Resumo:
- O governo Jair Bolsonaro está reduzindo as normas que obrigam empresas a garantirem a segurança e a saúde de trabalhadores.
- O problema é que o Brasil é um dos países com maior número de acidentes e mortes decorrentes do trabalho em todo o mundo. É um acidente a cada 49 segundos e uma morte a cada 3 horas e 38 minutos.
- Auditores fiscais do trabalho e outras categorias estão se mobilizando para evitar perdas de proteção aos trabalhadores.
- Além de pessoas mutiladas, amputadas e mortas – e os custos hospitalares, previdenciários e de perda de produtividade decorrentes disso – também teremos problemas comerciais. O mundo considera como concorrência desleal e dumping social esse tipo de economia para garantir competitividade.
O desabamento de um talude que desviava o leito de um rio durante a construção de uma pequena hidrelétrica quase matou 40 trabalhadores em Rondônia há seis anos. Por uma daquelas coincidências inexplicáveis, no dia anterior, auditores fiscais do trabalho fizeram uma inspeção no canteiro de obras. “Vimos que tinha muitas fissuras. Chamamos a empresa, avisamos que estávamos interditando a atividade, solicitamos que parassem tudo imediatamente e retirassem os operários”, afirma o auditor Juscelino Durgo, que participou da ação.
Se não tivessem feito a inspeção ou se não houvesse a Norma Regulamentadora número 3, que possibilita a interdição de locais de trabalho que coloquem em risco a saúde, a segurança e a vida dos trabalhadores, teríamos um desastre.
A NR-3 é uma das 37 normas com obrigações de empregadores e trabalhadores para evitar doenças e acidentes de trabalho que estão passando por revisão geral e profunda por parte do governo federal sob a justificativa de melhorar a produtividade.
Ou nos termos do próprio Jair Bolsonaro através de suas redes sociais: o “governo federal moderniza as normas de saúde, simplificando, desburocratizando, dando agilidade ao processo de utilização de maquinários, atendimento à população e geração de empregos”. O governo, que divulgou um texto afirmando que há custos absurdos para as empresas “em função de uma normatização absolutamente bizantina, anacrônica e hostil”, informou que o objetivo é cortar 90% das exigências.
“Mas o que o governo chama de burocracia, na verdade, são os limites mínimos para a preservação da vida das pessoas, limites que conseguem evitar tragédias. Assim como a obrigatoriedade do uso da cadeirinha de bebê ou do cinto de segurança para evitar que as pessoas morram”, afirma Vitor Araújo Filgueiras, professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e um dos coordenadores da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinas da Reforma Trabalhista (Remir).
Na semana que passou, 63 chefes de fiscalização endereçaram um manifesto ao responsáveis pela área de Trabalho do Ministério da Economia demonstrando preocupação com a revisão das NRs, pedindo para que ela seja transparente e que não seja imposta pelo governo. Citam um estudo do Departamento de Saúde e Segurança no Trabalho, de 2018, afirmando que as Normas Regulamentadores ajudaram a evitar 8 milhões de acidentes de trabalho e 46 mil mortes entre as décadas de 1970 e 2010.
623.786 mil acidentes em 2018
O manifesto traz outros dados levantados pela Fiocruz. Mesmo com as normas, o Brasil ocupa a 4a posição no ranking mundial de acidentes de trabalho. Em 2017, a Previdência Social reconheceu 549.405 ocorrências – foram 4,5 milhões entre 2012 e 2018, com mais de 16 mil mortes. Dentre os registros, mais de 60 mil fraturas e 38 mil amputações. No mesmo período, o país gastou R$ 79 bilhões apenas com os acidentes.
Isso considerando os números notificados. A Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE encontrou sete vezes mais acidentes de trabalho no país que os formalmente registrados pela Previdência no ano de 2013.
“Em um país onde a cada 49 segundos ocorre um acidente de trabalho e a cada 3 horas e 38 minutos um trabalhador morre por acidente do trabalho, a flexibilização das normas de segurança e saúde representa um retrocesso inadmissível e traz enorme preocupação”, afirma o manifesto, referindo-se a dados entre 2012 e 2018.
