dos gastos agrava o cenário de crise atual

“O que nós vemos hoje acontecer na saúde pública é consequência direta disso. Era inevitável. Diante da calamidade da covid-19, alguns gastos têm de ser descongelados – aqueles necessários para enfrentar a crise na saúde. No entanto, o governo não contabiliza como gasto necessário, por exemplo, o investimento em tecnologia, o investimento em pesquisa científica, em vacinas”, diz o vice-presidente do Instituto de Justiça Fiscal.

Somente em 2019, por exemplo, a Saúde perdeu R$ 20 bilhões no orçamento – o que é mais do que 10%. Na Educação, de 2015 a 2019, foram cortados R$ 100 bilhões. De acordo com Dão Real, a Assistência Social praticamente acabou e se preservou alguma coisa por conta dos auxílios emergenciais – que são contabilizadas como assistência.

Novas causas de adoecimento no trabalho

Até 2019, o serviço de Assistência Social do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 1ª Região atendia servidores e magistrados com casos de adoecimento físico ou psíquico; casos de assédio moral ou sexual; e as violências no trabalho em geral. O setor cuida de questões gerenciais e organizacionais e faz parte de juntas multidisciplinares. A atuação da Assistência Social no TRT também trabalha com pessoas com deficiência, ou com necessidade de algum tipo de adaptação na rotina de trabalho e em processos de remoção de servidores. “Desde o início da pandemia, houve uma mudança no meu trabalho”, diz a assistente social Karla Fernanda Valle, 37 anos, servidora do TRT 1ª Região desde dezembro de 2011.

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Karla Valle, assistente social do TRT-RJ, diz que o trabalho remoto na pandemia trouxe desafios para o atendimento aos servidores, que passou a ser virtual

“Essa mudança pode ser exemplificada por dois processos. Com relação ao trabalho específico de assistente social, há o desafio ético do teleatendimento – que debatemos muito e compreendemos que não é o ideal, mas é o possível neste momento. Questões, por exemplo, como o do assédio moral e a da violência laboral, são muita delicadas para se construir um encaminhamento ou uma resolução virtual”, completa Karla. O segundo processo, de acordo com a servidora, é que “assim que iniciou o teletrabalho pareceu acontecer uma ‘suspensão dos direitos sociais’. Eu fui essencialmente procurada por servidoras com filhos, que estavam fora da escola, e principalmente aquelas que também exerciam o trabalho do cuidado – não só dos filhos, em geral, mas crianças com deficiência ou pais muito idosos, que estavam sem os cuidadores. Isso interferia diretamente na possibilidade de executar o trabalho, de se manter produtiva e atender às expectativas organizacionais. Então, isso gerou uma série de quadros de estresse, fadiga, ansiedade e depressão”, informa.

“Depois, e isto está diretamente conectado com a situação anterior, é que o uso das tecnologias não acompanha a modernização da gestão. Então, não foram estabelecidos parâmetros de como nós vamos nos comunicar, por qual meio, em quais horários, quais são as particularidades de cada um em casa. Então se trata disso: de promover uma série de acordos de trabalho. E isso não aconteceu. O teletrabalho acabou virando um processo de não desconexão do trabalho, de intensificação e de invasão mesmo da vida dos servidores e servidoras”, define Karla Valle.

Situações bastante parecidas com as relatadas pela assistente social Karla Valle também fazem parte da rotina da psicóloga Aniele Xavier, 37 anos, servidora da Seção Judiciária do Rio de Janeiro há 8 anos. Aniele conta que atendeu, durante a pandemia, muitos servidores e servidoras angustiadas por não conseguirem cumprir as metas de produtividade: “Em muitos locais as metas subiram, como se o trabalho remoto tivesse sido usado como argumento para subir essas metas. Quem sofria mais eram as servidoras com crianças em casa que tinham de gerenciar o aumento de produtividade, com o cuidado aos filhos, aulas on-line, a logística das suas casas – isso tudo exigia delas uma produtividade muito superior”.

