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O dia a dia dos intensivistas: exaustão, trabalho braçal, ansiedade e medo pelo afrouxamento do isolamento social

Médicos alertam para saturação de hospitais da rede particular do Rio e estimam que pico pode virar platô

RIO – Jornadas intermináveis de trabalho que já os levaram a um nível nuncaantes sentido de exaustão física e, principalmente, emocional. Com o sistema de saúde  público colapsado e o privado saturado, já registrando demoras no processo de internação, médicos intensivistas que estão na linha de frente do combate à pandemia de coronavírus temem que a baixa adesão ao isolamento social em estados como o Rio de Janeiro possa provocar verdadeira catástrofe sanitária. As imagens de pessoas caminhando nas ruas, em muitos casos aglomeradas, são hoje um de seus principais motivos de angústia, contaram em depoimento ao GLOBO. Dentro dos hospitais onde trabalham, afirmam nunca terem tratado tantos pacientes em estado tão grave ao mesmo tempo. Diante de uma doença para a qual hoje ainda não existe tratamento, afirmam estar “trocando pneus com os carros andando”. Alguns casos provocam baques profundos, sobretudo quando devem entubar algum médico conhecido ou até mesmo amigo. Num Brasil que hoje já é o sétimo país mais afetado do mundo pelo coronavírus, com 179 mil contágios e 12.4848 mortes, os intensivistas sentem que o pico alcançado pode acabar virando um platô pelo afrouxamento das medidas de distanciamento social. No Rio, já são 18.494 infectados e 1.984 óbitos. Para estes médicos, cada morte é uma derrota difícil de digerir e que, em alguns momentos, os faz chorar copiosamente pela impotência de não conseguir salvar mais vidas.

 

Dr Rodolfo Espinoza – Instituto Nacional do Câncer (Inca) e Copa Star
No domingo do dia das mães, foi o primeiro dia que não pisei um hospital em três meses. No Inca, por falta de recursos humanos, passei a dar assistência no plantão. Estamos organizando nosso trabalho diariamente, tomando decisões a medida que as situações vão aparecendo. Nos hospitais particulares do Rio já falta vaga em alguns momentos, sobretudo na Zona Sul. Fim de semana passado, só não tivemos um colapso porque abrimos novos leitos. Em muitos momentos temos 100% de ocupação na rede privada e, em média, estamos em 90%. Sou intensivista há 20 anos, nunca vivi nada parecido. Na rede privada sou coordenador de CTI e estamos ampliando os leitos permanentemente, lidando com falta de médicos, contratando profissionais, dando ânimo à equipe porque não podemos deixar a peteca cair. Todos estamos trabalhando muito, estamos foçados. Quem se contagia, volta da quarentena muito engajado, querendo ajudar, isso é muito bonito. Mas também é verdade que existe muito medo. Semana passada, tive de entubar um residente meu de 29 anos, esse momento foi muito duro pra mim, um dos mais duros até agora. Temos colegas internados, muitos com respirador e em estados graves. Ainda desconhecemos muitas coisas sobre esta doença, eu, pessoalmente, nunca vi tanto doente grave em quantidades tão grandes. Este é um desafio para todos. Estamos no pico, muitas pessoas estão morrendo, nos hospitais públicos e privados. A mortalidade é maior da que está sendo apresentada e me parece impressionante que algumas pessoas ainda neguem essa realidade. Fico indignado com isso, e muito preocupado. O que mais nos derruba é o cansado mental. Não desligamos nunca, ou estamos no hospital ou em casa. E muitos médicos têm problemas para dormir. Muitos estão ansiosos pensando se ficarão ou não doentes. Não existe tratamento para a Covid-19, nós apenas damos suporte aos pacientes. O que está salvando vidas é ter CTIs multidisciplinares, porque são doentes difíceis de manusear, tudo é muito complicado. Estamos aumentando nossa equipe, chegamos a contratar 30 médicos em 48 horas. Para nós, que estamos enfrentando todos os dias essa pandemia, ver a desconformarão e o descaso é terrível, o sentimos como uma afronta ao nosso trabalho. No Inca, a Covid está tomando conta de todos os leitos e nosso medo é que afete os tratamentos oncológicos. O grande dilema no Inca é se tratamos as doenças que são tempo dependentes, as que precisam de uma cirurgia ou quimioterapia, ou evitamos expor nossos pacientes à Covid. Sou casado e tenho três filhos, os dois mais velhos moram com minha primeira mulher e vejo pouco. O pequeno, de dois anos, me vê saindo de casa cedo e voltando tarde.  E sabemos que esta será nossa vida por muito tempo.

