Roberto Ponciano*
O Samba é uma música de crioulos. Quantas vezes não ouvimos, de forma fascista, racista e preconceituosa este dito. Porém, este dito, maldito e mal-dito, quando bem-dito da forma correta, vira um lema bendito, um lema de orgulho da negritude que ergueu este país. Num país doente de um racismo subterrâneo, não assumido, há que se responder com orgulho à afirmação racista de que o Samba é uma música de crioulos. Sim, é uma música de crioulo!
E nós, brasileiros somos todos crioulos. A última pesquisa genética feita no Brasil demonstrou que 80% da população brasileira têm genes negros, ou seja, uma imensa maioria. Os outros 20%, que não o têm, em breve, também serão “contaminados” por esta maravilhosa impureza que é a mistura de todas as etnias capaz de gerar um povo único. É um país mestiço com vergonha da sua cor, com vergonha dos seus ritos, com vergonha das suas crenças. Um país negro que se olha no espelho e se vê como se fora a Escandinávia. Se a cor branca é minoria no país, todavia é maioria no espelho, nos (de)formadores de opinião.
Desde a tenra infância um processo de esvaziamento de nossa substância nos faz crer, ao olharmos as babás eletrônicas de nossos filhos (apresentadores de “programas infantis” todas, sem exceção louras) que aqui é a Escandinávia. Olhos azuis ou verdes, pele clara, quase transparente, sobrenomes italianos, espanhóis ou até russos. Numa seleção parecida com o do campo nazista de Auschwitz, a máquina de fazer doidos, Ditadura da Imagem Única, executa sua “eugenia” surda contra os negros, contra os pardos, contra os nordestinos, mostrando desde cedo que o belo é ser branco. O negro não se mira no espelho, ele simplesmente não existe, ou existe como exceção, como o “diferente”.
Sim, não é por inocência que a TV faz isto, não é de forma inconsciente que ela trabalha. O racismo sempre foi a ideologia de dominação e manutenção do sistema de castas aqui do Brasil, e tem de ser perpetuado. Agora de forma camuflada. Todos apenas devemos fingir que ele não mais existe e ponto final… O Brasil é uma verdadeira democracia racial, o melhor país do mundo para se viver… Para os imbecis e alienados, só se for.
O que começa na TV e nas revistas fica explícito nas passarelas, perpassa toda a sociedade. Os negros são a maioria nas favelas, nos presídios, nos manicômios, na população jovem assassinada. Mas são a minoria nas universidades, na Ditadura da Imagem Única da TV, nos empregos de “boa aparência”: bancos, shopping centers, administração do sistema em geral.
A forma de manter esta sociedade brasileira de castas assentada de forma inexorável na cor do indivíduo é jamais discuti-la. Ignorar o racismo, como se ele efetivamente fosse apenas um ato de xingamento e não um processo de exclusão social, podar os excessos e manter tudo como está. Que se processem os fascistas exagerados que dão vazão a seus impulsos genocidas contra negros, índios, nordestinos e judeus. Que eles sejam encarcerados e mantidos sobre controle. Nisto todos concordam. Mas que sem mantenha ad eterno a diferenciação social precipuamente baseada na cor. Que tudo que lembre a negritude seja visto como exótico e pitoresco e que só sejam admitidos na sociedade branca negros reduzidos e esvaziados de sua substância, de sua negritude militante, de sua contestação a estar na jaula, na nova senzala chamada favela.
Os poucos negros que são admitidos na máquina de fazer loucos da TV cumprem (ainda que inconscientemente e contra sua intenção com indivíduos) o papel de mostrar que tudo está bem, que não há racismo, que efetivamente o negro foi integrado na sociedade. Integrado como maioria de “avos”. Um vinte avos nesta novela, um quinze avos naquela série, um décimo naquele grupo de sucesso pop. Enfim, cumprindo uma meta de ser minoria complementar à dominação branca, quando teria de ser maioria hegemônica que comanda o processo, não por ser negro, não pela simples cor da pela, mas por, efetivamente, como trabalhadores proletários sustentarem com seus braços a força desta nação.
Candeia há quase 40 anos dizia que quando o negro tomasse consciência de sua cultura ele seria um rei. Nem precisaria ficar macaqueando os negros americanos, pois saberia da riqueza de sua raízes, mais criativas e mais combativas que as do próprio negro norte-americano. Os negros brasileiros conseguiram manter para outras gerações suas crenças, sua ginga, suas músicas, seu batuque, suas danças, foram mais fortes e mais resistentes que os negros da América no Norte. Mas hoje olhamos para os nossos irmãos do Norte com inveja, como se tivéssemos mais a aprender com eles do que eles com nossa resistência. Eles tiveram o Black is Beautiful, lutaram na Guerra da Secessão, o belíssimo Jazz e movimentos de consciência que influenciaram irmãos por todo o mundo. E nós?