Já para o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, que processa dados do governo federal, houve 623.786 mil notificações de acidentes de trabalho, em 2018, levando em consideração apenas a população com emprego regular. Dessas, 2.022 envolviam óbitos. Estima-se que 154,2 mil acidentes de trabalhadores formalizados não foram notificados.
O Brasil presenciou um aumento de 393.071 (2002) até 755.980 (2008) casos, em parte influenciado pelo crescimento da economia e da formalização – que aumenta a notificação. Entre 2015 e 2017, centro da crise econômica, esse número caiu até 549.405, para voltar a subir no ano passado.
As Normas Regulamentadoras, apesar de previstas desde o nascimento da Consolidação das Leis do Trabalho, foram instituídas apenas no período militar após um aumento no número de acidentes. “Em 1977, 18% dos trabalhadores do país sofreram acidentes por causa das grandes obras da ditadura, que empregavam trabalhadores sem treinamento e não contavam com ações para prevenção nos canteiros de obras. A lei 6514/1977 reformou a CLT e, em 1978, trouxe 28 normas regulamentadoras”, explica Ivone Baumecker, auditora fiscal do trabalho que participou da revisão de grande parte das normas e hoje é professora e pesquisadora de Segurança do Trabalho e sobre Normas Regulamentadoras na Universidade Fumec (Fundação Mineira de Educação e Cultura).
Ela conta que viu a transformação da situação da proteção aos trabalhadores com a implementação das NRs na década de 1980. “Na mineração, por exemplo. Apesar dos mortos nos recentes rompimentos das barragens das minas da Vale, a realidade é outra em comparação com aquela época. Presenciei condições de trabalho inimagináveis”, afirma. A NR-22 trata da atividade de mineração.
A professora se refere aos rompimentos das barragens de rejeitos de mineração da Vale, em Brumadinho (MG), ocorrido em 25 de janeiro deste ano, e que matou mais de 240 pessoas, e da Samarco/Vale/BHP, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015, que deixou 19 mortos. O primeiro é considerado o maior acidente de trabalho da história do país e o segundo, o maior desastre ambiental.
Trabalhador de 17 anos que perdeu dedo em trabalho em fazenda e foi resgatado da escravidão em uma fazenda no Pará. Foto: Leonardo Sakamoto
Mutilação e amputação
O governo não deve eliminar normas como a NR-3, o que seria um escândalo internacional, mas restringir bastante a sua aplicação, dificultando ao máximo que o auditor realize uma interrupção da atividade produtiva diante de grave e iminente risco ao trabalhador.
Auditores fiscais ouvidos pelo blog afirmam que o embargo ou a interdição acontecem quando a situação é limite, como foi aquela que antecedeu a queda da barragem. Pode ser uma máquina que coloca em risco a vida dos trabalhadores, mas também um andaime ou a exposição a um agente carcinogênico. Nesses casos, dizem eles, mesmo que se aumente a multa imposta, nada é tão efetivo quanto a interdição. Mesmo assim vale lembrar que o valor de certas multas não chega a R$ 1 mil, enquanto a reforma de uma máquina de complexidade média pode atingir chegar a 40 vezes isso. Ou seja, receber a multa pode ser mais barato que investir em correção.
William Garcia da Silva fazia faxina no setor mais sujo de sangue e vísceras de uma unidade de abate de bois de um frigorífico em Coxim (MS). Ele e seus colegas já haviam avisado ao superior que faltavam grades para isolar componentes perigosos de uma máquina de moagem de ossos e chifres. Mas os alertas foram em vão. Quando se esticou para limpar as engrenagens da moedeira, ele teve seu braço violentamente tragado pela máquina.
Sozinho, reuniu forças para desprender o corpo do equipamento e correr até o departamento de Recursos Humanos à procura de ajuda. Não havia enfermeiro e nem ambulância de plantão. Por sorte, o encarregado do setor de abate ainda estava no local e conduziu – em seu carro particular – William até o hospital público, a 30 minutos do frigorífico. A rosca amputou seu braço acima do cotovelo e deixou “só o cotoco”, como ele descreve. “Se fosse mais tarde, eu teria morrido porque no final do dia só fica o pessoal da faxina, que não tem carro. Não daria tempo de uma ambulância chegar”, desabafa.
