Rio – O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com uma ação contra a União em razão de manifestações oficiais da Marinha do Brasil (MB). O órgão acusa a instituição de atacar a memória de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro. A medida, que integra o marco de resistência na luta contra as torturas sofridas por marinheiros que ocupavam os postos mais baixos da hierarquia, em sua maioria pretos e pardos, pede a responsabilização civil da União.
Entre as solicitações, estão a determinação para que o poder público se abstenha de novas manifestações ofensivas ao militar e a condenação da União ao pagamento de R$ 5 milhões por dano moral coletivo. A ação busca, além da reparação econômica, impedir novos atos que desabonem a trajetória e o legado histórico do marinheiro conhecido como “Almirante Negro”.
“O valor deverá ser destinado exclusivamente a projetos e ações voltados à valorização da memória do líder da Revolta da Chibata, conforme regras estabelecidas em resolução conjunta do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”, diz o MPF.
Parte da denúncia é baseada no reconhecimento do racismo estrutural no Brasil. Segundo o órgão, a ação tem como base elementos reunidos em inquérito civil instaurado a partir de demanda da sociedade civil para valorização da memória de João Cândido em âmbito nacional.
O MPF sustenta que persistem práticas institucionais de ataque à imagem do líder, o que configurara continuidade da perseguição histórica sofrida pelo marinheiro, inclusive após sua morte.
“Entre os fatos destacados, está o envio, em abril de 2024, de carta do comandante da Marinha à Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, manifestando oposição ao projeto de lei que propõe a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. No documento, além de conferir tratamento adjetivado a seus líderes, a Revolta da Chibata é classificada como ‘deplorável página da história nacional’ e ‘fato opróbio’, relegando, ainda, características negativas aos revoltosos. O mesmo entendimento foi reproduzido em documentos enviados ao MPF após recomendação do órgão”, aponta.
Ainda de acordo com o MPF, as manifestações da Marinha afrontam a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil e a lei, que concedeu anistia a João Cândido e aos demais participantes da revolta de 1910.
“A anistia tem efeitos jurídicos e simbólicos concretos e impõe ao Estado o dever de respeitar e preservar a memória coletiva associada à luta pelo fim dos castigos físicos na Marinha”, disse o procurador adjunto dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, Julio Araujo, que assina a ação.Diante dessas manifestações, o órgão expediu uma recomendação para que a Marinha evitasse praticar atos que violassem a memória de João Cândido. A resposta oficial, no entanto, afirmou não haver providências a serem adotadas, sob o argumento de que as declarações refletiriam apenas a “perspectiva histórica” da instituição. Para o MPF, a posição indica intenção de manter discursos incompatíveis com a anistia legalmente concedida.
O órgão ainda destaca que o direito à memória é um “direito assegurado na ordem constitucional, relacionado à dignidade da pessoa humana, ao direito à informação e à preservação do patrimônio histórico-cultural”.
A proteção da memória de João Cândido está diretamente ligada ao enfrentamento do racismo estrutural e à valorização das lutas da população negra por cidadania e igualdade no Brasil, temas destacados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”, apontou o procurador.
Por fim, o MPF também argumenta que as declarações oficiais da Marinha extrapolam os limites da liberdade de expressão, “uma vez que partem de agentes públicos e contrariam normas constitucionais, legais e compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, além de precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)”.
Segundo a ação, ao desqualificar João Cândido e a Revolta da Chibata, a União viola não apenas a memória do personagem histórico, mas o direito coletivo da sociedade de conhecer e interpretar sua própria história.
Revolta da Chibata
A Revolta da Chibata foi uma rebelião que aconteceu em novembro de 1910 contra os maus-tratos sofridos pelos marinheiros brasileiros. O movimento queria, principalmente, o fim dos castigos físicos dados a marujos considerados indisciplinados. A punição era aplicada por comandantes brancos em marinheiros que ocupavam postos mais baixos dentro da corporação “grupo formado, em sua maioria, por negros e pobres”.
Os revoltosos, liderados por João Cândido, tomaram o encouraçado Minas Gerais, uma das embarcações militares atracadas na Baía de Guanabara, e ameaçaram que, caso as autoridades não decretassem o fim dos castigos físicos, a cidade do Rio seria bombardeada. O governo brasileiro aceitou as condições dos marinheiros e prometeu anistia, desde que a rebelião acabasse.
Entretanto, dias depois do fim da revolta, os rebeldes começaram a ser perseguidos. João Cândido foi preso, chegou a ficar internado em um hospício e acabou expulso das Forças Armadas. Demitido de vários empregos por pressão de oficiais da Marinha, terminou seus dias como pescador e vendedor de peixes.
Imprensa Sisejufe, com informações do O Dia