A 1ª Conferência Nacional por Inteligência Artificial com Direitos Sociais, realizada em São Bernardo do Campo, reuniu lideranças sindicais, acadêmicas, movimentos sociais e representantes de 18 estados brasileiros para debater a urgência de regulamentar as novas tecnologias e garantir que o avanço da Inteligência Artificial (IA) sirva à humanidade e à justiça social. Pelo Sisejufe, participaram a diretora da entidade e coordenadora da Fenajufe, Fernanda Lauria; o coordenador do Departamento de Acessibilidade e Inclusão, Ricardo Soares; o secretário de Assuntos Jurídicos e Relações de Trabalho, Dulavim de Oliveira; e os diretores Joel Lima e Iuri Peixoto.
O evento teve início no dia 2 de outubro, com a abertura no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e continuou no dia 3 de outubro, na Universidade Federal do ABC (UFABC). Segundo os organizadores, a conferência, realizada no “solo sagrado da classe trabalhadora”, foi um marco histórico por ser a primeira a focar na IA sob a ótica dos direitos sociais.
A Mega Máquina e a Soberania Digital
Um dos pontos centrais dos debates foi a necessidade de soberania tecnológica e digital. O professor Sérgio Amadeu, da UFABC, destacou que a IA não é apenas um software, mas uma “mega máquina” que exige uma gigantesca infraestrutura, incluindo data centers massivos que consomem energia e água em escala descomunal, com sérios impactos socioambientais.
Amadeu e outros palestrantes alertaram que o Brasil corre o risco de assumir o papel de mero usuário, fornecendo dados para Big Techs estrangeiras, que, por sua vez, vendem serviços e produtos de volta ao país. A luta pela soberania digital implica a construção de infraestruturas de processamento públicas e soberanas, e a criação de políticas científicas para desenvolver modelos de IA nacionalmente.
O deputado federal Orlando Silva (PCdoB) reforçou a ideia de que a regulação é urgente e que a soberania nacional exige que as leis brasileiras valham para todas as empresas que operam no país. Ele criticou a concentração de mercado e o fato de que as Big Techs tentam se eximir de responsabilidade e transparência.
Impactos no Mundo do Trabalho e a Luta por Direitos
A Inteligência Artificial e a automação geram enormes ganhos de produtividade e concentram riqueza, mas trazem consigo a ameaça de substituição e, principalmente, de precarização do trabalho.
A vice-presidente da CUT e coordenadora do Comando Nacional dos Bancários, Juvândia Moreira, usou o setor financeiro como exemplo do intenso uso de tecnologia e IA (96% dos bancos a adotam), o que resulta em demissão e sobrecarga. Juvândia citou o caso do Itaú, onde mais de mil trabalhadores foram demitidos após monitoramento supostamente realizado por software, sem direito a contestação ou feedback.
O sociólogo Ricardo Antunes classificou o momento atual como o mais destrutivo em relação ao trabalho na história do capitalismo, impulsionado pelo capital financeiro e pela explosão das plataformas digitais (uberização). Antunes defendeu a urgência da regulamentação e a reinvenção de um novo modo de vida.
Entre as principais propostas da classe trabalhadora para lidar com os impactos da IA estão:
- Redução da Jornada de Trabalho: Considerada essencial para distribuir os ganhos de produtividade e gerar novos empregos. O fim da escala 6×1 e a jornada de quatro dias semanais foram demandas recorrentes.
- Negociação Coletiva Obrigatória: Exigir que as empresas negociem com os sindicatos a implementação de novas tecnologias, garantindo transparência, supervisão humana e limites ao monitoramento excessivo do trabalho.
- Proteção contra o Adoecimento: O monitoramento e a sobrecarga causados pelas tecnologias têm gerado novas doenças psíquicas. O debate sobre o direito à desconexão foi defendido como crucial.
- Combate à Desigualdade Digital: Foi levantada a preocupação de que o acesso a ferramentas de IA de alta qualidade se torne pago, aprofundando a exclusão social e acadêmica.
Manifesto e Próximos Passos
A conferência culminou na leitura do “Manifesto de São Bernardo do Campo por Inteligência Artificial com Direitos Sociais”, que clama pela transformação da “indignação em organização e diagnóstico em ação”. O manifesto reforça que a IA não pode ser aceita sem críticas, devendo ser submetida aos interesses do país. A Frente Inteligência Artificial com Direitos Sociais, uma das organizadoras do evento, formou uma coordenação executiva, que contará com a participação da Fenajufe.
Soberania digital é urgente
A diretora Fernanda Lauria destacou que foi um dia incrível e de muitas reflexões. “O que foi unânime pela fala de vários palestrantes é que o Brasil não vai ter soberania nacional enquanto não tiver a soberania digital. Enquanto os nossos dados forem fornecidos e armazenados nas plataformas das big techs, nós não teremos uma soberania nacional porque essas empresas detêm, atualmente, todos os dados, informações e projetos das universidades e órgãos públicos”, alertou.
O diretor Ricardo Soares também elogiou a iniciativa: “a primeira conferência de IA com direitos sociais foi sem dúvida alguma sensacional, incrível!! Tivemos conferencistas de altíssima qualidade. Palestras que nos fizeram refletir até a exaustão!!! Sem dúvida alguma o cenário é devastador no que se refere à atuação das Big Techs pelo mundo! Resistir é preciso e, seguramente, não é uma opção, mas uma necessidade!”.
