As consequências da precarização do trabalho são evidenciadas nas condições de saúde dos trabalhadores. De acordo com a pesquisadora, no ano passado “foram registrados 471.649 casos de afastamentos do trabalho por problemas relacionados à saúde mental”. O número, informa, “praticamente dobrou” em relação a 2023, quando 283 trabalhadores foram afastados pelo mesmo motivo. “O sofrimento mental hoje é enorme, além do assédio, da sobrecarga; é uma verdadeira epidemia o que se vive hoje. Os dados do Ministério da Previdência Social indicam que o burnout tem afetado com mais intensidade a força de trabalho feminina. Em 2024, as mulheres representaram 63,8% dos mais de 471 mil afastamentos registrados no Brasil por transtornos mentais”, menciona.
Se, de um lado, o processo de terceirização e uberização são indicados como exemplos da precarização do trabalho no Brasil, de outro, o emprego formal “não é garantia de que se tenha um trabalho não precário”, sublinha a entrevistada. Mulheres pobres e negras que cumprem a escala 6×1, exemplifica, “sofrem uma opressão que conjuga a opressão de classe, de gênero e racial”. O enfrentamento dessa situação, defende, depende da instituição de uma escala de trabalho 4×3 associada a uma política do cuidado.
Enquanto a proposta de estabelecer uma jornada de trabalho de quatro dias por semana continua paralisada no Congresso, as frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, centrais sindicais e movimentos sociais lançaram o Plebiscito Popular. Por um Brasil mais Justo no dia 1º de julho. Entre outras questões, a iniciativa visa ouvir a população sobre o fim da escala 6×1.
Mônica Olivar é graduada, mestre e doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Atua no Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz).
Confira abaixo alguns trechos da entrevista:
IHU – Você declarou recentemente que a escala 6×1 tem uma “herança do Estado escravocrata”. Pode explicar melhor essa ideia?
Mônica Olivar – O Brasil tem uma industrialização tardia e um passado escravocrata que impactou consideravelmente as condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, a qual se diferencia das condições históricas, econômicas e sociais da Europa. A marca histórica de ter mantido um regime escravista por mais de trezentos anos faz das relações sociais capitalistas brasileiras diferentes, mesmo guardando as características essenciais do capitalismo em nível mundial. Ao negro, liberto formalmente dos cativeiros rurais e urbanos, coube à inserção no chamado mundo do trabalho nas funções mais precárias. Um legado de sobrevivência construído pelos africanos e africanas para prover seu sustento, que foi renomeado de camelô, motoboy, bike, ambulante, vendedor, diarista, auxiliar de limpeza, conta própria etc.
A escala 6×1 impede que os trabalhadores e trabalhadoras negros/as tenham tempo para descanso, lazer, convívio familiar e desenvolvimento pessoal, perpetuando um ciclo de desigualdade social. Se traçarmos o perfil de grande parte dessa classe trabalhadora, são homens e mulheres que muitas vezes têm uma história familiar em que o pai e a mãe também estavam inseridos nesses trabalhos com escala extenuante, em funções de baixa remuneração e sem perspectiva de futuro, perpetuando um ciclo de desigualdade social. Então, há uma divisão racial no mundo do trabalho. A despeito de que quando olhamos para a rede de supermercados, farmácias, bares, restaurantes, shoppings, padarias, comércio em geral, verificamos um grande batalhão de trabalhadoras e trabalhadores composto por jovens pardos e pretos.
IHU – Como a escala de trabalho 6×1 tem afetado particularmente as mulheres?
Mônica Olivar – Nesta sociedade patriarcal, as disparidades entre homens e mulheres são enormes porque para elas reserva-se o trabalho doméstico e o cuidado com a família. Isso ficou evidente durante a pandemia de Covid-19, quando muitas mulheres relatavam trabalhar de madrugada por “não darem conta de tudo em casa”. Com o fechamento de escolas e creches, as trabalhadoras mães se viram com maior carga ainda, evidenciando as desigualdades de gênero no mundo do trabalho.
