No final do mês, dia 31 de março, será o dia de lembrar dos 61 anos do golpe civil-militar no Brasil, uma data que deve ser falada para que jamais se repita. Antecipadamente, republicamos o depoimento marcante da servidora do TRT1 Lorena Moroni Girão Barroso, na edição 34 da revista Ideias (setembro/outubro de 2011). Ela faz um emocionante relato sobre sua irmã, desaparecida política.
por Lorena Moroni Girão Barroso
Jana nasceu de mãe gaúcha, pai cearense, com gotas de sangue espanhol. Essa mistura de raças e tipos deu-lhe uma beleza e um sorriso que chamavam a atenção por onde passava. Embora tenha nascido em Fortaleza, veio, ainda bem pequena, para o Rio de Janeiro com seus pais e, logo em seguida mudaram-se para Petrópolis, pois seu pai era médico, formado pela hoje chamada Unirio, e sua mãe era formada em Enfermagem, pela tradicional Escola Anna Nery, da UFRJ.
Ambos foram convidados a trabalhar em Correas, distrito de Petrópolis, no Hospital do Canavial. Ali, em constante contato com o povo doente e necessitado que procurava tratamento naquele hospital, Jana criou-se. Mas foi ali também que Jana começou a conviver com muitas pessoas de alto nível educacional, cultural e financeiro, quando seus pais foram convidados a integrar o Lion’s Club, associação internacional que tem por finalidade a prestação de serviços variados a comunidades carentes. Além disso, Jana estudou no que era considerado, à época, o melhor colégio de Petrópolis (naquela época os colégios públicos eram os melhores) – Colégio Estadual Washington Luiz – e sempre teve notas altas. Sendo a irmã mais velha de três outras crianças, também tinha responsabilidade em tomar conta dos irmãos e da casa. Era uma pessoa doce, doce e feliz, com um sorriso sempre pronto a oferecer.
Na condição de sua irmã caçula nove anos mais nova que ela e também de sua afilhada, ela me considerava sua bonequinha: penteava meu cabelo e escolhia minha roupa. Mas no meio de experiências sociais tão distintas, Jana passou a preocupar-se com as diferenças e, por que não dizer, com as injustiças sociais. Desde cedo desenvolveu sua vocação para atividades que envolvessem a ajuda ao próximo. Ainda muito jovem já dava aulas particulares. Logo conheceu o movimento escotista e bandeirante e ingressou nele, chegando ao postos mais altos de liderança e tendo sob sua responsabilidade inúmeras crianças e jovens. Talvez por influência da profissão de seus pais, na área biomédica, e por conta de seu amor pelas plantas, bem cedo decidiu estudar Biologia e especializar-se em Botânica. Sempre que saía para acampar ou para fazer passeios nas montanhas, com suas bandeirantes, vinha sempre cheia de folhas e sementes, que colocava em um álbum, para classificá-las em seguida. Naquela época era comum os irmãos menores “herdarem” as roupas dos mais velhos.
Como a família era grande e o salário de seu pai não era suficiente para tanta gente (sua mãe já havia parado de trabalhar para cuidar dos filhos), Jana econo-mizava fazendo elas mesmas suas roupas, a partir de um curso de correspondência fa-moso chamado “Gil Brandão”. Quando Jana mudou-se para o Rio, para estudar, só vindo em casa nos fins de semana, era na-tural que eu pegasse escondido, “emprestado”, algumas de suas roupas. Quando ela descobria, as broncas eram inevitáveis. Jana tinha lindos cabelos ca-cheados mas, já sob a pressão da moda, passava à ferro, lite-ralmente, o cabelo para que ele ficasse liso, ou então colocava uma meia de nylon no cabelo e com ela ficava o dia todo. Na falta de chapinha ou de escova progressiva, era assim que as moças arrumavam o cabelo. Uma outra atividade que lhe tomava bastante tempo era o “Pen Club”, muito comum à época. Jana tinha dezenas de “pen-friends” em vários luga-res do mundo e passava muito tempo escrevendo longas car-tas para todos eles. Com isso, acabou por colecionar selos do mundo todo.
Um de nossos irmãos, quatro anos mais novo, era muito inte-ressado em filosofia, o que fazia com que eles travassem longos debates filosóficos, acalenta-dos também pela participação intensa de meu pai. Os almoços de domingo mais pareciam academias filosóficas e o único momento em que a “coisa” voltava ao cotidiano normal de uma família era quando ela falava “tumate”, ao invés de “tomate”. Nem ela mesma sabia explicar porque falava assim, mas isso sempre causava risos.