 

Dra Roberta Lima – Intensivista no Copa Dor, anestesista e cardiologista no hospital da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Fiquei viúva há dois anos e tenho uma filha de oito anos que se chama Clara e todas as noites me espera para brincar de amarelinha em casa. Trabalho muitas horas, alguns dias chego meia noite em casa e minha filha está lá, me esperando. Sou asmática, ainda não me contagiei e espero continuar assim. Estamos todos preocupados pela saturação dos hospitais, ainda temos espaço para crescer, abrir novos leitos de CTI, mas nosso.grau de elasticidade tem um limite. Já redistribuímos vários setores do hospital e hoje vários andares são CTIs de Covid. Vemos um limite nisso, muito claro. Por isso o isolamento social é tão importante. Hoje temos medo de um pico maior pelo afrouxamento, essa é nossa maior preocupação. Algumas pessoas preferem não enxergar o que está acontecendo, querem manter sua vida como ela sempre foi. Mas nosso capacidade de atender a demanda depende do isolamento. Também temos dificuldades pelo estresse que vivemos. Tratamos doentes muito graves, que desenvolvem muitas disfunções ao mesmo tempo, isso vai exigindo um trabalho braçal enorme. Temos um setor de descompressão, onde podemos tirar as máscaras,  nos desparamentar, porque é muito pesado, em todo momento. São muitas horas, a máscara machuca nossos rostos, tudo vai gerando uma angústia muito grande. No sistema público é ainda pior e já soubemos de casos de enfermeiras que tiveram o chamado burn out, arrancaram tudo no meio de um plantão e foram embora. As pessoas ficam descompensadas. Alguns casos são muito difíceis de lidar. Tive um homem que faleceu e seu filho não quis entrar para reconhecer o corpo, tinha medo de se contagiar. Não quis sequer me dar o celular dele para tirar uma foto. Acabei tirando uma foto com o meu celular, aqui ainda tenho em meus arquivos. Para o filho de meu paciente foi um alívio que eu tirasse a foto, ele estava muito assustado. As jornadas são de muitas horas, emagrecemos, apesar de tentarmos nos alimentar bem. Tentamos nos manter em equilíbrio, no meu caso, faço meditação, escrevo, busco maneiras de canalizar o estresse. Tento ajudar e esclarecer, porque vejo muita gente sem ligação com a realidade. Até mesmo pessoas próximas.

 