Diferente dos homens, que podem se dedicar exclusivamente à realização do trabalho remunerado, as mulheres estão submersas a uma tripla jornada, combinando trabalho remunerado em uma escala de trabalho 6×1, tarefas domésticas e cuidado com a família. Essa rotina faz, muitas vezes, as mulheres entrarem em exaustão e, consequentemente, são empurradas do trabalho formal para um informal.
IHU – Há diferença nos impactos da escala 6×1 entre mulheres trabalhadoras em serviços essenciais (como saúde, limpeza, comércio) e aquelas em outros setores? Como essas desigualdades se manifestam?
Mônica Olivar – Geralmente, quem trabalha em serviços caracterizados como essenciais não tem direito a descansar nos feriados, sábados e domingos. Descansar, compartilhar momentos com a família no Natal, Ano Novo, carnaval? Nem em sonho! Dias das mães? Dias dos pais? Nem pensar! Proteger-se em casa? Também nem pensar, conforme aconteceu durante a pandemia, por exemplo. O comando “fique em casa” foi declarado, mas quem foram as trabalhadoras que, de fato, conseguiram ficar em suas casas? E em que condições? No mais, muitas trabalhadoras tiveram que escolher entre continuar saindo para trabalhar, se expondo ao risco, ou perderem seus empregos e sua fonte de renda e subsistência. Importa lembrar que a primeira morte por Covid-19 no estado do Rio de Janeiro foi de uma mulher negra periférica, trabalhadora doméstica, que não teve o direito de se proteger.
Outra questão importante a ser enfatizada é que, na área da saúde, por exemplo, é comum a escala de trabalho 12×36, ou seja, 12 horas seguidas de trabalho sucedidas de 36 horas de descanso. Esse sistema abre margem para jornadas excessivas e perigosas. Muitas vezes, essa jornada de 12 passa para 14, 16 horas ou mais por dia e, no dia seguinte, essa trabalhadora exausta só pensa em dormir, isso quando consegue.
IHU – Que aspectos são pouco contemplados no debate sobre a relação entre mulheres e jornada de trabalho?
Mônica Olivar – Temos um machismo estrutural, uma misoginia presente na sociedade de forma geral, que vê a mulher como uma mercadoria. Isso reverbera no ambiente de trabalho. As mulheres são expostas a violências, todas as formas de violência, seja a violência laboral, seja a violência doméstica patriarcal, a violência de ódio, a violência provocada pelas desigualdades sociais. As mulheres, a todo o tempo, são submetidas ao medo da violência, tanto daquela violência resultante da miséria, do ataque, do assalto, quanto da violência de gênero.
Para quem reside em áreas periféricas, muitas vezes o deslocamento entre o trabalho e a casa ou de casa para o trabalho é um esforço hercúleo, considerando as violências cotidianas a que somos submetidas. Por exemplo, as mulheres que trabalham em shoppings frequentemente são obrigadas a se deslocarem para as suas casas após a meia-noite; lembremos o caso de uma trabalhadora de São Paulo que sofreu violência após sair do shopping onde trabalhava. Ela foi dada como desaparecida pela família e seu corpo somente foi localizado alguns dias depois. Lembro que a mídia chegou a culpar uma pessoa da família por não buscá-la no trajeto do trabalho para a casa, mas ninguém questionou a escala de trabalho imposta pelo shopping, que coloca em risco as trabalhadoras na violência cotidiana de uma grande metrópole. As empresas deveriam ser obrigadas a fornecer transporte para as trabalhadoras ao exigirem que elas se desloquem para suas casas após às 22 horas.
É preciso considerar o tempo de deslocamento e as condições ambientais de trabalho. Possuir um trabalho formal não é garantia de que se tenha um trabalho não precário. A classe trabalhadora vem sofrendo um processo acelerado de precarização das condições de trabalho, com exposições a substâncias químicas, a agentes físicos e biológicos, a cancerígenos, a formas de organização e gestão do trabalho violentas e opressoras (o etarismo, o capacitismo, o sexismo, o racismo), causadoras de adoecimentos e acidentes de trabalho.
