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Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no estado do Rio de Janeiro - Telefone: (21) 2215-2443

Primeira mesa do FSM Justiça e Democracia debate o racismo no judiciário

Representantes de movimentos e coletivos antiracistas do Judiciário falam sobre a urgência de
ações e políticas públicas para garantir os direitos da população negra no Brasil.

O racismo estrutural e seu impacto no sistema judiciário brasileiro foi o tema da primeira atividade virtual do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) realizada pelo Sisejufe em parceria como Sindiquinze, Sintrajufe-RS, Sindijus-PR e Sindjus-RS. Na mesa “Enegrecendo a Justiça: para além da política de cotas”,  seis servidoras negras e um servidor negro refletiram  sobre um país no qual 56% da população é formada por pessoas que se declaram pretas e pardas e que têm seus direitos julgados por um sistema que conta apenas com 18% de juízes e juízas negras; enquanto a parcela branca tem uma representação de 82% entre os magistrados.

A mediadora da mesa e assessora política do Sindicato, Vera Miranda, fez uma pergunta a todos os participantes que norteou o debate: Justiça é lugar de preto? De cara, a questão provoca inquietação e indignação já que se trata de pensar a representatividade no sistema judiciário em um país no qual um negro morre a cada 23 minutos, sob a impunidade e a omissão do poder Judiciário na aplicação das leis contra o racismo.

A vereadora de Porto Alegre Bruna Rodrigues, acredita que tem havido avanços no sentido de enegrecer o Judiciário. Bruna é de uma geração que encontrou algum tipo de acesso social a instituições notadamente de elite como as universidades. Filha de trabalhadora da limpeza urbana, a vereadora sabe o que é o legado da exploração do trabalho no Brasil. “Estar nesse lugar de vereadora é uma vitória do povo brasileiro”.

Para ela, apesar de todas as dificuldades encontradas pela população negra no acesso à Justiça, o fato de o Judiciário, como uma instância ainda tão elitizada, estar conseguindo refletir sobre o papel do negro na construção da própria Justiça já é um avanço. Mãe aos 16 anos, Bruna precisou fazer muita força para romper a barreira do racismo estrutural e chegar a ocupar esse espaço de representação política que é a Câmara de Vereadores. Está no seu primeiro mandato e é primeira vereadora negra da cidade. Está concluindo o curso de Administração Pública na UFRGS, sendo a primeira mulher da família a acessar a universidade. “Ainda precisamos avançar muito no sentido da ocupação da Justiça e esta precisa avançar muito no sentido de conseguir alcançar um patamar onde seja de fato um espaço de todos e todas”.

Perspectiva do usuário

Andrea Ferreira, diretora do Sindjus-PR e integrante do Coletivo Maria Agda, diz que a resposta depende da “cor do judiciário”, de quem são os juízes que o usuário vai encontrar quando acessa a Justiça. Andrea trabalhou como assistente social das varas de assistência e juventude e em uma vara criminal. “A gente vê bem essa discrepância. No quantitativo grande de pretos e pretas encarcerados, em como eles são julgados, mas também nas varas da infância e juventude. Nos casos de destituição do poder familiar, quem são as famílias que chegam até nós, como uma mãe preta sozinha que acaba sofrendo o processo de destituição. Como ela é vista pelo juiz, a relação do papel historicamente concedido aos pretos e pretas, um papel de servidão e subserviência”.

Andrea acredita no processo educacional como instrumento de transformação e que é preciso fomentar a discussão do racismo estrutural dentro do Judiciário, através dos coletivos e comitês, incluindo promotores, juízes e servidores não negros. “Tudo que soube dos meus ancestrais foi dentro da minha casa, tive essa oportunidade, uma realidade que é da minoria dos pretos e pretas desse país. Estamos num momento já muito vitoriosos por conta dessas discussões que estão acontecendo. Vemos esse debate na mídia, estão sendo obrigados a falar, as coisas estão acontecendo”.

Para a dirigente, é preciso também apontar o racismo dentro dos próprios tribunais e questionar os desembargadores, presidentes de tribunais sobre o que fazer. “Qual vai ser a postura dos tribunais? Vamos provocar de dentro para fora”, sugere.

A luta antiracista é de todas e todos

Luiz Mendes (integrante do Coletivo de Igualdade Racial do Sindjus/RS – CIRS), militante do movimento negro no Rio Grande do Sul falou da falta de representatividade no sistema. “A luta antiracista não é de negros, mas de negros, branco, índios, amarelos, porque o racismo destrói toda a sociedade. O judiciário foi criado pelos brancos, pela elite branca, temos um número ínfimo de negros e negras, tanto como servidores como magistrados. Luiz contou sobre a demora implementação da reserva de vagas para concurso no Judiciário do RS, que só foi efetivada em em 2019. “O Rio Grande do Sul criou uma lei estadual de cotas, mas o Judiciário barrou. Aí entramos como uma ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade) que o próprio Judiciário julgou, por isso fomos a última região aplicar as cotas raciais”.