Ele nunca recebeu treinamento para a função que exercia. Em tese, sua missão diária era abastecer a máquina moedeira. Porém, com a demissão de alguns funcionários, foi escalado para fazer a faxina e a limpeza das máquinas, operação que exige cuidados específicos. Aos 24 anos, em 2015, quando o acidente ocorreu, afirmava não estar abalado psicologicamente. Pai de uma menina de oito meses, lamentava apenas “não poder segurar e jogar o bebê para cima”.
Outra NR que está sendo alterada é a de número 12, que trata da segurança no trabalho com máquinas e equipamentos. Aliás, deve ser a primeira a ter sua nova redação divulgada devido à pressão de parte dos empresários junto ao governo.
Prensa mecânica excêntrica de engate por chaveta. O nome difícil refere-se a uma máquina largamente usada na metalurgia e em outros setores. Toda prensa tem um martelo. Quando ele desce, sua queda dificilmente é interrompida. Se houver um dedo ou uma mão no caminho, haverá fratura, esmagamento ou amputação.
Luiz Scienza, auditor fiscal do trabalho na área de saúde e segurança e professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aponta essa prensa como “a máquina que mais mutila gente no Brasil”.
“Acabei de fazer uma interdição em uma grande empresa do setor automotivo. A indústria tinha proteção, mas não a garantia que fosse efetiva. Não basta o sistema bimanual [em que as duas mãos do operador ficam ocupadas para a máquina poder ser acionada], a NR-12 hoje exige uma redundância e diversidade de proteção, o que garante a integridade do trabalhador”, afirma. “No passado, essa grande empresa já teve mutilação e amputação traumática exatamente por isso. Havia segurança na maquina, mas aconteceu mesmo assim.”
As normas servem para garantir substrato legal para a ação dos auditores, do Ministério Público do Trabalho, da Justiça do Trabalho e dos sindicatos. Mas as NRs protegem não apenas o trabalhador, mas também o empregador, por deixar claro direitos e deveres, garantindo que fiscalizações tenham critérios técnicos e não fiquem à cargo da opinião do servidor público. Ao contrário do que defensores de uma desidratação das normas afirmam, sem elas, a tendência é aumentar a discricionaridade e não reduzir.
“27 metros cúbicos de mãos e dedos por ano”
Antes das normas, “a gente perdia no Brasil 27 metros cúbicos de mãos e dedos por ano, eram 15 mil mãos e dedos amputados em acidentes de trabalho”, diz Ivone Baumecker. “Quase sempre a mão direita de trabalhadores homens. Mãos e dedos de pessoas muito jovens, que se acidentam mais porque não têm experiência para escapar. A partir daí são 40 anos de pensão de Previdência. Ou seja, os eventos são custosos para as pessoas, para o Estado, para as empresas.”
De acordo com ela, há empresas que acreditam que é mais fácil, rápido e barato produzir sem proteção. “Mas isso não é uma escolha, eu não posso escolher voltar atrás. Posso escolher as pessoas perderem braços e pernas ou pessoas morrerem de silicose novamente?”
Ela relata uma fiscalização, em Minas Gerais, que interditou 12 prensas em uma terceirizada de peças automobilísticas anos atrás. Enquanto pedia na Justiça o cancelamento da interdição em função de lucros cessantes, a empresa mandou engenheiros comprarem proteções para as máquinas por garantia. As proteções foram instaladas mas, quando o juiz suspendeu a interdição concordando com o argumento da empresa, ela as retirou – uma vez que a produção era mais rápida sem a exigência. E, no dia seguinte, um rapaz perdeu o braço em uma das prensas.
