Em razão da cogitação de extinção da Justiça do Trabalho, por parte do Presidente da República, em entrevista recentemente dada, a Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre suas finalidades o respeito aos valores jurídicos do Estado Democrático de Direito, manifesta-se através do presente DOSSIÊ, a fim de esclarecer a população e demonstrar a relevância dessa instituição para um Estado Democrático de Direito:
A VERDADE SOBRE AS AFIRMAÇÕES VEICULADAS
A) Uma estrutura Judiciária específica para questões trabalhistas existe, com modalidades diversas, em vários países, como explicam Rodrigo Carelli e Guilherme Guimarães Feliciano (FELICIANO, Guilherme Guimarães. “Justiça do Trabalho, essa eterna desconhecida: dois mitos, dois enganos”. In: Resistência II – Defesa e crítica da Justiça do Trabalho. Coordenadores SOUTO MAIOR, Jorge Luiz & SEVERO, Valdete Souto. São Paulo: Expressão Popular, 2018).
B) A afirmação de que o Brasil possui mais processos trabalhistas que o resto do mundo, que provavelmente decorre de uma fala do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e que foi repetida pelo Senador Ricardo Ferraço, quando afirmou que o Brasil teria 98% das reclamações de todo o mundo, não é verdadeira. Nesse sentido: “Em 2015, o Brasil teve 2.619.867 casos novos na Justiça do Trabalho. No mesmo ano, a França teve 184.196 novos casos trabalhistas, a Alemanha teve 361.816 ações e, somente a Espanha, 1.669.083 casos.” (Rodrigo Carelli). Se considerarmos a população desses países, o Brasil apresenta uma relação de 0,012 processos trabalhistas por habitante (12 processos a cada mil habitantes); França e Alemanha, países que possuem legislações trabalhistas mais protetivas, possuem, respectivamente, 0,002 e 0,004 processos trabalhistas por habitante (2 e 4 processos a cada mil habitantes); e a Espanha, país no qual já foram realizadas diversas reformas trabalhistas para a retirada de direitos dos trabalhadores, há uma relação de 0,036 processos trabalhistas por habitante (36 processos a cada mil habitantes)
C) A afirmação de que não existem direitos nem demandas trabalhistas no EUA ignora o fato de que naquele país “a ação trabalhista típica é uma class action, isto é, uma ação coletiva. Ou seja, o trabalhador, ao ajuizar uma ação, pode representar todos os demais empregados e ex-empregados que estão ou estavam em idêntica situação de fato e de direito”. “De acordo com o site law360.com, as empresas americanas pagaram no ano de 2015 aproximadamente 2,5 bilhões de dólares apenas em acordos judiciais trabalhistas na Justiça Federal relativos a processos coletivos (class actions) de horas extras (imagine-se o “custo EUA” que isto representa…). Observe-se que este dado não inclui ações relativas a outras matérias, nem aquelas decididas ou acordadas na justiça dos estados, em órgãos extrajudiciais estatais (law enforcement agencies) ou em juízo arbitral, comuns naquele país.”; “no período 2009-2016, a Suprema Corte dos EUA julgou o mérito de 62 casos envolvendo questões trabalhistas, sendo que todos eles passaram a ser precedentes vinculantes (cerca de 10% dos casos julgados pela Suprema Corte a cada ano estão relacionados a causas trabalhistas). Ou seja, uma média de 8,85 ao ano, enquanto que a média de criação de súmulas pelo TST é de 9,62 súmulas por ano: nada muito diferente. Observe-se que a comparação é cabível, porque nos EUA a Suprema Corte não apenas interpreta a Constituição, como também tem a função de uniformizar a interpretação da legislação federal, inclusive a trabalhista.” (CASAGRANDE, Cássio. A Reforma Trabalhista e o “sonho americano”.