Na sua atividade como ban-deirante, já como coordenadora, conheceu Mário Cesar, seu primeiro namorado, que também era do grupo de esco-teiros. O movimento escotista era a porta normal de entrada da maioria dos jovens de clas-se média, para o exercício da cidadania e da solidariedade. Era também o lugar onde pra-ticavam atividades ditas de sobrevivência, como primeiros socorros, culinária, identifica-ção de lugares e de animais.
No final dos anos 60 era co-mum que grande parte dos estudantes que desejavam fazer faculdade passasse no vestibu-lar, mesmo com boas notas, mas não conseguisse se matri-cular, por falta de vagas – eram conhecidos como excedentes. Com Jana aconteceu a mesma coisa: ela havia passado em Bio-logia na UFRJ e em Filosofia na UCP – Universidade Católica de Petrópolis; como foi excedente em Biologia, frequentou du-rante algum tempo o curso de Filosofia até que fosse chamada para a UFRJ.
A ida de Jana para o Rio, para a Faculdade de Biologia, a fez afastar-se de seu namorado, pois ela foi morar com outras estudantes em um apartamento no Largo do Machado e pouco tempo tinha para atividades que não fossem relacionadas à Universidade. Uma das poucas lembranças que deixou deste período foi uma foto dos dois, guardada com muito carinho pela família dela. Naquela época não era comum tirarem foto, por isso as poucas fotos que existem de Jana são de quando ela era bebê. Mesmo assim, a maioria destas fotos sumiu nas mãos de fotógrafos. Explico: ao longo dos anos, tem sido comum a família ser procurada por repórteres para saber a história de Jana. Como não tí-nhamos scanner nem máquina de fotocópia, costumávamos emprestar as fotos da Jana para que os repórteres fotocopias-sem e depois as devolvessem. Mas não fosse a própria histó-ria de Jana uma história triste, muitos deles não devolveram as fotos, deixando a imagem de Jana apenas na lembrança. Um deles levou também, sem nunca ter devolvido, um pequeno diá-rio em que ela registrava suas impressões de adolescente.
Nossos pais, por força da con-vivência com a dura realidade da fome e da miséria, não só das famílias de onde vieram (ambas as famílias eram muito pobres), mas também pela profissão que escolheram, tinham convicções políticas fortes sobre o que se-ria justiça social e sobre o papel que nossa família deveria ter na sociedade, pois eles já tinham uma ideologia formada, basea-da no compromisso de sempre lutar pela justiça, pela verdade e pela melhoria da condição humana, mesmo que naquele tempo o país inteiro estivesse submerso em um regime de exceção.
O interesse de Jana em in-gressar no movimento de re-sistência à ditadura, embora inesperado do ponto de vista de meus pais, era inevitável dada sua formação, seu caráter inquebrantável e a falta de pers-pectiva quanto à possibilidade de a democracia retornar ao país de forma pacífica. Não havia diálogo entre o povo e os militares, o governo respondia às manifestações populares com prisão e violência. Nossos pais acompanhavam à distância o que acontecia no movimento estudantil, principalmente no local próximo a onde ela estu-dava – suas aulas eram onde hoje funciona o Consulado Italiano, na Avenida Antônio Carlos, no Centro do Rio de Janeiro e onde havia muita concentração de estudantes pois era também ali que funcio-nava o “Bandejão”. Pouca coisa saía nos jornais, já por conta da censura, e Jana também pouco falava a respeito, com a intenção de minimizar a preo-cupação da família, embora fosse praticamente impossível ser estudante naquela época e não se envolver no movimento de resistência.