Introduzido na década de 90, o tripartismo prevê que a revisão e organização das normas seja feita, de forma paritária, por representantes de trabalhadores, empresários e governo, de forma a gerar consensos. Isso faz com que processos de mudanças sejam mais lentos e difíceis, mas garante que a aplicação das regras sejam mais eficazes. O padrão é o seguido no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, responsável por organizar e monitorar as convenções internacionais que tratam do mundo do trabalho.
Ao querer aplicar mudanças em questão de meses, sem que haja tempo hábil para que trabalhadores, empregadores e funcionários públicos ligados ao tema levem o debate às suas bases, a gestão Jair Bolsonaro, na prática, atende ao pleito de uma parte dos empregadores para reduzir a efetividade das NRs. Afinal, sem tempo de discussão, mudanças são impostas e não consensuadas.
No manifesto, os chefes de fiscalização pedem que seja assegurada a discussão tripartite, inclusive com consulta pública, em todas as etapas da revisão. “Não é possível efetuar a revisão das NRs em três meses, sem prejuízo ao tripartismo e sem comprometer a qualidade dos resultados. Não é compreensível tal aceleração nesse processo, que dificulta a consulta de empregadores e trabalhadores às suas bases, necessária para identificar as necessidades de ajustes e elaboração de propostas”, afirma o documento.
Outras demandas pedem que o processo de revisão seja fundamentado em critérios técnicos, garantindo que seja mantido o caráter de prevenção de acidentes e que seja transparente, com consultas públicas e disponibilização do conteúdo que será debatido.
Concorrência desleal
“Há quem chame de burocracia as regras técnicas baseadas em consensos tripartites”, afirma Vitor Filgueiras, que também foi auditor fiscal do trabalho. “Mas os empregadores consentiram no desenvolvimento e aplicação de todas as normas.”
“O correto são grupos tripartites discutirem, sem pressa e com profundidade, baseado em evidências e estudos, a fim de alterar as normas. Mais de 20 alterações foram feitas apenas na NR-12 ao longo do tempo. Não se pode partir de premissas como “fiscal multa muito” ou “precisa ter menos regras” para fazer mudanças, atendendo a prioridades de determinado grupo”, afirma Luiz Scienza. “Aperfeiçoar as normas não pode significar colocar pessoas em risco.”
A questão é que grandes empresas, como mineradoras ou indústrias automobilísticas, podem ter problemas com a redução nas normas devido a sucessivas indenizações que serão pagas aos trabalhadores acidentados ou suas famílias. Não são as empresas mais avançadas que desejam sistemas sem segurança, mas a periferia da produção. “Elas querem a barbárie para fazer barato, deixando o ônus dos acidentes para o Estado”, afirma Ivone Baumecker.
A desidratação desse substrato legal mínimo pode aprofundar a precarização, levando a mais acidentes, adoecimento, afastamentos e aposentadorias precoces. Mas não apenas isso. Um ambiente saudável de trabalho é considerado premissa para competições justas entre empresas e países.
Luiz Scienza aponta que uma desregulamentação anômala vai trazer impactos para a nossa economia, o que pode incluir uma acusação de dumping social e concorrência desleal devida à redução artificial de gastos trabalhistas – e o consequente erguimento de barreiras comerciais não tarifárias contra o país.
De acordo com Vitor Filgueiras, “cortar normas de saúde e segurança do trabalhador e estimular uma competitividade espúria é fazer com que os empresários foquem na disputa por depredação”. Ou seja, quem depredar mais a dignidade do trabalhador, ganha. Para ele, uma lucratividade baseada na exploração extrema da mão de obra também torna, no longo prazo, a economia mais frágil. “Quanto menor as normas que protegem o trabalhador, menor o incentivo do empresariado para investir em tecnologia.”
Nenhum dos entrevistados nega a necessidade de atualizar, continuamente, o que está acordado nas Normas Regulamentadoras, inclusive para simplificá-las, aprofundar sua aplicação e atualizá-las às novas tecnologias.
“Há muito o que fazer. Mas andar para trás é a barbárie”, resume Ivone Baumecker.
Colaborou Carlos Julianos Barros
Fonte: Leonardo Sakamoto – do Blog do Sakamoto no UOL
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL