Por David Cordeiro*
Pois é, por todos os lados surgem associações, grupos de discussão e, daqui a pouco, até sindicatos de técnicos judiciários. E isso não é impossível. Já houve no Rio de Janeiro até sindicato de fabricantes de roupa branca para homens! É claro que o propósito aí era arranjar um jeito de fazer classista na Justiça do Trabalho, mas o método da especialização pode ser aproveitado para diversos fins.
Não deve tardar o surgimento de associações de secretário de audiência, calculistas, votistas e assessores de desembargadores. De diretores de secretarias já existe. A justificativa é que a especialização de entidades por segmentos ajuda a concentrar as atenções nos problemas de cada um. Por outro lado, a separação pode levar ao exagero de se pensar somente no próprio umbigo, vendo os demais segmentos como inimigos. O exemplo superlativo foi dado pelo pessoal do STJ que queria um PCS só para eles. Mas e quando a separação coloca os próprios separatistas num beco sem saída?
Quando fiz concurso para analista, nos idos de 1996, no edital constava que eu desempenharia uma série de atividades compatíveis com a escolaridade exigida para o cargo. No entanto, no primeiro dia de trabalho, percebi que os novatos eram designados para trabalhar “onde sobra”, independentemente de sua escolaridade ou das atribuições de seus cargos. Assim, um analista judiciário, de cara, era colocado no balcão de atendimento ou designado para fazer juntada, uma vez que as atividades mais complexas, como preparar os despachos do juiz, elaborar cálculos trabalhistas ou mesmo dirigir à secretaria do juízo, que exigem formação jurídica, contábil ou em administração, já eram desempenhadas por outros colegas, igualmente sem se levar em conta seus cargos efetivos. E isso era assim, porque os tribunais entendiam que as atribuições a serem desempenhadas pelos servidores não estavam ligadas aos seus cargos efetivos e sim às funções comissionadas e cargos em comissão que ocupavam. E essa situação esdrúxula, do ponto de vista administrativo, era legitimada pela inexistência de uma lei que descrevesse as atribuições dos cargos efetivos – auxiliar, técnico e analista judiciário. Então todo mundo podia desempenhar qualquer atividade e perceber qualquer gratificação, bastando para isso ser bem visto pelo superior ou pela administração, em geral. E essa situação permanecia legítima, enquanto os planos de cargos e salários nada diziam a respeito das atribuições dos cargos efetivos. E assim foi durante a vigência dos PCS I e II.
Com a edição da Lei 11.416/2006, a que chamamos de PCS III, tudo mudou (só do ponto de vista jurídico). Passaram a existir, expressamente, as atribuições dos cargos efetivos da nossa categoria. Assim, como pode ser verificado, pelo teor do Art. 4º da referida lei, as atribuições mais complexas foram destinadas aos analistas judiciários, como sempre deveria ter sido. E no que isso implicava? Implicava que, agora, as atribuições mais acuradas, gratificadas ou não com FC e CJ, que deveriam ser destinadas aos analistas. E mais: implicava que, a partir da vigência da nova lei, passava a ser desvio de função colocar técnicos e auxiliares em atribuições típicas de analistas, sendo a recíproca verdadeira. Portanto, desde a vigência da 11.416/2006, o que antes poderia estar certo passava a estar errado. Uma especialização que não interessou e não interessa aos técnicos e auxiliares.
Li com atenção os artigos escritos por colegas técnicos judiciários nos sites e fóruns de discussão da categoria. E a base de seus argumentos para defenderem a elevação da escolaridade para ingresso no cargo e a sobreposição de tabela é que eles sempre desempenharam atribuições complexas nos tribunais, ou seja, sempre trabalharam em desvio de função. Mas isso não seria usar o erro como argumento? Querem legitimar uma situação histórica e juridicamente errada?
Com o PCS III, o silêncio ao desvio de função foi total. E a falta de protesto dos técnicos se deve ao fato de o desvio ser generosamente compensado pelas funções comissionadas ou cargos em comissão que pudessem receber. Assim, um técnico judiciário designado para dirigir uma secretaria (atribuição complexa) não vai reclamar se receber uma CJ3 por esse desvio. Do mesmo modo, um analista não vai reclamar de desempenhar uma atribuição mais simples, se a outra opção for desempenhar a mais complexa ganhando a mesma remuneração. Assim, as determinações do Art. 4º da Lei 11.416/2006 são sistematicamente desrespeitadas para se manter um desvio de função vantajoso. E o recado da lei foi bem claro: “quer exercer atividades mais complexas e ser gratificado por isso, faça concurso para analista”. A especialização colocou os técnicos e auxiliares em um beco sem saída.
Para contornar a questão e manter a todo custo os desvios de função que beneficiam técnicos e auxiliares, os tribunais criam cursos de Administração Judiciária para os atuais chefes (muitos técnicos e auxiliares) ou inventam a tal da “Gestão por competência”, em que se leva em conta a formação técnica do servidor na hora de lotá-lo ou designá-lo para uma FC ou uma CJ, mas, também, despreza o cargo efetivo que ocupa. Parece que cargo efetivo não serve pra nada! Mas essas manobras não afastam a lei. Faz-se vista grossa, mas ela está lá.
Agora chegamos ao limiar do PCS IV. Como as diferenças entre as remunerações dos cargos efetivos vão aumentar com as novas tabelas, as associações de técnicos gritam sobre a igualdade, que todo mundo faz tudo e que é hora de sepultar de vez a especialização prevista pelo PCS III. É um fantasma que tem que ser exorcizado. Mas se esquecem que a pretensa igualdade se deve ao desvio de função que se perpetua no tempo.
Alterando a escolaridade do cargo de técnico, que passa a ser de nível superior, mais consolidados ficam os técnicos que atualmente desempenham atividades de chefia, combatido pelo Art.4º da Lei 11.416/2006. Alterando-se as atribuições do cargo de técnico incluindo as que hoje são típicas de analistas, legaliza-se o desvio de função, igualmente combatido pelo Art.4º da Lei 11.416/2006. Falta só sobrepor a tabela salarial. Aí surge o melhor dos mundos: o técnico desviado, que ocupa uma FC ou CJ atinente á chefia em confronto com o Art. 4º da Lei 11.416/2006, passa agora a ganhar a tabela remuneratória do cargo efetivo de analista. Só precisam depois convencer ao STF que isso não é mudança de cargo efetivo sem concurso.
A única maneira sensata de se enfrentar o problema seria criar um único cargo para a carreira, com igual escolaridade, atribuição e remuneração. Aí sim, todo mundo realmente seria igual. Agora, mantendo-se dois ou mais cargos, forçosamente teremos duas ou mais atribuições e remunerações. E os técnicos terão que aceitar o seu lugar.
*Davi Cordeiro é analista judiciário do TRT da 1ª Região, no Rio de Janeiro