Chegou um dia em que Jana chamou nossos pais no quar-to. Fiquei do lado de fora, já pressentindo que alguma coisa grave tinha acontecido. Os três saíram do quarto chorando; meu pai me chamou e disse, aos prantos: “A Jana vai embora…”. Eu perguntei: “Pra onde?” e ele falou “Ela não pode dizer, por questão de segurança. Mas vai lá e fala com ela, pede a ela pra ficar. Se você pedir ela fica, ela é sua madrinha”. E eu pedi, insisti, mas Jana não ficou. Esse foi o dia mais triste da minha vida. Durante anos me senti culpada pela partida dela; em minha mente juvenil sempre achei que Jana tinha ido embora porque meu pedido para que fi-casse não tinha sido feito com a convicção e ênfase necessárias. Embora, anos depois, eu tenha trabalhado tal aspecto em tera-pia e racionalmente saiba que nada faria Jana mudar de ideia, esta é uma passagem em minha vida em relação a qual sempre “desabo” de tanto chorar. É como se eu tivesse desapon-tado meus pais na única tarefa realmente importante que eles me deram: impedir a partida da Jana. E como falhei nisso, nada mais importa; qualquer êxito ou vitória ficará eternamente obscurecido por esta derrota: não conseguir fazer com Jana não fosse embora. E no dia se-guinte, com apenas 21 anos, ela partiu “pra lutar por um mundo melhor”…
A partir daí foi um sofrimento atrás do outro. Além da perda, em si, do convívio com a Jana, percebi ser impossível consolar meus pais e também de parti-lhar com quem quer que fosse esse sofrimento. Por razões de segurança, nem mesmo os irmãos e primos de nossos pais souberam o que aconteceu. Jana era a mais próxima e mais querida dos primos e tios, pois ela tinha convivido mais tem-po com eles. Era natural que todos sempre perguntassem por ela, sobre seus estudos, namoro etc. Ela tinha o hábito de escrever sempre para eles, então foi muito difícil esconder a situação mas, ainda, sim, em momento algum nossos pais divulgaram o que havia ocorrido, por medo de a informa-ção “vazar” para os órgãos de repressão; sempre insistíamos nas “desculpas esfarrapadas”. Começou, então, a haver atrito entre os parentes, chegando a um ponto em que descobri-mos que os demais familiares estavam achando que Jana tinha fugido com um homem casado, e por isso é que ela estaria se escondendo de todos e que não tínhamos contado a ninguém por vergonha. Imagi-nem o sofrimento de nossos pais, que tinham que conviver com esse tipo de mentira, num tempo em que isso era o mais alto sinônimo de desonra, e sem poder revelar que ela havia desistido de ter uma vidinha comum para poder lutar pela democracia, mesmo com risco à própria vida.
Da mesma forma escondía-mos a situação de todos nossos amigos e conhecidos. Petrópo-lis era uma cidade pequena, em que todos se conheciam; a situa ção era insustentável, não podíamos receber nos-sos amigos em casa para não envolvê-los. Não bastasse tudo isso, nossos pais tinham a pre-ocupação de que a repressão fizesse “sumir” um dos outros filhos. Nós nunca pudemos ter uma vida normal de adolescen-te, pois sempre havia a chance de um de nós ser levado pelos órgãos de repressão, como já estava acontecendo com algumas pessoas. Toda nossa correspondência era violada e nosso telefone era grampeado. Quando Jana partiu, combi-nou com minha mãe que toda primeira terça-feira do mês ela mandaria notícias por um por-tador. Minha mãe deveria ficar num determinado ponto de ôni-bus da Praia do Flamengo, com livro “Mãe”, de Máximo Gorki, na mão. Ela seria abordada por alguém que usaria algumas palavras chave para reconheci-mento e então haveria a troca de correspondência. Durante vários anos acompanhei minha mãe nessa via crucis e jamais apareceu ninguém. Chegáva-mos no “ponto” combinado meia hora antes e ficávamos duas horas a mais além do horário ajustado, pois minha mãe costumava dizer: “Vamos esperar mais um pouquinho, a pessoa pode ter se atrasado…”.
Meses depois, em três oca-siões diferentes, recebemos, pelo Correio, três cartas da Jana. Nelas, Jana dizia que es-tava dando aulas, que também trabalhava como parteira, que tinha um cachorro, que tinha tido dor de dente. Dirigia-se a nós usando nomes que usá-vamos quando éramos bem pequenininhos. Ela não dizia nada mais conclusivo, tudo de forma a não dar a mínima pista para os agentes da repressão de que a carta era dela e de onde ela estava, já que nossas cartas eram todas violadas. Essas cartas chegaram meses depois da data informada no seu interior e eram um tesouro que minha mãe guardava. Por isso, foi desesperador quando um repórter pediu empresta-do as cartas para tirar cópia para publicar em uma revista e sumiu com elas, nunca mais as devolvendo.
Aqui eu preciso abrir um parênteses para contar da mi-nha dificuldade em escrever esta história. Eu a escrevi para apresentá-la à Corte Intera-mericana de Direitos Huma-nos, pois eu já havia prestado depoimento em Washington sobre o assunto há dez anos, mas foi necessário apresentar, recentemente, um depoimento escrito, mais detalhado, rela-tando os fatos sob meu ponto de vista, para ser acrescido aos documentos e testemunhos já colhidos. Passei várias semanas tentando escrever pois sei que meu depoimento seria (como realmente foi) muito impor-tante para que se saiba quem foi Jana. Quase fui vencida por um bloqueio, bloqueio este que tem me acompanhado ao longo dos anos, fazendo com que eu “esqueça” todos os fatos rela-cionados ao desaparecimento da Jana. Sempre que alguém pergunta sobre, por exemplo, quando ela foi para o Araguaia, ou quando foi o suposto desa-parecimento, ou de qual grupo ela fazia parte, minha mente tei-ma em apagar tais informações e sempre tenho que consultar anotações. Quando, no final da adolescência decidi-me por cursar a Faculdade de Psicolo-gia, achei que iria entender o que acontecia comigo e com minha família, em relação ao sofrimento que nos cerca por tantos anos. Ledo engano: embora eu tenha estudado e bem compreendido os meca-nismos de defesa da psychê, o muro de defesa construído por estes mecanismos continuou tão forte quanto antes, a fim de minimizar o sofrimento causado por toda esta história. Exemplifico: durante muitos anos, após a partida de Jana, eu tinha um sonho bastante recor-rente – eu sonhava que estava dormindo e, que, quando eu acordava, minha mãe vinha me avisar que Jana tinha voltado. Com isso, cada despertar era um sofrimento contínuo, pois eu via que tinha sido apenas um sonho. Fiz algumas sessões de terapia, que trouxeram a seguinte mudança nos meus sonhos: eu sonhava que eu estava dormindo e sonhando que a Jana tinha voltado, mas que, quando eu acordava desse sonho dentro de outro sonho, eu descobria que ela realmen-te tinha voltado e que não era apenas um sonho.
Durante muitos anos me senti “doente” mentalmente falando, pois não conseguia entender como é que eu, graduada em Psicologia e atuando na época como terapeuta, nunca superei a dor que tem acompanhado o o desaparecimento da Jana. Sentia-me bastante estranha por, embora ter conseguido lidar com a morte de várias ou-tras pessoas queridas, amigos e parentes (inclusive meus pais), nas circunstâncias mais diver-sas, não conseguir resolver isso. Mais ainda, por que é que eu revivia todo o processo de luto a cada vez que eu falava sobre o assunto ou a cada vez que ouvia alguém falar sobre seus familiares mortos e desapareci-dos? Até que um dia li uma re-portagem sobre um estudo que uma cientista social chamada Pauline Boss, fez sobre o que ela chama de “perdas ambíguas”. Através deste estudo ela con-segue explicar, por exemplo, a tenacidade de um movimento como o das “Mães da Praça de Maio”, ou a dor causada pela não localização dos corpos no atentando do World Trade Center. Pauline define a “perda ambígua” como sendo a mágoa não-resolvida que pode ocor-rer quando não existem formas de atestar com certeza se uma pessoa desaparecida está viva ou morta. E explica que é uma dor que pode se perpetuar. Compreendi que todos nós, familiares de desaparecidos (políticos ou não) estamos natural e irreversivelmente condenados a este sofrimento eterno, a não ser que tenhamos informações concretas sobre as circunstâncias da morte e, também, a indicação do local onde nossos familiares po-dem ter sido enterrados. Na minha vida esta dor não veio sozinha – outros sentimentos a acompanham: a quase im-possibilidade de confiar em alguém, o isolamento social, a dificuldade de diálogo com meus pais e meus irmãos. A este propósito, sempre lembro um poema de Brecht: “Que tempos são estes em que falar sobre árvores significa silenciar sobre tantas injustiças?” Faço a seguinte correlação: que tempos são estes em que falar sobre trivialidades e sobre fatos da vida comum, significa silenciar sobre o que aconte-ceu com Jana? Agora percebo que o pesado silêncio que se abateu na vida familiar decorre dessa sensação de desconfor-to. Da mesma forma, os amigos da juventude deixaram de ser convidados para ir à nossa casa. Como explicar o fato de que minha mãe lesse todos os jornais possíveis e imaginários, e ouvisse e assistisse a todas as estações de rádio e televisão, em busca de notícias? Isso sem falar das longas horas em que minha mãe passava ao telefone, conversando com as outras mães, além das cartas e telegramas que ela diaria-mente redigia, em busca de informações sobre a Jana.
Tal silêncio também foi esten-dido à minha família atual: meu ex-marido, embora, como eu, também tenha participado do movimento estudantil na déca-da de 80, sempre teve a impres-são de que eu queria esconder dele os fatos do meu passado. Nunca consegui explicar a ele que meu silêncio era apenas uma forma de evitar a dor. Em relação a meu filho, embora ele, desde pequeno, sempre me acompanhasse nas reuniões se-manais do Grupo Tortura Nunca Mais, ele nunca puxou assunto sobre a Jana. Há apenas algumas semanas, durante uma entrevis-ta, um repórter perguntou ao meu filho se ele tinha interesse na história da Jana e o que ele achava a respeito, então meu filho falou que tinha bastante interesse, mas que não conver-sava comigo sobre isso porque percebia que me causaria dor falar no assunto.