Dr Luiz Simvoulidis – Coordenador de CTIs do hospital da Barra da rede Unimed-Rio
No domingo do dia das mães, me vi chorando copiosamente quando perdi uma paciente de 70 anos, mãe de três filhos. Temos uma sobrecarga emocional enorme, e algumas situações nos derrubam. O isolamento dos pacientes é uma dificuldade tremenda, naquele dia tive de informar a essa família que a paciente não tinha conseguido sobreviver. Eu a conheci no hospital, ela ainda estava lúcida. Rapidamente apresentou uma piora importante, foi levada para o CTI com falta de ar e em menos de 24 horas estava entubada. Acabou falecendo no dia das mães. Na véspera, quando vi que o caso estava ficando muito grave, ofereci aos filhos que enviassem uma mensagem gravada por vídeo pelo celular. Foi uma angústia muito grande, uma sensação de impotência, de estar enfrentando um inimigo desconhecido. Não temos muito o que fazer, esta é uma doença nova sobre a qual sabemos muito pouco. Estamos trocando pneus com os carros andando. Tudo o que podemos oferecer ao paciente são tratamentos de suporte. Esta mulher era uma pessoa saudável, sua morte foi um baque. Estamos habituados a lidar com a vida e a morte, mas com uma doença viral e fulminante é difícil aceitar que uma pessoa de 70 anos, que ainda tinha bons anos de vida pela frente, se foi dessa maneira. Hoje temos 54 pacientes, quase o dobro que costumávamos ter em nossa CTI e estamos falando de apenas uma doença. Ainda não chegamos no limite, às vezes é preciso esperar um pouco, mas conseguimos vaga. A demanda está aumentando e como nos antecipamos e nos programamos, estamos atendendo todos os doentes que chegam. Nosso maior limite são os recursos humanos, porque precisamos de atendimentos especializados e você não consegue formar intensivistas em todas as especialidades. Estamos enfrentando a pandemia com uma equipe muito unida, focada e conseguimos lidar com a doença. Mas todos os dias os problemas vão aparecendo, médicos e enfermeiros ficam doentes, aumenta nossa carga de trabalho e existe uma exaustão. Um ambiente propício para casos de esgotamento físico e mental. Precisaríamos dar folgas para que as pessoas façam uma higiene mental, mas muitas vezes não podemos porque ficamos sem profissionais. O que mais nos dá alento é ver os pacientes que se recuperam, isso nos mostra a todos que os esforço que estamos fazendo vale a pena. Trabalhamos até 60 horas por semana e no meu caso, por exemplo, tive de agregar ao trabalho de coordenação do CTI o dice assistência a pacientes, porque todos temos de reforçar as equipes. Hoje, o que nos salva é o isolamento, se ele afrouxar muito chegaremos ao nosso limite. Sem isolamento, já estaríamos num ponto de ruptura. Minha esposa também é médica intensivista, temos dois filhos de 8 e 14 anos, que já tiveram alguns sintomas. Eu já me contagiei, mas foi bem leve. Quem ainda não se infectou tem muito medo, cada profissional vê os doentes graves como um risco, teme ficar do mesmo jeito. Já sabemos que esta doença afeta a todos, perdemos amigos médicos e enfermeiros.


Dr David Sulfiate – Intensivista do Centro Hospitalar da Fiocruz, hospital Clementino Fraga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Copa Star
Desde que a pandemia começou, minhas jornadas de trabalho se ampliaram de forma expressiva. Estou trabalhando 130 horas por semana, bem acima das 90 horas que costumava trabalhar. Gostaria muito que as pessoas entendessem que esta doença é grave e está nos ensinando a ser pacientes e resilientes, está mudando o contexto social em que vivemos. Gostaria que ajudasse a que todos pensássemos mais no outro, porque a Covid-19 afeta a todos, qualquer pessoa pode adoecer. No último final de semana, havia fila de espera em hospitais particulares da Zona Sul. Eu não falaria em colapso do sistema privado, mas sim em saturação. Em muitos hospitais públicos  já não se consegue vaga, sobretudo nos hospitais que chamamos de portas abertas, esses são os que estão em estado mais crítico. Vemos casos graves em todos os hospitais, esta doença diminui as distâncias sociais, temos pacientes em estado muito delicado nos hospitais públicos e privados, e perdemos pacientes em todos os hospitais. Nosso trabalho é incansável e o que mais nos desgasta é o contato com os pacientes, porque não somos apenas médicos, acabamos sendo também psicólogos, ajudamos a conter a angústia emocional. Lidamos com desfechos desfavoráveis todos os dias, é uma situação que exige demais da gente. Exige estabilidade emocional em dias em que, no meu caso, cheguei a perder sete pacientes em 24  horas. E os pacientes estão assustados, ficam sozinhos, é tudo muito difícil. Vemos colegas morrendo, professores de faculdade, amigos que adoecem o tempo todo. Perdi um professor que tinha apenas 41 anos, estava internado num hospital particular. Estamos num pico, mas no Brasil esse pico será um platô por nossa dinâmica social. As aglomerações continuam e assim os doentes continuarão chegando. Para a curva que se espera, não há leitos suficientes e por isso o isolamento social é tão necessário.

 

Fonte: O Globo – Janaína Figueiredo 

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