Nós tivemos os quilombos, as repúblicas negras, as guerras contra a dominação branca. A resistência nos terreiros, a insubmissão. A dança, a manutenção da religião, a música, as crenças, a disseminação da cultura para toda a sociedade branca. Nós temos o Samba, tão belo quanto o Jazz e muito mais rico e belo que o Rap. Podem me chamar de purista, romântico ou parado no tempo, mas não me conformo quando vejo um negro brasileiro tentar protestar cantando Rap, imitando o americano, tentando fazer graças a um amo que não lhe dá a mínima importância. Ao mesmo tempo em que protesta contra sua condição e pobreza, aliena-se de sua aldeia, de sua formação, vira as costas para toda a gestação de senzala, de terreiro de macumba, de batuque, de Jongo, de Samba, de capoeira, de resistência de séculos que nos alimentou e criou do meio da tristeza da escravidão, da miséria, da indigência, do fundo do Manguezal do Rio e de seus morros de pessoas expulsas da escravidão diretas para a indigência, de toda esta dor, conseguir criar a música e a dança mais sensual do mundo, metamorfoseada neste espetáculo lúbrico e sensual chamado Samba.
Negar o Samba, no fundo, é sentir vergonha de toda esta herança. Rap é muito bom, para os nossos camaradas negros americanos, para nós é uma mostra de submissão. Ou alguém pode imaginar um negro americano no Brooklyn tentando protestar batucando e gingando como faziam nossos ancestrais ainda na África? Temos muito mais a mostrar para eles de nossa herança do que eles têm para mostrar para nós. Num país doente de um imenso complexo de inferioridade, há que se manter até uma certe empáfia ao reconhecer este imenso legado cultural que mantivemos da mãe África, como semente e fruto, renascidos geração após geração, para ensinar aos nossos irmãos em todo o mundo. E que pode ser traduzido muito bem na palavra samba.
Temos que assumir o Samba como bandeira, até porque, até hoje a classe média nunca aceitou o Candomblé, nunca aceitou a Umbanda, nunca aceitou os ritos e as crenças negras. Um branco enegrecido com Vinícius de Moraes é logo vítima de preconceito, estigmatizado e ridicularizado. Agora, um negro embranquecido, convertido a alguma seita asséptica de influência norte-americana que passa a ver os ritos negros como festim do diabo, é prontamente aceito na sociedade branca. Negros assimilados, negros esvaziados de sua negritude. Que não mantenham crenças negras, roupas negras, falares negros, costumes negros. Negros que vistam o costureiro da moda e que cantam melodias que rimem nada com coisa nenhuma, que abracem o presidente fascista matador de crianças árabes, estes a sociedade dominante branca aceita, pois são inócuos a seu domínio.
Brancos de alma negra como João Nogueira, tão negro quanto Candeia ou Paulo da Portela, que do fundo dos terreiros trazem a vetustez de gerações e gerações de senzala, estes são perigosos, por que brandem na mistura do seu sangue o “Canto das Três Raças” na voz de Clara Guerreira.
Para esta classe média asséptica, reconhecer Clara Nunes como a maior cantora do Brasil lhe seria impossível, afinal, o caminho que ela escolheu era o de cantar “folclore” (a cultura “deles” é folclore, no Brasil o negro é visto como o outro), propagar crendices. Não era o samba esbranquiçado, esvaziado de sentido que se podia ouvir. Mas o Samba que cheirava a povo, que tinha barulho de feira, alarido de favela, gosto de comida de mãe de santo. Para este, resta sempre um lugar apendicular, diminuto, como exótico, como não cultura, como algo a ser festejado em algum dia esquecido da folhinha empoeirada, mas não como parte formadora da nossa alma brasileira.
Talvez nossa elite branca pense que com o tempo, com o esquecimento coletivo forçado através deste programa de esvaziamento da alma posto em andamento pela Ditadura da Imagem Única, possa se fazer a lobotomia em todo nosso povo e arrancar a parte negra de nosso ser. Arrancar a nossa parte mais criativa e mais sã para restar em nós uma estéril nação de bobos imitadores, que além de macaquear os norte-americanos, pouco ou nada sabe além de contar dinheiro que teima em cada dia nos fugir.
Contra esta lobotomia fascista, há que se erguer bem alto a bandeira de nosso Samba negro, Samba de crioulo, Samba de terreiro, Samba de Umbanda e Candomblé, Samba de raiz. Sim, o Samba é coisa de Crioulo, só que nós, queiramos ou não, de pele negra ou não, somos todos no fundo bem crioulos – neste país erguido sobre o sangue e o suor do trabalho do negro. Contra o esquecimento coletivo e a imbecialização geral e coletiva, recomenda, doses cavalares do autêntico Samba negro. Como fala Paulinho, Bebadachama…Chama Candeia, Chama Cartola, Chama Nélson Cavaquinho, Chama Mestre Marçal, Chama Argemiro, Nélson Sargento, Chama Noel, Chama Herivelton…
Chama de nossa alma! Todos negros sem exceção em seu espírito.
Roberto Ponciano -É coordenador da Fenajufe e representante sindical de base do Sisejufe, professor de Filosofia, mestre em Filosofia e escritor.