Por Jose Ricardo Ramalho
Em seminário recente, organizado pela UNI Global Union (24/09/2020), e veiculado pela internet, o prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, ao discorrer sobre o contexto da pandemia nos EUA, surpreendeu a muitos ao ressaltar a importância dos sindicatos: “os sindicatos defenderam seus trabalhadores. O resultado é que, onde havia sindicatos, havia mais máscaras, mais equipamentos de proteção individual. […]. Essas experiências bastam para mostrar a importância, o papel crítico que os sindicatos desempenharam na gestão da crise sanitária.”
Ao falar também sobre as consequências da pandemia no que diz respeito ao aumento do desemprego, Stiglitz identificou as dificuldades do processo de negociação coletiva, com a queda nos salários e a necessidade dos trabalhadores de aceitarem cortes. E concluiu, “a única proteção contra esse tipo de exploração são os sindicatos.”
A surpresa está no fato de que esse tipo de valorização e reconhecimento não está muito em voga atualmente. Por um lado, na conformação neoliberal do capitalismo, não há espaço para a instituição sindical. Nos últimos anos, são recorrentes as campanhas e ações sistemáticas de desconstrução da ação coletiva e da legislação laboral. Por outro lado, as críticas à ação sindical, no Brasil e no exterior, vão na direção de apontar a sua dificuldade ou incapacidade em perceber alterações significativas no mundo do trabalho. As práticas sindicais parecem desatualizadas frente às demandas de uma força de trabalho cada vez mais diversa (gênero, cor, idade e geografia do trabalho). Além disso, o sindicato representa o trabalhador formal que, no Brasil, corresponde a menos da metade de todo o mercado de trabalho.
As dúvidas desse debate estão relacionadas à capacidade da instituição sindical de se reinventar para atuar nesses novos contextos, agravados pela pandemia do coronavírus.
Constituídos nos primórdios do capitalismo com o objetivo de representar os trabalhadores, os sindicatos tem uma longa história já consolidada de organização e de defesa dos interesses dos que vivem do trabalho. Seguem como referência mesmo nos contextos desfavoráveis associados a mudanças do sistema econômico e as estratégias das empresas. A instituição pode ser vista com uma trajetória marcada por descontinuidades e crises frente aos desafios permanentes colocados pelo processo de acumulação capitalista.
Na mais recente fase da globalização da economia, os sindicatos, com uma tradição e uma prática de lutas construídas ao longo dos séculos XIX e XX, no bojo do desenvolvimento do setor industrial de características fordistas, se viram confrontados por um processo de reestruturação produtiva que flexibilizou as relações de trabalho, incentivou a subcontratação e precarizou os laços de emprego.
A diversidade do mercado de trabalho, e o uso sistemático da tecnologia da informação, especialmente com a utilização das plataformas digitais, trouxeram problemas adicionais para a representação sindical.
Na verdade, os sindicatos passaram a enfrentar uma oposição reforçada pela combinação de políticas não intervencionistas dos Estados Nacionais, com a nova lógica de acumulação das empresas. Se viram atacados no campo do debate político e enfrentaram uma onda de retirada de direitos e legislação de proteção do trabalho e de endurecimento nas negociações salariais.
No Brasil, a reforma trabalhista de 2017 dedicou boa parte de suas decisões na direção de inviabilizar a atividade sindical: fim do imposto sindical, contratos precários que afetam “a base de representação dos sindicatos, historicamente ancorada nos assalariados formalizados, aumentando o percentual de trabalhadores não filiados a sindicatos e não cobertos por convenções e acordos coletivos” (Campos, 2020) e; acesso limitado à Justiça do Trabalho (Cardoso, 2020, Krein et al 2019, Galvão, 2019, Site Remir-Trabalho, 2020; entre outros).
Embora seja evidente e explícita a estratégia declarada de destruição da organização sindical e do seu repertório de resistência, a culpa pelas dificuldades, na maioria das vezes, tem recaído sobre as próprias entidades e seus dirigentes. A começar pela fragmentação artificial da representação, o que faz com que o país tenha um número enorme de entidades registradas, burocratizadas, a maioria delas sobrevivendo com os recursos de um imposto sindical que deixou de existir em 2017.
Levando-se em conta que os sindicatos representam os trabalhadores formais e os servidores públicos com carteira assinada, fica evidente que uma grande parte da força de trabalho, envolvida nas atividades sem registro, não tem quem a defenda formalmente. O mesmo se coloca para o desempregado. O setor organizado e ativo do sindicalismo brasileiro se concentra em macro setores da economia, e mesmo contando com uma história expressiva de lutas por melhores salários e direitos nas últimas décadas, sofre com as mudanças frequentes dos processos de trabalho, dos usos da tecnologia e dos meios de controle sobre a produção.