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Aniele Xavier, psicóloga da SJRJ, diz que muitos servidores estão enfrentando novas questões emocionais geradas pelo distanciamento social

De acordo com a psicóloga, a atual modalidade de trabalho remoto se diferencia, inclusive do tradicional teletrabalho – quem já trabalhava assim tinha uma rotina, horários certos, ajudantes em casa. “Com o trabalho remoto na pandemia isso muda porque as pessoas se veem sozinhas nas tarefas, em função do distanciamento social; surgiram problemas como parentes que perderam o emprego e esse servidor ou servidora passa a ser o principal mantenedor da casa; a ansiedade por não poder encontrar as pessoas, os amigos; ansiedade por perda de familiares. Conforme a pandemia foi evoluindo, a gama de situações como essas também foi se amplificando”, enumera Aniele.

A Linha de frente na saúde e no Judiciário

O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) registrou, até o dia 30 de março de 2021, a perda de 699 profissionais de enfermagem vitimados pela covid-19 no Brasil. Apenas na enfermagem, sem contar médicos, pessoal de apoio e outros profissionais da área da Saúde. Estima-se em mais de 2 mil profissionais em geral, da área de saúde, vitimados pela doença: médicos, paramédicos, pessoal do Samu. As perdas na área, correspondem a 23% de todas mortes de pessoal de enfermagem no mundo. Ou seja, de cada quatro profissionais de enfermagem que morreram devido à pandemia, no mundo, um(a) é brasileiro(a).

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Emerson Pacheco, diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde avalia que a Emenda 95 estrangulou os recursos nas áreas sociais, especialmente na saúde

“Isso revela o descaso e a exposição ao vírus que acontece no Brasil”, afirma Emerson Pacheco, 48 anos, diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) e membro da Comissão Nacional de Técnicos e Auxiliares de Enfermagem do Cofen.

De acordo com Pacheco, a Emenda 95, de 2016, é um dos marcos do rompimento do processo democrático iniciado com a Constituição de 88 – com o estrangulamento dos recursos nas áreas sociais, especialmente na saúde. “A assistência em saúde necessita de equipes muitas amplas, é um trabalho complexo que envolve médicos, enfermagem, assistência social, pessoal administrativo, controle fiscal e tributário, pessoal de higienização, portaria, terceirizados, alimentação. São muitos profissionais envolvidos no processo de atendimento ao paciente em hospitais, UPAS, postos de saúde (UBSs), agentes comunitários de saúde etc.”, diz o diretor do CNTS.

“Temos colegas médicos e enfermeiros que também atuam na linha de frente do combate à pandemia – atuando tanto no Judiciário como também em emergências, UTIs etc.”, lembra a psicóloga Aniele Xavier, da SJRJ. “Mas podemos também caracterizar os(as) oficiais de justiça e os agentes de polícia judicial, cujo trabalho não foi interrompido, como linha de frente. Outra área que eu identifico que foi muito afetada foi a do primeiro atendimento nos juizados, principalmente àquelas pessoas mais carentes que não têm acesso via advogado”, registra Aniele. Essa demanda cresceu muito em função da busca pelo auxílio emergencial por pessoas que não conseguiam receber esse recurso da Caixa e recorriam à Justiça Federal. Foi um momento em que outras instituições, como a Defensoria Pública, estavam com um déficit muito grande no atendimento. De acordo com Aniele, aquele foi um momento complicado pela necessidade de retomar o atendimento presencial. Por volta de agosto de 2020, houve então a volta ao trabalho presencial de muitos servidores para atender essas demandas, que eram gigantescas.

A importância do SUS e a luta por direitos

De acordo com o vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal, Dão Real, o desinvestimento em áreas que representam direitos sociais significa descumprir o artigo 6º da Constituição: “Vejam que as armadilhas estão todas colocadas. É importante perceber que isso tudo faz parte de um conjunto de medidas que começaram em 2016 e que não se interromperam com a crise da pandemia. É um ciclo de reformas privatizantes do Estado e que continua em vigor apesar desta tragédia humanitária”.

“Está no Congresso a PEC 188 que cria um parágrafo no artigo 6º da Constituição, que diz algo como ‘os direitos sociais ficam condicionados ao equilíbrio fiscal’. Ora, isso significa que os direitos sociais deixarão de ser obrigatórios! Ou seja, se aprovada, o Estado só terá a obrigação de garantir a saúde se tiver mais arrecadação do que despesas”, indigna-se Dão Real.

De acordo com ele, há um aspecto não considerado, e que em muitos lugares do mundo já está aplicado: o Estado em época de crise precisa gastar mais do que arrecada – senão a crise se aprofunda. “Em época de crise não pode limitar gastos, é preciso ampliar gastos a exemplo do que fazem os EUA, países europeus, a Nova Zelândia – que, inclusive, aumentou salários em plena a pandemia e também os tributos sobre os mais ricos”, exemplifica.

Por isso, é chocante descobrir quanto ganha, em média, um técnico de enfermagem no Brasil, em plena luta contra a covid-19. “Muitas vezes vem no contracheque de um profissional de enfermagem menos do que o salário mínimo nacional. Por exemplo, um técnico de enfermagem ganha hoje no Brasil, em média, R$ 1,5 mil e um(a) enfermeiro(a) ganha em média R$ 3,5 mil”. E os poucos hospitais que pagam mais, acima do mercado, não têm profissionais interessados em assumir os postos, informa Emerson Pacheco, membro do Cofen.

Para Pacheco, se podemos tirar algum aprendizado dessa pandemia é que “a sociedade em geral precisa valorizar o SUS”. “Se a situação está muito ruim hoje, imagine se não houvesse o SUS, subfinanciado, é claro, mas organizado e levando assistência a todos os cantos do Brasil”.

O Luto

No último ano, as perdas de colegas do Judiciário pela covid-19 geraram um abalo muito grande, diz Aniele Xavier, psicóloga da SJRJ: “Muitos ficaram com a impressão de que poderiam ter feito algo para evitar a perda, ou alertado para cuidados, ou ajudado na proteção. Quando chega uma notícia da perda um colega, mesmo que seja alguém que você não conhece ou tenha convivido pouco, isso abala muito”.

De acordo com a psicóloga, a sensação da proximidade, da perda de um colega de trabalho como você, que estava ali trabalhando como você e perdeu a vida, é uma sensação aterradora. “Gera o sentimento de que podia ser a gente, de que passou raspando, de que podia ser alguém da nossa família, isso fico muito intenso. A cada notícia de morte de colega, aumenta o nível de ansiedade, de entristecimento e de desesperança, embora todos estejam tentando se manter esperançosos. Há um clima de luto”, diz.

Aniele continua: “Lidar com o luto no trabalho depende muito da situação. Em algumas situações, os servidores que trabalhavam mais próximos podem ser escutados em conjunto, fazer uma elaboração em conjunto, falar sobre a convivência. Mas o luto também é uma situação muito particular que depende das experiências prévias: depende do grau de proximidade que você tinha com aquela pessoa, depende da sua experiência prévia de perdas, ao que isso te remete. Ou seja, é sempre um trabalho muito demorado. E nesta situação em que estamos vivendo, é árduo porque foi retirada das pessoas a oportunidade de se despedir. Neste momento, os rituais de despedida estão muito difíceis até para os familiares porque há muitas restrições”.

*Henri Figueiredo é Jornalista / especial para o Sisejufe

Para saber mais

Trabalhadoras e trabalhadores protegidos salvam vidas
http://trabalhadoresprotegidos.com.br/

Pesquisa analisa o impacto da pandemia entre profissionais de saúde
https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-entre-profissionais-de-saude

Trabalhadores da Saúde atuam em condições precárias diante da pandemia, concluem pesquisas apresentadas em debate do CNS
http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1674-trabalhadores-da-saude-atuam-em-condicoes-
precarias-diante-da-pandemia-concluem-pesquisas-apresentadas-em-debate-do-cns

Antes de qualquer coisa, salvar vidas!
https://ijf.org.br/antes-de-qualquer-coisa-salvar-vidas/

Folha informativa sobre COVID-19 da OMS
https://www.paho.org/pt/covid19

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