Luiz diz que no Tribunal de Gauiba, onde está lotado, apenas ele e um colega se reconhecem como negros. “Esse é mais um problema. Enquanto o povo negro não se reconhecer identitariamente como negro, com certeza vamos passar muita dificuldade para enegrecer uma sociedade estruturalmente e institucionalmente racista.  Essa Justiça que está posta não garante nossos direitos, nossa população está sendo exterminada. Jovens negros de 14 a 24 anos estão sendo exterminados pelo próprio Estado”, disse emocionado.

Luiz lembrou que o Brasil foi um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão. “Centenas de anos e milhares de mulheres e homens que foram arrancados de mãe África e distribuídos pela diáspora. E, mesmo assim, a elite brasileira não reconhece que houve essa escravidão que com uma falsa abolição pôs toda a população negra nas periferias das cidades, nas cadeias e nos presídios”.

Para o militante é preciso que a luta antiracista ocupe o Judiciário e que é preciso conscientizar também os brancos de que o racismo é problema que diz respeito a toda a sociedade. “Precisamos invadir a Justiça, a nossa negrada tem que invadir a Justiça e cobrar da Justiça que o acesso seja para mulheres, homens, negros ou não negros, mas principalmente para a população negra desse país”.

Justiça tem que ser preta

A comunicadora social Patrícia Santos falou sobre a experiência do Coletivo Negro da Justiça Federal do Rio de Janeiro e da criação do Comitê de Equidade Racial no Tribunal.  Patrícia diz que sempre se incomoda quando entra em uma reunião e não encontra um servidor negro ou negra entre os gestores. Ou em um evento para magistrados no qual não há nenhuma juíza ou juiz negro. “A justiça é preta? Não é, mas a gente precisa fazer que com que seja”. Patrícia montou o comitê convidando alguns colegas pretos e tem orgulho de dizer que se aproximaram porque são pretos. “Falei vamos nos unir, precisamos falar sobre isso. Estamos em um espaço ainda pequeno apesar de só termos um ano, mas muito coeso, mas muito livre para fazer esse debate”. Para a servidora, os integrantes dos coletivos precisam se instrumentalizar para fazer pequenas revoluções no cotidiano. “Temos que aparecer e mostrar que vamos continuar brigando e que não dá para aceitar que esse espaço não seja para pretos”.

JRFJ cria comitê de equidade

Para Bethe Fontes, também do Comitê de Equidade Racial da JFRJ e representante de base do Sisejufe-RJ, a política de cotas ameniza a situação de desigualdade racial e põe em prática a isonomia, a igualdade entre os iguais. Uma das suas preocupações como militante é conscientizar os servidores negros a ocupar o seu espaço nas instituições. “A gente deve prestar atenção a um dado do CNJ: 42,4% do Poder Judiciário não informa sua raça”. Para Bethe, o trabalho do comitê faz parte de uma série de ações que vão lançar luz sobre o racismo e a discriminação de gênero dentro da instituição. “É reconhecimento institucional de o racismo está presente no sistema”.

A falácia da meritocracia formal

A dirigente do Sintrajud-RS Roberta Vieira acertou em cheio na ferida aberta do racismo na sociedade brasileira ao falar sobre a falácia do que chamou de meritocracia pura.  Roberta diz que a afirmação constitucional de que todos são iguais perante a lei nos leva a pensar que a a ascendência e a condição social das pessoas são irrelevantes no processo de constituição do indivíduo. “Esse princípio é uma meta e não o ponto de partida”, diz.

Leis segracionistas

Segundo ela, a igualdade formal da constituição ajudaria a justificar e aplicação de uma meritocracia pura, que estabelece o mérito individual como critério único de distribuição de bens na sociedade. Para comprovar sua tese, Roberta destacou as leis de caráter segregacionista que deram o contorno ao racismo estrutural no Brasil. “A Constituição de 1824 que proibia negros de frequentarem as escolas e, em 1837, a Lei Primeira, artigo terceiro, que proibia de frequentar as escolas públicas todas as pessoas que padeciam de moléstias contagiosas, os escravizados e os pretos africanos ainda que livres ou libertos. A brancura do judiciário brasileiro não é fruto de uma verdadeira meritocracia, como gostam de dizer. Quem define qual é o mérito na sociedade são pessoas brancas, ricas e proprietárias, como nível superior, na maioria homens e que ocupam espaços de poder”, destacou.