Dirigentes sindicais que são conscientes dessas dificuldades, tem muitas vezes se sentido incapazes de se renovar nesse contexto. Na maioria das vezes o que surge é um lamento quanto à ausência de trabalhadores jovens nas atividades sindicais; que falta aquela identidade de classe que teria existindo em lutas coletivas do passado, e que agora prevalece o individualismo. Percebem-se as dificuldades de lidar com a concepção largamente difundida e incorporada do indivíduo empreendedor. O empreendedorismo funcionaria como a antítese do espírito de coletivo que tradicionalmente marcou as atividades sindicais e isso tem sido motivo de perplexidade e em certo sentido de inação.
De fato, como afirma Laval, em entrevista recente (2019), “as mudanças no mundo do trabalho sob hegemonia neoliberal apontam que as saídas para os problemas são responsabilidade de cada indivíduo. Enfraquece a solidariedade de classe e, portanto, as ações coletivas e a consciência de classe. O nível de consciência dos trabalhadores não é nem o produto automático do seu lugar no processo de produção, nem resulta automaticamente da sua experiência. Resulta de um conjunto de fatores muito mais complexos e é a sua interação que permite explicar as razões de um nível de consciência numa época determinada, num lugar determinado”.
Mesmo diante desse quadro de grandes dificuldades, de uma pandemia e de uma perseguição implacável por parte das empresas e do Estado, a instituição sindical sobrevive, demonstra resiliência, assim como coloca em sua agenda o apoio e a associação a novas formas de representação e defesa dos trabalhadores.
São exemplos simples, mas sólidos, como a constatação do DIEESE (2020) em um dos seus últimos boletins de análise de conjuntura: “os trabalhadores vêm provando certo poder de resistência nas negociações salariais de 2020, diante da grave situação econômica nacional[…]”. O DIEESE “analisou 4.938 reajustes salariais de categorias com data-base entre janeiro e agosto de 2020, registrados até a primeira quinzena de setembro. Os dados mostram que cerca de 43% dos reajustes resultaram em aumentos reais aos salários, 29% em acréscimos iguais à inflação e 28% em perdas reais, com base na variação da inflação desde o último reajuste de cada categoria pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC)”, do IBGE. “
Embora ainda incipientes por sua novidade, já há também vários exemplos da criação de associações com formato sindical organizados em vários países do mundo, até mesmo de setores marcados pela informalidade como é o caso das plataformas digitais.
Na verdade, todo o debate sobre a ação sindical reflete a importância de se discutir a solidariedade, que é uma marca registrada do sindicalismo ao longo da história do capitalismo. E como dizem repetidamente Gumbrell McCormick e Hyman ( 2013, 2019), solidariedade não é uma prática que se reproduz automaticamente; é um processo de construção permanente, com idas e vindas, com vitórias e derrotas. Em um mundo globalizado, o que se coloca é a construção de uma “solidariedade apesar da diferença”, que leva em consideração a diversidade da inserção no trabalho. Nessa direção, a dimensão internacional se torna um campo decisivo de construção de solidariedades: “[…]qualquer fechamento no espaço nacional é suicida. A força do capital reside na sua mobilidade transnacional. A força do trabalho, sobre a unidade global dos trabalhadores”. (Laval, 2019).
Em resumo, uma leitura cética sobre as perspectivas da instituição sindical no mundo de hoje, muitas vezes referida a um passado heroico idealizado, corre o risco de minimizar sinais da resiliência que se manifestam em momentos e contextos variados, e que, a partir de agora, incorporam a forte interveniente do período pandêmico sobre os trabalhadores.
Está claro que qualquer processo de transformação da instituição sindical é complexo e exige sacrifícios e atitudes políticas mais ousadas de reformulação de sua estrutura interna e de sua atuação na sociedade. Afinal, organização e a ação coletiva sempre variaram ao longo da história. A mudança agora exige uma necessária autocrítica, e a percepção de que novas práticas precisam ser experimentadas.
A luta cotidiana por direitos, empregos e salários, permanece sendo a base fundamental, mas talvez seja a hora de o movimento sindical aumentar o volume da contestação e das denúncias contra as recorrentes e violentas práticas antisindicais e antidemocráticas adotadas por governos e empresas de todos os tamanhos, especialmente as multinacionais, e implementadas em vários lugares do mundo. A globalização permite articulações internacionais, e a construção por parte dos sindicatos de novas solidariedades passa a ser o seu mais importante desafio.
José Ricardo Ramalho – PPGSA-IFCS-UFRJ e REMIR-TRABALHO
Fonte: jornal GGN