Marcio Sommer Bittencourt
Médico, mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard, EUA e doutor pela Universidade de São Paulo
Ciência não é opinião. Em ciência dados são coletados e analisados para embasar a tomada de decisão. É permitido pensar diferente, basta coletar novos dados, analisá-los de forma adequada para mostrar que a hipótese antiga pode ser refutada. Com isso, a nova hipótese torna-se a nova referência até que outra nova teoria seja testada com dados e análise consistentes passando esta então a ser a referência no assunto. Assim progride a ciência, evoluímos a partir de novos dados e novas análises.
A infecção por coronavirus, COVID19 é uma doença nova e por isso com poucos dados prévios e nenhuma análise adequada sobre formas de tratamento que funcionem. Quando nos deparamos com uma situação como esta, a única alternativa inicial de tratamento consiste em medidas de suporte que ajudam o corpo a manter seu funcionamento próximo do normal. Estes tratamentos incluem oxigênio, respiradores, soros para hidratação, medicações para o controle da pressão arterial, glicose, febre etc. Nenhuma dessas medidas tem o objetivo de tratar a infecção viral, elas apenas auxiliam o corpo a manter a sua estabilidade até que a infecção melhore com a resposta imune do próprio corpo do paciente.
Para quem não está acostumado, a ideia de que nenhuma medicação está sendo utilizada para atacar o vírus pode assustar. No entanto, esta é a forma de tratamento de muitas infecções virais que não tem tratamento específico. Em casos graves como alguns pacientes com COVID19, se houver alguma doença conhecida parecida que tenha tratamento eficaz pode-se discutir o uso “off label” destas medicações, mesmo sem a certeza da eficácia. No entanto, os primos mais próximos do COVID19 não têm tratamento específico. Logo, não existe alternativa razoável para o seu tratamento. Frente a gravidade de alguns casos e do grande número de mortes, a situação cria angústia e até desespero, não só na equipe de saúde, mas também de toda a população. Assim como nenhum médico gosta de perder um paciente, ninguém gosta de perder um ente querido. Parece óbvio que não devemos medir esforços para tratar estes casos com o que estiver ao nosso alcance, e que negar qualquer tratamento nestas situações seja um ato de crueldade.
Em casos de gravidade extrema, onde a morte é praticamente certa e nenhuma alternativa encontra-se disponível, a medicina reconhece o uso por compaixão (“compassionate use”). Nestes casos o reconhecimento irrefutável de alto risco de morte sem que existam tratamentos alternativos justifica o uso de medicações mesmo sem evidência de benefício e a despeito de seus efeitos colaterais.
No entanto, a maior parte dos casos de COVID19 não cabe nestas definições. Com uma letalidade estimada abaixo de 4% em todos os estudos e abaixo de 0,5% em populações de menor risco, a imensa maioria dos casos irá se recuperar sem medicação específica. Mesmo em populações de maior risco como idosos acima de 80 anos, entre 8 e 9 em cada dez pacientes sobreviverá apenas com as medidas habituais. Nestas circunstâncias não é ético nem razoável propor um tratamento sem evidência de benefício e que pode trazer risco real apenas por angústia ou desespero. No desespero é mais fácil tomar decisões erradas do que certas.
Na conversa de bar envolvida em briga política que se tornou a discussão do uso de medicações como a azitromicina e cloroquina, parece que o seu uso tem fundamento suficiente para o tratamento de COVID19 e que é usar ou não é uma questão de gosto, preferencia política ou opinião. Não é. Na avaliação de tratamentos médicos existe uma sequência de estudos que são necessários para mostrar que a medicação funciona e que seus benefícios são maiores que os riscos. Não basta matar o vírus em culturas de células em laboratório. Precisa mostrar que isso funciona em seres humanos em dose segura e sem riscos importantes.
Vamos imaginar que eu tenho uma medicação nova, que tem efeito em laboratório contra vários vírus e que já é usada rotineiramente para tratar outras doenças. Ela acabou de ser testada em células para o novo surto que estamos enfrentando, comprovando o chamado benefício “in vitro”. Como ela já é usada clinicamente para outras doenças sabemos que esta droga é segura. Por que não usar no surto atual? Por que esperar mais estudos? Quantas pessoas irão morrer apenas em benefício da ciência e que poderíamos ter salvado?
Agora imagine que esta droga continuou sendo testada da forma recomendada em protocolos de pesquisa. Na etapa seguinte ela foi testada em macacos e não só ele foi incapaz de atacar o vírus, mas seu uso levou a sua maior proliferação nos animais. Será que depois disso alguém gostaria de usar em humanos sem nenhuma pesquisa adicional?
E se ainda assim esta nova medicação fosse então testada em humanos infectados por este novo surto e não houvesse nenhum benefício. Pior ainda, o e se o estudo sugerisse que a medicação leva a piora da imunidade e que poderia até piorar a infecção? Ainda assim deveríamos usá-la sem mais testes? Infelizmente além dos efeitos colaterais sempre existe a possibilidade de a medicação não funcionar como o esperado e até mesmo ter um efeito contrário ao esperado. Este exemplo acima não é fictício nem distante. A medicação que funciona “in vitro”, faz mal a macacos, não melhora a infecção e pode atrapalhar a imunidade em humanos chama-se cloroquina.(1) Ela foi testada para o tratamento de uma doença chamada Chikungunya. Se alguém descobrir que a história da cloroquina descrita acima se repete em COVID19 quem será o responsável? Quem acha que medicina deve ser discutida como política e a decisão tomada na base da opinião?
Além disso, apesar de cloroquina e azitromicina terem se comprovado seguras em outras doenças, não temos garantia de que a segurança será a mesma quando usadas conjuntamente no tratamento de COVID19, infelizmente a farmacologia não é uma ciência tão simples. Apesar de raro, o uso de cloroquina pode levar a arritmias cardíacas. No entanto, alguns dados recentes sugerem que seu uso conjuntamente com azitromicina, particularmente nas doses altas sugeridas para COVID19, leva a um aumento nos casos de arritmias. Além disso, nos casos graves o COVID19 pode acometer o coração em um processo chamado de miocardite, o que também aumenta o risco de arritmias. Por isso, não há garantia de que o risco de complicações do tratamento será tão baixo quanto o que conhecemos em outras doenças.
Entre a ciência e o obscurantismo não existe opinião. Estudos com novas e velhas drogas em COVID19 são mais que bem vindos, são necessários e todos torcemos para que deem certo, pois todos desejam salvar o maior número de vidas possível. Mas ciência e medicina não são feitas de torcida. Deixar de testar os novos tratamentos de forma adequada e rigoroso é um grande retrocesso, pois nada na vida é isento de riscos, nem mesmo a cloroquina.
1. Roques P, Thiberville SD, Dupuis-Maguiraga L, Lum FM, Labadie K, Martinon F, et al. Paradoxical Effect of Chloroquine Treatment in Enhancing Chikungunya Virus Infection. Viruses. 2018;10(5).
Fonte: Blog do Perrone – UOL