*Luisa Caminha
Após 76 anos da criação da CLT, nunca imaginaríamos que o desenvolvimento tecnológico presente em 2019 seria considerado pelos defensores dos direitos trabalhistas, uma grande ameaça. Os smartphones, notebooks e tablets trouxeram para a realidade das mais diversas classes sociais o acesso à lojas de aplicativos, que prometem, através de seus produtos – os chamados “apps”- dinamizar serviços ao mesmo tempo em que o custo diminui. Alcançamos a era onde o número de trabalhadores e trabalhadoras considerados pelo IBGE (através da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/PNAD) como “autônomos e empreendedores” cresce frente ao vertiginoso aumento do desemprego mundial, consequência histórica das crises do capitalismo.
Hoje, mais de 4 milhões de pessoas trabalham para empresas de aplicativos dos mais diversos tipos de serviços – caronas, entregas e serviços gerais – no Brasil. Os empregados, são tratados pelas empresas como “parceiros”, onde defende-se que também são patrões: por terem recorrido por “livre e espontânea vontade” aos aplicativos para receberem pedidos de entregas ou viagens, é consolidada uma imagem de um trabalhador autônomo, eximindo a empresa de qualquer obrigação no que tange relações trabalhistas, visto que mera disponibilização de serviços não configura emprego formal.
O reconhecimento destas novas configurações de trabalho ocorreu através de manifestações em tom de denúncia, relativas às más condições de trabalho e o claro vínculo e pressão que a empresa desempenha sobre seus prestadores de serviços, bem como os estudos realizados a partir dos desdobramentos sociais relativos aos impactos do uso indiscriminado de aplicativos pela população. Contudo, com base em pesquisas realizadas por estudiosas da área, compromissadas com as questões de gênero implicadas, conclui-se que tal forma de precarização do trabalho seria, na verdade, uma velha conhecida das mulheres.
Desde o ano passado, assistimos diversas queixas de trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos acerca da insegurança jurídica, econômica e física decorrentes das longas jornadas enfrentadas em seus expedientes, exigida pela rotina de uso dos aplicativos como facilitadores de suas atividades laborais. Entretanto, outro modelo muito semelhante, já foi – e ainda é – testado pelas grandes empresas do segmento de maquiagem, tendo como público alvo mulheres. As revendedoras de cosméticos, que através de meios próprios, disponibilizam revistas, colhem pedidos, entregam produtos e arcam com os riscos de ofício “autônomo”, constroem uma das estruturas que mais enriquece empresas sem os custos gerados por uma relação de trabalho formal: através das chamadas vendas diretas, onde a vendedora direta é aquela que está ingressa no sistema de distribuição e venda de produtos de uma empresa sem ter nenhum vínculo empregatício com esta.
Em um primeiro momento, o perfil alcançado por essa espécie de ofício era de donas de casa, mães, de classe baixa, em sua ampla maioria negras, que de alguma forma enxergaram na oportunidade, uma forma de sustento e volta para o mercado de trabalho, tão difícil para esse segmento social. Com a estrondosa adesão, chegando a alcançar as brancas e da classe média, como uma forma auxiliar de complementação de renda ou para facilitar o consumo próprio, o modelo consolidou-se como uma forma das empresas lucrarem sem assegurar os mínimos direitos trabalhistas de suas empregadas, uma vez que a lei considera empregada aquele que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Assim como o serviço doméstico não remunerado, os serviços informais desempenhados por mulheres, pobres, em grande parte, negras, como costura, manicure, diaristas e revendedoras, enquadram-se ao segmento de serviços invisíveis, tendo em vista o gênero dominante que os desempenha historicamente. Por estarem à margem, ao mesmo tempo em que são estruturais para o mundo do trabalho, as mulheres negras e pobres representam um segmento fértil para teste de modelos de flexibilização de trabalho, que posteriormente poderiam ser aplicados perante um público mais amplo. Como ensina a socióloga Ludmila Costhek Abílio, estudiosa do fenômeno da uberização do trabalho e relações entre trabalho informal e gênero, “toda grande transformação que envolve a flexibilização das relações de trabalho tem início entre trabalhadoras do sexo feminino.”
Portanto, é fundamental que o campo progressista, bem como estudiosos, pesquisadores, militantes de movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos, atentem-se aos desdobramentos da cultura patriarcal frente ao mundo do trabalho. O debruçamento sobre desigualdades já conhecidas, como a dificuldade do acesso ao ensino superior, bem como as diferenças salariais entre homens e mulheres, é necessário, porém, uma análise radicalmente feminista e anti-racista sobre o trabalho no mundo contemporâneo, globalizado e tecnológico, é fundamental para as lutas que iremos encontrar no futuro.
Nós da Marcha Mundial das Mulheres acreditamos que a uberização do trabalho é um conceito que grita uma realidade de superexploração. Em um Brasil de bases coloniais e escravocratas, as mulheres pobres, ao mesmo tempo em que são colocadas à margem da política, economia e dos empregos formais, são protagonistas de uma imensa rede de relações informais, que tangem desde as ligações de afeto, até as relações provenientes do mundo do trabalho. Os aplicativos podem significar uma novidade, mas o projeto de flexibilização das leis trabalhistas é um projeto histórico e direcionado para a manutenção do sistema capitalista, cabendo às organizações de esquerda o dever de enxergar o mundo através dos olhos feministas, antirracistas, anti-LGBTfóbicos, decolonizados e socialistas, traçando assim novas formulações e construindo novos projetos e respostas de oposição frente ao plano de retirada de direitos dos governos e grupos ultra liberais e conservadores que crescem à cada crise mundial do capitalismo.
Referências Bibliográficas
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/23/economia/1558606597_597104.html
https://epoca.globo.com/tecnologia/noticia/2018/05/uberizacao-do-trabalho-no-seculo-xxi.html
https://apublica.org/2019/05/a-uberizacao-do-trabalho-e-pior-pra-elas/
Livro: Sem maquiagem – o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. (Ludmila Costhek Abílio)
*Luisa Caminha é militante da Marcha Mundial das Mulheres no Rio de Janeiro.