D) O argumento de que a redução de direitos ou a supressão da instituição que pode exigi-los gera empregos ou aumenta a competitividade é mentiroso. Observe-se que na China, houve aprovação de um Código do Trabalho em 2009, que garante, entre outros direitos: licença maternidade remunerada; direito a greve; estabilidade no emprego, caso o contrato de trabalho tenha sido renovado mais de duas vezes; férias remuneradas; limitação da jornada de trabalho em 8 horas e limite semanal de 40 horas; idade mínima para o trabalho de 16 anos. O custo da hora trabalhada no Brasil, no setor industrial, chegou a U$ 2,90 por hora, enquanto na China, esse custo era de U$ 3,60 por hora, no mesmo período. O custo menor não ajudou a criar emprego no Brasil, pois a economia apresentou uma queda de 3,6% do PIB, enquanto o crescimento da China foi de 6,7% no ano, isto porque, na perspectiva meramente econômica, outras variáveis devem ser consideradas, tais como a política macroeconômica, o desenvolvimento tecnológico, o câmbio, a infra-estruturação, a qualificação da força de trabalho. (Manifesto contra a Reforma Trabalhista, elaborado por pesquisadores do CESIT-Unicamp)
E) A afirmação de que a Justiça do Trabalho custa muito não é real. O Justiça em Números do CNJ aponta que a Justiça do Trabalho custa cerca de R$ 88,00 por ano por habitante, menos da metade do que custa a justiça comum, cuja extinção ninguém está propondo. O valor é significativamente baixo, sobretudo se considerarmos os direitos que são por meio dela garantidos e o fato de que a Justiça do Trabalho arrecadou para os cofres públicos quase três milhões e setecentos mil reais em 2017. Foram pagos aos reclamantes, no mesmo ano, R$ 27.082.593.692,57. Os valores pagos decorrentes de acordos judiciais representaram 43,4% do total e aumentaram 26,7% em relação a 2016. Os valores pagos decorrentes da execução da sentença representaram 46,4% e reduziram 5,0%. A Justiça do Trabalho é a mais eficiente entre os ramos do Judiciário do ponto de vista da celeridade e da quantidade de processos encerrados, sendo que, concretamente, a Justiça do Trabalho soluciona mais processos do que aqueles que lhe são apresentados. Além disso, é a mais informatizada. Em suma, é a mais rápida, a mais produtiva e a mais moderna, conforme pode ser atestado nos relatórios da Justiça em números do CNJ.
A IMPORTÂNCIA DO DIREITO DO TRABALHO E DA JUSTIÇA DO TRABALHO
A redução de direitos trabalhistas e o impedimento de acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho, não beneficiou a economia, não diminuiu o desemprego, ampliou a informalidade, majorou o sofrimento no trabalho e o número de acidentes, provocando maior custo social, e, com isso, reduziu a arrecadação tributária e previdenciária, ampliando, por conseguinte, o déficit da Previdência e o déficit público em geral.
A realidade é que depois da vigência da “reforma” trabalhista, a renda média do brasileiro caiu (acesso em 19/11/18). Conforme os dados do IBGE, de 28/12/18, o desemprego não diminuiu (12,2 milhões), o desalento aumentou (4,7 milhões), a informalidade disparou (11,7 milhões), o número de empregados com carteira assinada se manteve no mesmo patamar (33 milhões). Além disso, verificou-se um considerável aumento do sofrimento no trabalho (acesso em 03/01/19) e a ampliação da precariedade de direitos gerou piora das condições de trabalho, majorando o número de acidentes do trabalho (acesso em 03/01/19.), isso em um país em que já se verificava a marca de 700 mil acidentes do trabalho por ano e que já ostentava o posto de quarto país do mundo em número de mortes por acidentes do trabalho.
Segundo informação constante do site do Ministério Público do Trabalho, os “números do primeiro trimestre deste ano (2018) demonstram que os gastos estimados com benefícios acidentários no país já ultrapassam R$ 1 bilhão de reais. Nesse período, foram emitidas mais de 150 mil Comunicações de Acidentes de Trabalho, entre as quais estão notificadas 585 vítimas fatais. Os dados são do Observatório Digital de Saúde e Segurança do Trabalho, Smartlab de Trabalho Decente MPT – OIT, acessados no dia 28 de março”. Houve diminuição generalizada de benefícios e ganhos normativos dos trabalhadores e redução da média salarial.
No momento em que se preconiza pelo fim da corrupção, pela legalidade e pela moralidade administrativa, preconiza-se a extinção de uma instituição pública que não se corrompeu, que não cedeu aos comandos do poder econômico e que preserva sua integridade administrativa baseada no estrito respeito da legalidade e da defesa da ordem constitucional e democrática. É exatamente essa postura da Justiça do Trabalho que incomoda o poder econômico. A questão está longe de ser meramente de equilíbrio de contas públicas. Falar que os direitos trabalhistas continuarão sendo aplicados em outro ramo do Judiciário (Justiça comum ou Federal) é uma indisfarçável mentira, pois se todo esse esforço está baseado, exatamente, na postura dos juízes do trabalho de não abrirem mão da sua independência e do seu poder de dizerem o direito conforme os parâmetros constitucionais, é evidente que se pretende que os juízes na esfera cível ou federal ajam de modo diverso, pois do contrário a iniciativa seria eficaz para o propósito dos que a defendem.
Diante desses dados, a Associação Juízes para a Democracia (AJD), manifesta-se publicamente REAFIRMANDO seu REPÚDIO a todas as manifestações que sugerem a extinção da Justiça do Trabalho, as quais constituem afronta moral à advocacia trabalhista, aos serventuários da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, aos procuradores do trabalho, às juízas e juízes do trabalho, assim como à toda academia jurídica trabalhista, pois desprezam toda a realidade histórica e a efetividade prática dessa instituição, promovendo ofensiva inversão de valores e, com isso, atentando contra o Estado Democrático de Direito.
São Paulo, 15 de janeiro de 2019
AJD – Associação Juízes para a Democracia