Por Roberto Ponciano*
Onde você guarda seu racismo? O Brasil é um país racista, muito racista, de um racismo estrutural, excludente e genocida. Desde a abolição da escravatura se perpetuou o credo do “brasileiro cordial” e da “democracia racial”. Ali Kamel não inventou nada, ele só repete a mentira das elites de que uma mentira dita mil vezes vira uma verdade. Afinal, não tivemos Klu Klux Klan (KKK), nem negros queimados na cruz, não precisamos fazer uma luta pelas liberdades civis ou algum movimento “Black is Beautiful”. No Brasil todos são tratados com respeito. Mentira, mentira, mentira, mil vezes mentira!
Os negros são 60% da população de baixa renda (e talvez mais, por conta do “embranquecimento” dos questionários), mas apenas 30% da classe média e 17% da classe alta. Ou seja, no Brasil, a classe dominante se declara 83% branca. Com as distorções derivadas dos questionários, isso implica em um sentimento de classe dominante, que é racista e vê com ojeriza e raiva a ascensão social de negros. Basta olhar a raiva pelo Bolsa Família. Se há uma preconceito social disseminado e feroz contra a ascensão social de qualquer pobre, o Bolsa família representa a verdadeira raiva que a elite tem. E, quando se é negro, a dificuldade é dobrada, aí o preconceito é duplo. Por isso as cotas raciais nas universidades geram tanta fúria.
O Brasil não pagou o passivo da escravidão, a República não pagou e nossa Nação tem esta dívida para com os negros. Ora, se é justo (e é justo) pagar indenização para quem foi perseguido, preso, exilado ou pagá-la a quem foi morto pela ditadura, o que dizer aos familiares descendentes de escravos que tiveram seus avós arrancados á força de suas casas, submetidos a um trabalho brutal, suas mulheres estupradas e usadas como mucamas? Tudo foi “apagado” pela abolição? Não, não foi! Os descendentes dos que foram raptados na África foram submetidos á mais crassa miséria nos guetos e favelas do Brasil. A escravidão não foi abolida, ela foi extinta por ser economicamente inviável. “Livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela”, cantava a Mangueira (quilombo urbano) no centenário da Abolição (samba de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho).
As cotas servem para acender o debate do racismo, para mostrar que os negros são maioria na favela, na prisão, mas minoria na universidade. Não espanta que uma jornalista dissesse que “esta médica cubana parece com minha empregada doméstica”, tirando o racismo da declaração, parece mesmo. Os negros são empregados domésticos não apenas nas novelas da Globo, que propaga e dissemina o racismo com seu padrão de beleza nórdico. Médico negro, no Brasil, é minoria. Me emocionei e fui quase às lágrimas conversando com médicos negros cubanos, quatro deles, todos negros, que explicaram que mesmo em Cuba era assim. Antes da Revolução, negro era engraxate, motorista, porteiro, agora é médico, cientista, general.
O racismo brasileiro é pérfido, é mudo e “cordial”; desde que o negro saiba de seu lugar na sociedade; desde que não queira revirar a sociedade de ponta-cabeça; desde que não queira ocupar lugar de branco, de sinhozinho. O Brasil ainda é a sociedade da casa grande e da senzala, lugar de sinhozinho é no Alto Gávea, na universidade pública, nos cursos de ponta, ou nas PUC e nos melhores empregos. Negro? Ora, com o lugar que sempre teve, e agradeça ao fato de o Brasil ser uma democracia racial e não haver racismo – afinal, vivendo com os piores salários, em empregos informais ou ganhando salário mínimo, morando nas favelas -, ainda assim não são espancados pela elite branca.
Já dizia Candeia: “E cante o samba na universidade, aí sim tu verás que teu filho será livre de verdade”, o grande poeta sabia que ou o negro fazia sua emancipação ou continuaria escravo da elite branca. Não são? E quem é revistado pela polícia? Quem é expulso pelas remoções? Quem é morto no grande genocídio que se faz ano a ano no Brasil?
Efetivamente, este artigo não serve apenas para isso, para reclamar. Se assim fosse, cairia no lugar-comum, afinal, tudo que eu disse acima, muita gente já disse. Mas digo mais, somos racistas e perpetuamos o racismo. A esquerda brasileira que se diz “progressista” e contra homofobia, o racismo, o machismo etc, não é a mesma esquerda que, nas cátedras da universidade, principalmente as públicas, exclui trabalhadores de seus cursos em nome da “excelência acadêmica”? Ora, cerca de 20% dos universitários trabalham, ou seja, 80% não trabalham (ou melhor, não precisam trabalhar), isso mantém e perpetua o racismo ou o machismo estruturais.