O dirigente reitera a fala de Fernanda Lauria: “Se o Brasil não se estruturar e não lutar por uma soberania de fato digital, ficaremos pelo caminho. Entre as palestras relevantíssimas que tivemos a oportunidade de assistirmos por lá, destaco de modo intenso a de Sérgio Amadeu e Ricardo Antunis. Um outro destaque que precisamos abordar por aqui foi o manifesto escrito ao final. Sem dúvida alguma foram algumas maravilhosas linhas de um manifesto simplesmente formidável e que o recado direto e reto foi dado! Cada entidade presente a Conferência tem a obrigação de reproduzir em suas redes sociais. Nossa federação agora passará a integrar a Coordenação da Frente IA com Direitos sociais. Um grande motivo de orgulho”, afirmou.
Para o diretor Dulavim de Oliveira, a conferência foi um evento interessante e oportuno. “Inovação é algo inerente à humanidade, faz parte de nossa natureza, desde que o primeiro indivíduo construiu o primeiro instrumento para facilitar alguma tarefa, até os grandes avanços atuais da indústria, principalmente após a descoberta de como manipular a energia elétrica, ondas de rádio e invenção da máquina a vapor. De avanço em avanço chegamos à inteligência artificial. Ela veio para ficar, mas, se na Revolução Industrial, os trabalhadores levaram mais de 70 anos para conseguir se organizar e conquistar a jornada de 8 horas. Hoje, com a IA, a evolução é exponencial. Assim, a evolução tecnológica precisa de uma decisão política. As mudanças que antes levavam décadas, agora acontecem em questão de meses e a gente não tem esse tempo todo. A conferência deixou bem claro quais são os riscos de uma IA solta, sem regras. O impacto mais direto, aquele que mexe com o bolso e com a vida das pessoas, é no emprego e na dignidade de quem trabalha”, sinalizou.
Dulavim mencionou um estudo da OIT, a Organização Internacional do Trabalho, que foi apresentado no evento, que acendeu um alerta. “Cerca de um quarto de todos os postos de trabalho no Brasil, estamos falando de algo em torno de 25 milhões de vagas, podem ser ou profundamente transformados ou simplesmente eliminados pela IA. Se é verdade que transformação ou eliminação de profissões não é nenhuma novidade com a evolução humana, agora estamos diante de um cenário avassalador.
Além dos postos de trabalho, está em cheque a nossa soberania digital. Isso significa que os dados estratégicos do país, a nossa infraestrutura de comunicação, as tecnologias que estão moldando a economia, tudo isso está ficando cada vez mais nas mãos de um pequeno grupo de gigantes da tecnologia, as big techs, que nem são daqui. E para essa ideia de soberania sair do papel, foi proposta a criação de uma nuvem de governo, um passo bem concreto para garantir que os dados públicos estratégicos do Brasil, como os dados do Censo ou do Enem, fiquem sob controle nacional, em vez de serem guardados nos servidores de gigantes como a Microsoft ou o Google”, informou.
O diretor disse que foi proposta uma solução bem poderosa, uma aliança estratégica juntando três pilares centrais da sociedade para construir um projeto de IA que seja nosso, que seja social e soberano. “A proposta é, basicamente, criar uma frente unificada, onde nela, os sindicatos entram para proteger a força de trabalho, as universidades entram com o conhecimento, com a pesquisa, para a gente ter tecnologia soberana, e o governo vem para estabelecer as regras do jogo, garantindo que os benefícios cheguem para todo mundo. E uma parte central do papel do governo é a regulação, e, até mesmo, financiamento”, acrescentou.
O sindicalista citou que houve grande foco no Projeto de Lei 2338/2023, que já está tramitando. “A ideia é propor emendas para fortalecer a proteção no mundo do trabalho. No fim das contas, o debate todo se resume a um conflito entre dois futuros possíveis. De um lado, a visão das grandes empresas, que defendem a autorregulação para maximizar o lucro, mesmo que isso signifique precarizar o trabalho. Do outro, uma visão que coloca o bem-estar social e o controle democrático no centro de tudo, usando a tecnologia para emancipar e não para excluir. Portanto, o saldo da conferência foi de uma visão bem concreta e de um chamado mesmo, um chamado à ação, para a gente construir um futuro tecnológico diferente”, disse, ao comentar que essa visão foi formalizada na Carta de São Bernardo.
“É, na prática, uma declaração de que a tecnologia precisa ser uma ferramenta a serviço das nossas necessidades, das necessidades humanas e sociais, e não o contrário. Em última análise, a conferência nos mostra que o desenvolvimento da IA não é um destino inevitável, mas sim uma série de escolhas, escolhas políticas e sociais que precisam ser feitas por todos nós, coletivamente. A disputa, como a gente pode ver, está só começando”, concluiu o dirigente.
Entre os compromissos imediatos firmados no manifesto estão:
- Expandir a mobilização, realizando conferências estaduais e regionais em todo o país.
- Fortalecer a integração entre sindicatos, universidades e organizações sociais.
- Lutar pela redução da jornada de trabalho e pela requalificação profissional permanente.
- Construir uma frente parlamentar e legislativa para aprovar marcos regulatórios que limitem o poder das grandes corporações.
Descrição da imagem em destaque:
Foto dos diretores Joel Lima, Fernanda Lauria, Ricardo Soares e Dulavim Lima no auditório da conferência; ao fundo está um telão com imagem do evento.