Privilégios como herança

Para Roberta, a sociedade brasileira se configura muito mais como uma aristocracia do que uma sociedade baseada na meritocracia. “Uma sociedade aristocrática que se utiliza de um discurso meritocrático descontextualizado para manter privilégios passados de geração em geração que envolvem bens, recursos, status e até mesmo contatos. Essa defesa da meritocracia pura não passa de uma defesa da hegemonia branca e masculina”

Como enegrecer o sistema?

Roberta avança na discussão e diz que são necessárias políticas de governo que proporcionem o acesso ao estudo de pessoas negras ao concurso público dentro do judiciário, mas também que garantam a sobrevivencia dos candidatos no período preparatório e durante as etapas do concurso. “Representatividade importa, mas não apenas isso. É importante que a gente seja capaz de nos mover para além da noção de representatividade e seguirmos na direção do critério da proporcionalidade”.

Quem nunca viu uma atitude racista?

Há 25 anos como servidora da Justiça Militar, Renata Nascimento, representante de base do Sisejufe-RJ), chamou a atenção da Justiça como um lugar apenas do jurisdicionado. “Esse é basicamente preto. Agora, do lado do servidor, do magistrado, a história é outra.  A nossa história é de muita luta, de muita dificuldade, a gente tem que fazer três vezes mais. Até acreditava nisso, mas não, a gente pode fazer mil vezes mais que vai continuar sendo presa, sofrendo racismo, preconceito e indiferença”, lamenta.

Roberta contou que participou de muitas audiências, mas não tem lembrança de ver a igualdade constitucional refletida nas sentenças, nem mesmo nas falas dos magistrados do ministério público. “Se dentro de um órgão do poder judiciário a gente tiver que falar para um juiz que não é legal essa diferença, o que mais temos que fazer? Então, as pessoas sabem que isso ou aquilo não é legal”, critica.

A representante do Sisejufe acha que o movimento tem que denunciar qualquer prática de racismo dentro do sistema jurisdicional. “Quem nunca viu uma atitude racista?”, questiona.  “A gente costuma falar muito do povo negro que está ali na condição de réu, lotando as penitenciárias, isso é fato, e não podemos deixar passar despercebido, mas a gente esquece da parte do Direito. Isso é uma questão que pouco se fala. É papel do Judiciário alertar a população que o Direito é para todos. A gente não vê o povo preto nessa parte”, diz.

Criminalização da cor

A assistente social e coordenadora do Sindijus-PR, Andrea Ferreira, trouxe como exemplo do racismo internalizado pelo sistema a sentença racista proferida pela Juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, em junho de 2020.  Na sentença, a magistrada branca acusa um homem de praticar os crimes por ser negro. “Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente”, escreveu Zarpelon na página 107, de 115, de sua sentença.

“O que me angustiou mais do que a decisão foi a repercussão entre os servidores do Tribunal nas redes sociais com muitos defendendo, querendo explicar o inexplicável”, relatou. A magistrada ainda foi absolvida pelo pleno do TJ de Curitiba. “Quebrar o silêncio é uma das coisas importantes, falar abertamente do racismo estrutural, ainda mais quando quando ele é exposto de uma maneira clara, nítida em uma sentença judicial”, denuncia.

Para Andrea, é fundamental denunciar que o direito penal no Brasil “não protege os jovens negros, os terreiros de candomblé, as comunidades quilombolas, as mulheres negras e tudo isso acontece nos nossos tribunais”. A servidora ainda falou sobre o tempo que esteve nas varas tribunais e nas da infância e juventude teve a percepção da importância do seu papel enquanto mulher e negra dentro dessa instituição. “Sentada assistindo não dá pra ficar, não tem como a gente se calar”.

Romper com o silêncio

A servidora acredita que romper com o silencio é desenhar o retrato do negro e da negra no Brasil e conhecer as raízes dessa população. Para ela o papel do movimento dentro do poder judiciário e, também, dos sindicatos é, dentre outros, promover, ações práticas de reconhecimento da identidade negra. “E imprescindível conhecermos as nossas raízes. Temos muitos colegas que não se reconhecem como negros. Aqueles negros e negras que vieram, vieram sequestrados, foram sequestrados, violentamente arrancados de suas terras. Quando estudo aprendo que eles eram reis, guerreiros, guerreiras e que tinham uma cultura e uma religiosidade linda. Quando você sabe de onde veio, sabe aonde quer chegar”, concluiu.

 

Manuella Soares, jornalista, Especial para o Sisejufe.

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