Universidade branca, de classe média para homens e mulheres que não precisam trabalhar. A sanha de nossa “esquerda revolucionária” contra os cursos de período único, manhã ou noite, ou contra pós-graduandos que trabalham, atingem no coração e excluem exatamente quem mais precisa. Cerca de 40% dos lares são mononucleares comandados por mulheres. São essas mulheres que têm que cuidar de seus filhos e, dentre elas, as que não tem com quem deixá-los, a maioria é negra e pobre. Os trabalhadores que não podem parar de trabalhar (maioria de negros, também), em nome do preconceito revestido de “excelência” acadêmica, também são excluídos das universidades. Mas a esquerda que comanda esses cursos e essas cátedras, assim como Ali Kamel, não vê nenhum racismo nisso. São brancos falando, pregando e estudando o racismo e evitando que os negros entrem na universidade para também estudá-lo.
E isso é apenas um exemplo de como entre o discurso e a prática medeia uma grande distância. Há certo “pragmatismo revolucionário” de algumas correntes que acreditam que o problema do racismo é o capitalismo. Outra mentira! Rússia e Cuba fizeram a revolução e em poucos lugares no mundo há tanta homofobia quanto na Rússia. Em Cuba a homofobia somente começou a ser debatida e combatida faz pouco tempo, e o machismo do cubano é continentalmente famoso. Estas pautas transversais não se resolvem por si só. O racismo é bem combatido em Cuba, tanto na estrutura, quanto no discurso, mas teve e tem que ser combatido, ele não é simplesmente uma pauta que se resolverá por si só no socialismo. Afirmar isso é o mesmo que jogar a sujeira para debaixo do tapete. Na ideologia dominante, o negro não tem religião, tem seita; não tem cultura, tem folclore. Tudo que seja referente ao negro é de uma beleza “exótica”, “folclórica”, ou “culto de tradição”. O que é uma imensa bobagem e uma forma de manutenção de racismo disfarçado de concessões à cultura negra.
A mitologia afro-brasileira é tão rica quanto a greco-romana. Sua religião é uma religião, não uma seita, que não aceita ser demonizada ou vista como menor ou inferior. E esse debate tem de ser feito agora, desde o primeiro momento e não jogado-o para uma messiânica revolução futura.
Poucos sabem quem foram os negros e os índios que ensinaram higiene ao branco que, baseado em preconceitos religiosos instituídos por um preconceito do corpo católico, simplesmente não tomavam banho. O banho diário e o cuidado do corpo, sem preconceito de nudez e sem culpa sexual, eram elementos da cultura negra e indígena, sinais inequívocos de avanço contra o preconceito medieval.
Para terminar, organizando um debate, um seminário nacional de racismo numa federação de servidores do Judiciário, que já tem 25 anos, há dois dias do debate da questão negra, temos 12 pessoas inscritas. Isso em uma federação que tem sindicatos em 26 estados. Na pesquisa que fizemos na base do Rio de Janeiro, somente 5% responderam que eram “negros”. É claro que os negros no Judiciário são minoria, mas os índices das respostas estão abaixo de qualquer questionário racial, inclusive feito na classe dominante. Isto demonstra inequivocamente o nosso racismo. Temos os “crespinhos”, os “marrons”, os “queimadinhos”, os “moreninhos” e uma dezena de designações chulas que disfarçaram a negritude desde que o dono de engenho estuprou as mucamas e gerou filhos bastardos que, para todos os fins, seriam “não negros”. Os índices mínimos de negros no Judiciário, 5%, mostram um “embranquecimento” forçado das consciências e diminuta participação no seminário (levando-se em conta que qualquer debate jurídico junta todos os 26 estados da Fenajufe) mostrando claramente que conservamos à Ali Kammel, o racismo nosso de cada dia.
Ao se falar da questão do racismo, se fala entre dentes, ironicamente, diretores do Sisejufe já disseram, na minha cara, que “levei a macumba ao sindicato” ao convidar o Jongo da Serrinha para fazer espetáculos. Aliás, numa direção de 24 diretores, apenas três se inscreveram no debate do racismo, o que demonstra que, inclusive, no meu sindicato, o racismo é uma questão menor. Mas não é somente no meu sindicato. É no meu e em todos os demais!
Imaginem que um dos sindicatos enviou brancos que estavam em outro evento para “prestigiar o seminário”. Prestigiar de verdade seria convocar os negros da base do sindicato para debater o racismo no seminário; um outro da base da federação, no dia da semana negra, chamou um debate com acadêmicos brancos e não mandou seus negros que desejavam debater o que sofrem com o racismo, ao debate que lhes interessava. Casagrande mesmo, tutelando a senzala e dizendo, inclusive para ela, como se deve debater o racismo.
Onze inscritos em um seminário nacional de racismo mostra que guardamos, a sete chaves e como segredo nosso, o racismo nosso de cada dia.
*Roberto Ponciano é diretor do Sisejufe e da Fenajufe e mestre em Filosofia