IHU – Que relações estabelece entre a jornada 6×1 e o aparecimento de transtornos mentais, sofrimento psíquico e aumento de acidentes de trabalho entre as mulheres?
Mônica Olivar – Há uma relação direta entre jornadas extenuantes e adoecimento físico e psíquico da trabalhadora e do trabalhador. Um conceito importante quando se pretende analisar agravos relacionados ao trabalho são as cargas de trabalho presentes nos ambientes e processos de trabalho, cuja interação com os trabalhadores pode gerar prejuízos à saúde, desde o sofrimento psíquico até doenças psicossomáticas. Neste sentido, podemos encontrar múltiplas manifestações nos corpos dos diversos segmentos de trabalhadoras e trabalhadores, submetidos a uma jornada de trabalho extenuante: doenças osteomusculares – LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho), doenças cardiovasculares, distúrbios digestivos, transtornos mentais relacionados ao trabalho, como estresse, esgotamento, alterações no sono, fadiga, ansiedade, pânico e burnout, agravado com a falta de tempo para a vida social, familiar e autocuidado.
As queixas dos trabalhadores sobre esgotamento e frustração corroboram com os dados recentes sobre os transtornos mentais relacionados ao trabalho apresentados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), compilados pelo Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho através do SmartLab. Em 2024, foram registrados 471.649 casos de afastamentos do trabalho por problemas relacionados à saúde mental. Este número representa a soma dos afastamentos atribuídos aos diagnósticos de transtornos ansiosos (41%), episódios depressivos (21%), reações ao estresse grave e transtornos de adaptação (20,5%), transtorno depressivo recorrente (7,46%) e outros. No ano anterior, em 2023 foram 283 mil pessoas afastadas por problemas de saúde mental relacionados ao trabalho, ou seja, o número praticamente dobrou.
O trabalho exaustivo, em pé em uma loja de shopping, sentado no caixa de um supermercado, exposto a benzeno em um posto de combustível até oito horas diárias, seis dias na semana, é sentido no corpo, na mente e na alma. Essa jornada tem relação direta com o sofrimento psíquico e com o adoecimento físico. Quanto mais horas trabalhadas, mais chances de ocorrer acidentes de trabalho devido ao grau de atenção, esforço e fadiga. Profissionais da segurança do trabalho dão ênfase à questão dos equipamentos de proteção individual (EPI), aos riscos físicos, químicos ou biológicos, mas esquecem de que muitos dos acidentes de trabalho advém da fadiga, do sono, da pressão por metas abusivas, do cansaço dessa jornada exaustiva.
Ao longo de 2024, o Brasil registrou mais de 742 mil acidentes de trabalho, sendo os setores econômicos campeões de acidentes: atividade de atendimento hospitalar, 43.644; comércio varejista, hipermercado e supermercado, 17.870; transporte rodoviário de cargas, 14.278; restaurantes, 9.593; abates de suínos e aves, 9.445. Ou seja, são setores cuja escala de trabalho é a 6×1. Entre as profissões sujeitas a jornadas mais longas e a mais acidentes de trabalho no período de 2012 a 2024 estão as de técnico de enfermagem, com 36.532; alimentador de linha de produção, com 31.478; faxineiro, com 20.085; motorista de caminhão, com 12.108; servente de obras, com 11.227; enfermeiro, com 8.687; auxiliar de escritório, com 7.121; vendedor de comércio varejista, com 6.621.
Portanto, a redução da carga horária laboral é importante para reduzir o número de acidentes de trabalho. A ausência de períodos regulares de descanso pode levar a um aumento significativo nos casos de acidentes de trabalho, uma vez que a exaustão reduz a atenção e a capacidade de reação dos trabalhadores.
IHU – Que mudanças na jornada de trabalho atual poderiam ajudar a sanar os problemas de saúde mental entre os trabalhadores?
