Por Roberto Ponciano
Na década de 60 foi cunhado epíteto jocoso para os companheiros de uma esquerda debochada e não programática: “A Esquerda Festiva”, chamada por alguns de PCI, ou Partido Comunista de Ipanema. Este rótulo, como tantos outros estereótipos, acabou sendo uma pecha que pegou e até companheiros engajados em partidos políticos (como Albino Pinheiro, militante do bom e velho Partidão) acabam sendo alcunhados com o apelido.
Assim como o apelido urubu (racista e preconceituoso, que quer dizer que o torcedor do flamengo é negro e favelado, mas que foi incorporado com orgulho proletário pela torcida rubro-negra), o que foi criado de maneira pejorativa, o que antes era xingamento passou a ser título. Nossa Esquerda Festiva produziu a maior parte de nosso melhor humor, e boa parte de nossa melhor literatura, crítica literária, crítica artística e crítica política, nos últimos 40 anos. Uma esquerda festiva, inteligente e erudita, capaz de zombar das estreitezas, pernosticismos, sectarismos, preconceitos, ranzinzices, superstições e das crenças ingênuas e messiânicas de parte da esquerda tradicional.
Há que se recuperar e recontar a história de uma esquerda que entendeu que a utopia não é um dogma, uma religião, que é possível fazer socialismo com carnaval, samba e futebol. Que João Saldanha trajado de baiana à frente da banda de Ipanema não vai ser menos comunista, marxista, revolucionário por conta deste fato. A Esquerda Festiva, com verve e sensibilidade, conseguiu aproximar-se do povo; esta esquerda viu um Marx humano, freqüentador das tabernas e apaixonado pelas mulheres, e não um puritano fundador de uma nova seita abstêmia e celibatário, um quaker de discurso operário.
Faço a apologia desta Esquerda Festiva, lutadora e engajada – cujos membros foram perseguidos, perderam seus empregos, foram presos, torturados, exilados, mortos – com forma de dizer que o socialismo não pode e não deve ser triste, taciturno, amargo, moralista, estéril, uma revivescência do puritanismo vitoriano, uma forma laica de moral religiosa anglo saxônica, uma nova inquisição vermelha; com rituais novos de bom mocismo e falso moralismo, a condenar sob uma nova cartilha do “politicamente correto” os recém criados pecados laicos.
Quando se compara a Esquerda Festiva com esta nova Esquerda Raivosa, fundamentalista e sectária, as comparações são sempre desfavoráveis a esta. A Esquerda Raivosa do falso moralismo, do ascetismo “marxista”, a esquerda que pensa, como bem dizia Lênin, que vai mudar as coisas apenas mudando seus nomes (como se a Revolução fosse uma questão lingüística, de semântica e não concreta, real). Que vê preconceito em tudo e todos e se comporta como portadora de uma nova verdade revelada, com os 10 mandamentos do profeta Marx trazidos diretos do Monte Sinai. Como nas seitas pentecostais, os nomes malditos são os populares, os que não devem ser ditos. Ficam ruborizados se alguém se utiliza da palavra puta. Aí eles gritam de forma raivosa, machismo! Preconceito! Mas o que é puta, o que é quenga, senão as formas populares de dizer prostituta, garota de programa? Assim como bunda é o nome africano e gostoso das pudicas nádegas (à forma popular é sempre a mal dita, à linguagem proletária eles preferem a linguagem polida, culta, de elite branca da USP e da PUC). Qual a diferença afinal de se dizer um ou outro? Vai mudar algo na sociedade se em lugar de uma palavra se usar outra? Se hoje uma mulher é condenada por que é uma puta, o que vai mudar se em lugar de puta ela for garota de programa? A condenação social vai ser reduzida por conta disto? Ou simplesmente vamos jogar a sujeira por debaixo do tapete, discutindo filigranas, quando deveríamos efetivamente discutir as maneiras de acabarmos com a exploração sexual das mulheres e os preconceitos subjacentes a isto? Gabriela Leite, umas das maiores militantes dos direitos das prostitutas (a quem tive o prazer de entrevistar) diz que o nome que mais a agrada ser chamada é o de puta. E que as prostitutas têm de enfrentar o estigma, agarrar o touro à unha, e o sonho dela é o dia em que a palavra puta não carregue mais nenhum sentido pejorativo, para ela o estigma não está na palavra, mas na sociedade, uma palavra não vai mudar nada (só varrer o preconceito através do “politicamente correto”).
Já a esquerda raivosa varre a sujeira para debaixo do tapete. Puta, quenga, meretriz são nomes “feios”. Então troquemo-nos! Prostituta! Não! Ainda é a prostituta uma puta, no final das contas. Ora usemos garota de programa… Bem, como o estigma não está no nome, mas na condição social, logo, logo garota de programa vai ter o mesmo valor sintático de… puta! Então troquemos garota de programa por algum eufemismo que mais parece uma tese de mestrado: mulher advinda das camadas menos favorecidas da população e que, malogrados outros meios de garantir a sua subsistência de maneira produtiva teve de vender o que há de mais íntimo, seu corpo, para auferir meio de sustentar a si mesma e a sua família. Tradução: prostituta, garota de programa, quenga, puta, meretriz.
A Esquerda Raivosa, puritana e eufemista pensa mudar as coisas mudando nomes. Pensa combater o racismo no Brasil simplesmente fixando um termo como criminoso. Fala de preconceito e racismo, mas não conhece um ponto de macumba, um terreiro de candomblé, não sabe sambar, desconhece Paulo da Portela e Candeia, mas finge defender os interesses dos negros. No fundo seu vocabulário e sua cultura são a do dominador branco, o da colônia. Escrevem uma petição contra o racismo de dia e à noite vão curtir um show de rock num bar de elite da cidade, nunca foram e não conhecem os rumos das Escolas de Samba da periferia, onde a cultura negra é celebrada em música e dança. Já a Esquerda Festiva celebrou o samba, subiu os morros, resgatou Cartola, resgatou Zé Keti, resgatou Candeia, tingiu de negro os acordes brancos da bossa-nova, fez o que realmente interessa para combater o racismo no Brasil, valorizar nossa raiz negra e seu legado na cultura brasileira atual.
Isto não quer dizer que defendo que não haja racismo e machismo no Brasil e de que suas manifestações não devam ser combatidas de forma dura, com cadeia inclusive para as manifestações ostensivas de preconceito. O Brasil é um país racista, machista em sua cultura e em sua organização social (as mulheres e os negros fazem parte da base da pirâmide, são os mais pobres, os mais explorados). Mas não se combate isto combatendo-se simplesmente nomes, combate-se isto mudando a forma de ver e pensar das gerações, e isto está ligado a reprodução de uma nova cultura que leve em conta a maravilhosa e grandiosa influência negra na nossa formação e que resgate o papel de igualdade da mulher na sociedade (antítese, por exemplo, do que se prega no funk hoje em dia, no qual a mulher é depreciada como um pedaço de carne no açougue, uma cadela, ou algo pior).
A questão do machismo tem de ser enfrentada de frente, sem eufemismos. Ela é, acima de tudo, a questão da supremacia do macho na sociedade, e isto vai muito além da questão de semântica, só pode ser mudada com uma nova correlação nos papéis. Precisamos de muitas Naras Leão e muitas Leilas Diniz para rompermos com as barreiras que ainda colocam as mulheres como encosto de cadeira no falso elogio “atrás de todo grande homem existe uma grande mulher”. Questões fundamentais como o retorno do conservadorismo, da revalorização do casamento tradicional, da virgindade, da condenação da liberação sexual das mulheres são pouco ou nada valorizadas enquanto ficamos discutindo a criação de vocábulos que contemplem tanto o gênero masculino quanto o feminino (e que não mudam em nada a compreensão e a visão da sociedade).
A Esquerda Raivosa e puritana cala-se quando se quer discutir a questão do orgasmo feminino, por exemplo. Consideram que esta questão não é de bom tom, quando, na verdade, esta é toda a questão. Desde o momento que os homens escravizaram as mulheres, no início do patriarcado, as mulheres tiveram sacrificado seu prazer em nome da “família” e dos “filhos”. Durante milênios o assunto do gozo feminino foi um tabu (ainda o é na nossa sociedade, na qual as heroínas de novela e romance sacrificam seu prazer em pró da família ou são sacrificadas no fim, como Ana Karenina), e continua como proibido em várias culturas, nas quais as mulheres se casam virgens e sem conhecerem seus maridos. Na verdade, a Esquerda Raivosa não consegue ver o quanto há de machismo em sua atitude de não discutir este assunto, o da emancipação sexual da mulher e o do direito de gozar em plenitude do seu próprio corpo. No fundo, reproduzem a moral conservadora dominante, baseada na religião, aplicável teoricamente a todos os indivíduos, cuja perfeição é a monogamia. Atacam a prostituição somente em um dos seus dois pilares, o econômico, deixando o outro lado do pilar, a moras sexual conservadora e compulsiva. Na verdade reproduzem esta de maneira automática, até porque rechaçam Freud, Reich e todos os pensadores progressistas que lançaram luzes sob o comportamento sexual do ser humano.
A Esquerda Raivosa não vê o quanto há de machismo ao não querer falar de sexo com as mulheres, como se a questão sexual fosse de interesse restrito aos homens. A prostituição é a válvula de escape de uma sociedade que vive em permanente tensão entre o desejo e a repressão dele, entre uma propaganda hedonista e sexista do gozo, e uma moral sexual repressora familiar que sacrifica o orgasmo. Paradigma de comportamento que todos pregam e que quase ninguém cumpre (pelo menos sem o sacrifício de sua saúde física e mental). O acesso igualitário ao orgasmo entre homens e mulheres, a propaganda do direito à plena satisfação sexual, devia ser uma das bandeiras primordiais do movimento feminista. Todavia, este é um assunto incômodo, que vai de encontro à moral reinante e que, portanto, é deixado de lado pela maioria dos movimentos feministas, que chegam a falar ao direito da mulher ser dona do seu corpo e, portanto, ter direito ao aborto; mas pouco falam de que o direito ao pleno uso deste corpo significa o direito a gozar sem ser vítima de estigmas, sem ser ridicularizada, sem ser condenada, porque, afinal, uma vida sexual plena é, desde o fundamento da civilização um direito apenas do homem. O que a sociedade não consegue enxergar é que não é possível uma sociedade livre quando apenas a metade de seus membros é livre. Não é possível homens livres e plenos sexualmente, sem mulheres aptas a serem suas parceiras, que também sejam livres e plenas; posto que não são tolhidas por uma moral vitoriana atrasada, que lhes faz ser pouco mais do que uma fábrica de bebês.
Para terminar, na questão dos negros, já tocada superficialmente lá em cima, a posição da esquerda raivosa é ainda pior. Resumem a luta do negro à questão da luta contra a discriminação e pela igualdade social. Isto é importante, claro que é. Mas eu acuso: Isto não basta! Ainda que hoje fizéssemos uma revolução socialista e distribuíssemos os bens igualmente entre brancos e negros e que construíssemos leis violentas contra a discriminação, ela continuaria vigorando, porque sua raiz não foi cortada. A raiz da discriminação é a valorização da cultura do colonizador branco e a desvalorização da cultura negra. Uma revolução socialista que não compreenda isto vai continuar a reproduzir o eurocentrismo, reproduziria em uma sociedade que se pretendesse nova a velha cultura racista europeia em toda sua extensão. A Esquerda Raivosa, como eu já disse, não frequenta terreiros, não frequenta pagodes, quadra das escolas de samba, festas populares, Candeia, para ela, é apenas o instrumento que alumia. Mas ainda assim, pretende ser o porta-voz dos explorados e oprimidos, explorados e oprimidos que ela não conhece, porque não segue a lição que deu Ho Chi Min, viver com eles, sofrer com eles, comer com eles.
E, ai de mim que levantei estas questões, estou apenas esperando que reação violenta, que altercação, a que tribunal de inquisição serei levado, já que a reação comum da Esquerda Raivosa é a de condenação, de xingamento, de execração pública.
A inquisição, nos nossos dias, ganhou forma laica e de “esquerda”.
Tem razão a Esquerda Festiva quando dizia que esta é a esquerda que a direita gosta. O discurso é de esquerda, a moral e a prática é de direita.
Incapazes de compreender o povo, de por isto inventar o novo, estão condenados à imitação. E já dizia Simón Rodríguez, o grande idealizador da liberdade dos povos da América, ou inventamos ou erramos.
A Esquerda Raivosa erra, construindo suas hipóteses sem conhecer o povo e a cultura brasileira.
Roberto Ponciano – coordenador de Comunicação da Fenajufe, representante de base do Sisejufe e escritor lançando seu quarto livro, ‘O Marxismo e a Filosofia Contemporânea’, é mestre em Filosofia (UGF), mestrando em Letras neo-latinas (UFRJ) e faz especialização em Economia e Sindicalismo na Unicamp