Jacques Gruman*
A moral dos políticos é como elevador: sobe e desce. Mas, em geral, enguiça por falta de energia, ou então não funciona definitivamente, deixando desesperados os infelizes que confiam nele (Barão de Itararé)
Eram as campanhas para governador da Guanabara e presidente da República. Entre uma pelada e outra, o Menino via os adultos da vila falarem de um tal de Corvo. Estranho. O que um pássaro negro, diziam agourento, tinha a ver com política ? Circulavam santinhos em papel precário, de padaria. Em algumas casas, maioria talvez, cartazes com o lema “Vote JAMILA” (Jânio Quadros para presidente, Milton Campos para vice, Carlos Lacerda para governador). Os pais não conversavam com o Menino. A vizinhança, de baixa classe média, tinha de aposentado de pijama listrado e chinelão a vendedor de margarina, de recruta do exército a uma solteirona viciada em radionovelas. Gostavam das penas lustrosas do Corvo e do histrionismo populista da Vassourinha (“Varre, varre, vassourinha/varre, varre a bandalheira”: http://www.youtube.com/watch?v=m0QfM_IJsBw). Falavam de um “Brasil moralizado”, lema tão caro à tradição udenista. Mas isso, o Menino só descobriria muito mais tarde. Também descobriria que os defensores da “moral” eram golpistas profissionais e oportunistas camaleônicos. Jogaram combustível na caserna e nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, e surfaram na lama da ditadura militar.
Leio que o governador Sérgio Cabral acaba de sancionar uma lei que institui o Programa de Resgate de Valores Morais, Sociais, Éticos e Políticos. Cheguei a pensar que o Corvo tinha ressuscitado. Fui à fonte. O texto da lei é uma saraivada de clichês patéticos, grotescos, típicos da onda conservadora que se abriga em grotões parlamentares e setores da sociedade civil. Fala-se, com desenvoltura e sem a menor cerimônia, em “fortalecer as relações humanas”, “promover o resgate da cidadania”, “valorizar a família”, “alicerces espirituais”. Como se fosse papel do Estado impor comportamentos sociais fechados, com referências nebulosas. Assuntos pluralistas e mutantes por natureza seriam engessados por burocratas e vomitados sobre os cidadãos, num movimento perigoso e, cá entre nós, inviável. Afinal de contas, existirá definição universal para valorização da família ? E para alicerces espirituais ? Quem vai fazer a lista dos “valores morais” sugeridos pela lei ? O secretário encarregado de regulamentar e aplicar o programa desconversou, não tem a menor ideia de como dar efeito prático à aberração. Desconfio que o governador pode ter assinado essa barbaridade legal no meio de um rega-bofe parisiense, cavendishiado depois de umas e outras.
A autora do projeto de lei, que vive às custas dos nossos impostos, é a senhora Myrian Rios, ex-atriz, missionária católica conservadora. Eleita em 2010 pelo PDT (o velho Briza deve estar dando urros na sepultura), deu logo uma demonstração de desrespeito aos bons costumes políticos: fez as malas, deu uma banana a seus eleitores e filiou-se ao PSD, da base do governo Cabral. Como muitos de seus pares, faz carreira confundindo púlpito com tribuna, defendendo propostas “cristãs” arcaicas e destilando um preconceito raivoso contra os homossexuais. Chegou a fazer campanha contra o sexo anal (!). Não compreende e se revolta com as profundas mudanças comportamentais das últimas décadas, que se refletem em indivíduos e famílias, regurgita conceitos que não se sustentam nas mais elementares evidências científicas e, presa a um maniqueísmo pueril, nos ameaça com leis absurdas.
Myrian Rios faz parte de uma tribo peculiar. Mulheres que usaram o sexo e o erotismo de fundo machista para se promoverem,surtam e descobrem a luz salvadora, que limpa os “pecados” e abafa uma culpa que qualquer psicólogo de porta de templo constata sem dificuldade. A dualidade Céu-Inferno está fincada nesses frágeis inconscientes. O jornalista Walcyr Carrasco lembrou de uma pioneira do ramo: Elvira Pagã. Vedete do teatro de revista e primeira a usar biquíni na praia, passou a pintar quadros esotéricos na idade madura. Baby (Consuelo) do Brasil, Darlene Glória, Gretchen, Mara Maravilha, Monique Evans e Regininha Poltergeist, pequeno time do baixo clero artístico, fizeram o seu mea culpa e aderiram a pregações regeneradoras e … lucrativas. O conteúdo, desconfio, está por trás da intenção legisladora da senhora Rios.
Curiosa a fúria moralista seletiva da ilustre deputada. Procurei em seu site algum indício de que se preocupa com as profundas mazelas éticas e morais que abundam no Estado do Rio. Nem uma palavra sobre as babás discriminadas em clubes sociais. Silêncio fechado sobre o caso da criança negra maltratada numa concessionária da BMW no Rio. Mais uma adepta do nosso “racismo cordial”. Preconceituosos são sempre os outros. Olhar de paisagem sobre a tragédia pluvial de 2011 na Serra Fluminense. Lixo, lama, ruínas de edificações e vidas, tudo ainda está lá. O dinheiro alocado para prevenção parou em algum limbo, que a nobre política poderia ajudar a investigar. Não descobri um único sinal de preocupação com a quase perpetrada demolição do antigo Museu do Índio, prédio do século dezenove tratado com ironia e desrespeito pelo governador Cabral e o prefeito Paes. Nada também sobre o buraco negro dos investimentos para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, nem sobre as relações promíscuas do governador com a empresa Delta. As obsessões da deputada são mesmo as genitálias alheias, o teor do que devemos ler ou não, a “ameaça” de homossexuais à “pureza” das crianças. Santa criatura, pobre eleitorado.
Mesmo com as fartas provas de que fé não é atestado de boa conduta ética e/ou moral, formadores de opinião e prelados de todas as plumagens insistem nessa farsa. Felizmente, há sinais de resistência. A 5ª Vara Cível Federal de São Paulo condenou a TV Bandeirantes a exibir, em rede nacional, explicações a seus espectadores sobre a diversidade religiosa e a liberdade de consciência e crença no Brasil. A ação foi motivada pelas declarações do apresentador José Luiz Datena ofensivas aos ateus. Referindo-se ao assassinato de um menino, Datena relacionou o crime “à ausência de Deus”. “Um sujeito que é ateu não tem limites, e é por isso que a gente vê esses crimes aí (…) A descrença em Deus gera individualismo, egoísmo e ganância (…) Tem gente que não acredita em Deus e é por isso que o mundo está essa porcaria. Guerra, peste, fome e tudo o mais”. Ignorância ? Sim, mas longe de ser inconsequente. É dessa incubadora que saem as bancadas de Deus e os fundamentalismos. Já sabemos onde isso vai dar.
Abraço, Jacques
PS: Aproveito o carnaval e dou uma paradinha na semana que vem.
*Jacques Gruman é engenheiro químico e militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.