Mônica Olivar – Houve uma degradação nas condições de trabalho nos últimos anos. O que percebemos foi uma perda de sentido do trabalho. Hoje, o trabalho é muito voltado para algo burocratizado, organizado através de algoritmos, metas numéricas, objetivos quantitativos, coisas que não fazem muito sentido para os trabalhadores. O sofrimento mental hoje é enorme, além do assédio, da sobrecarga; é uma verdadeira epidemia o que se vive atualmente. Os dados do Ministério da Previdência Social indicam que o burnout tem afetado com mais intensidade a força de trabalho feminina. Em 2024, as mulheres representaram 63,8% dos mais de 471 mil afastamentos registrados no Brasil por transtornos mentais.
O trabalhador e a trabalhadora acabam perdendo o controle sobre o tempo da própria vida. Além do tempo gasto no local de trabalho, há o tempo de deslocamento entre a casa e o trabalho, o que faz com que o trabalhador utilize por volta de 12 horas do seu dia ou mais. Além disso, acabam utilizando o tempo fora do trabalho para execução de tarefas, o que foi facilitado pela utilização de celulares e redes sociais, que os leva a permanecer plugados no trabalho o tempo todo.
Nessa escala de trabalho, o malabarismo entre obrigações de trabalho e cuidados torna-se uma complexidade diária cada vez maior. O excesso de carga horária da jornada laboral, a falta de estrutura para o trabalho, a perda de sentido do trabalho, a perda de poder reivindicativo, levam a quadros como fadiga, cansaço, raiva, insegurança, frustração, medo, impotência e tantas outras reações, ocasionando sofrimento psíquico. Nesse cenário é urgente uma escala de trabalho em que possamos viver e não sobreviver, como propõe o movimento Vida Além do Trabalho e a PEC da deputada Erika Hilton, que dispõe sobre a redução da jornada de trabalho para quatro dias por semana no Brasil, sem redução salarial.
IHU – Por que as mulheres negras são mais afetadas pela escala 6×1 e que tipo de políticas públicas poderia transformar essa realidade?
Mônica Olivar – As trabalhadoras com uma escala 6×1 são, majoritariamente, mulheres pobres e negras, que sofrem uma opressão que conjuga a opressão de classe, de gênero e racial. Na verdade, essas mulheres têm uma jornada de trabalho 7×1, com a tripla jornada de trabalho já mencionada.
A luta antirracista pode contribuir para a reflexão sobre políticas públicas mais ou menos próximas dos ideais de justiça social. A luta pelo fim da escala 6×1 também precisa estar atrelada à política de cuidado. Além da aprovação da escala 4×3, é importante uma política de cuidado que contemple a expansão da cobertura de creches, escola em tempo integral e criação de espaços para que as crianças possam ser cuidadas à noite, caso a mãe precise sair para estudar, trabalhar, participar de reuniões comunitárias, religiosas ou políticas. No caso de idosos e pessoas com deficiência, é preciso ampliar os serviços de atendimento domiciliar para apoiar as atividades básicas e centros para essas pessoas passarem o dia com atividades, como acontece em alguns dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial.
IHU – A que atribui a resistência em alterar a escala 6×1 no país?
Mônica Olivar – Entre aqueles que têm se posicionado publicamente de forma contrária à redução da jornada estão as Confederações Nacionais do Comércio e da Indústria e parlamentares da direita e extrema-direita. O principal argumento é que os empresários brasileiros não teriam como arcar com os custos dessa redução de jornada, tendo que contratar mais.
Outra falácia recorrente dos empresários é de que o custo do trabalhador brasileiro é muito elevado, o que impediria novas contratações para compensar a redução da escala. Esse argumento também foi bastante disseminado durante o auge da pandemia de Covid-19, quando se dizia que setores como farmácias e supermercados iriam fechar por causa da necessidade de distanciamento social. Na verdade, eles tiveram lucro no período e são justamente esses setores que têm um exército de trabalhadores e trabalhadoras na escala 6X1.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (entrevista completa neste link)