Voltando à história da Jana em si, meus pais, a partir de seu desaparecimento, passaram a procurar informações sobre ela nos quatro cantos do mundo. Já em julho de 1971, minha mãe e eu fomos para a Europa (através de uma excursão turística, para não levantar suspeitas), com o intuito de visitar algumas organizações de direitos huma-nos como a Cruz Vermelha e a Anistia Internacional. Não obti-vemos nenhuma informação so-bre Jana, mas criamos um canal direto com estas organizações, para obtenção de informações posteriores através de outros meios como, por exemplo, a Rádio da Albânia, que era a única rádio que divulgava in-formações sobre o que estava realmente ocorrendo no Brasil (as rádios brasileiras eram cen-suradas e proibidas de divulgar qualquer informação que fosse contra o Governo). Após conti-nuarmos sem qualquer notícia, ainda por volta de 1972/1973, meu pai, através de um ami-go de infância, conheceu a advogada e então perseguida política Abigail Paranhos, de quem nos tornamos amigos e por meio de quem passamos a ter contato com outras pessoas na mesma situação de busca de notícias de amigos e familiares. Passamos a considerar a possi-bilidade de Jana ter ido para a região do Araguaia, onde havia um movimento de resistência organizado pelo PCdoB, parti-do ao qual, soubemos depois, Jana havia se integrado quando estava na UFRJ.
Em 1976 entrei para a Facul-dade de Psicologia da UFRJ e lá muitos colegas começaram a participar de movimentos contra a ditadura militar. Em minha militância estudantil, nunca consegui levantar o “as-sunto” Jana. Na verdade nunca contei nada para meus colegas e apenas em 1978, quando houve uma exposição sobre tortura ou algo parecido, é que fui sorteada, por ironia do destino, com um cartaz onde uma pessoa estava amarrada e pendurada em um pau de arara. Lembro que, foi apenas naquele momento é que contei sobre a Jana para algumas ami-gas mais próximas, do Centro Acadêmico do qual eu fazia parte; todas ficaram comple-tamente surpresas em saber que alguém tão próximo a elas estava passando por aquilo; foi difícil fazê-las entender o porquê de eu estar carregando aquele fardo sozinha, mesmo explicando que havia a questão da segurança, já que qualquer coisa que eu falasse sobre a Jana poderia chegar aos ouvi-dos da repressão e, com isso, acontecer algo de ruim para ela ou para minha família – e todos sabíamos da existência de es-piões dos órgãos de repressão se fazendo passar por alunos.
A partir daí e de minha par-ticipação no 32º congresso da UNE – União Nacional dos Estudantes, comecei a de-senvolver com mais afinco a militância estudantil e iniciei minhas atividades político-partidárias. Em 1979, partici-pei do Projeto Rondon no Pará e, naquela oportunidade, meu pai foi me encontrar em Belém, ao final do projeto, para que fossemos à região do Araguaia, junto com o advogado e ex-parlamentar Paulo Fonteles, da Sociedade de Defesa dos Direitos Humanos, assassinado alguns anos depois, a mando de latifundiá rios do sul do Pará. Fomos então a regiões próximas ao local onde ocor-reu a Guerrilha do Araguaia, mas verificamos que seria necessário o estabelecimento de uma logística prévia, para que a obtenção de informações pu-desse ser feita de forma segura e fidedigna, o que só ocorreu algum tempo depois.
Paralelamente, minha mãe passou a frequentar as reuni-ões do Comitê Brasileiro pela Anistia e lá passou a ter contato com militantes e familiares de mortos e desaparecidos e a trocar informações com eles, o que possibilitou a organização da 1ª caravana de familiares de mortos e desaparecidos políti-cos ao Araguaia, em 1980, da qual ela fez parte, junto com representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, membros da igreja católica, políticos e jornalistas. Esta caravana foi um marco na história da busca dos mortos e desaparecidos no Araguaia, pois, com as in-formações então coletadas não foi mais possível ao Governo querer “tapar o sol com a pe-neira” no sentido de negar a própria existência da guerrilha. A partir daí, a história já se torna mais conhecida, com a criação da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos e dos Grupos Tortura Nunca Mais em vários estados.
Nossas cartas e telefonemas continuavam sendo “grampea-dos” e policiais foram à nossa casa, procurando por Jana, sem dar qualquer justificativa. Tivemos que destruir todo e qualquer livro ou material que pudesse ser interpretado, de alguma forma, como sendo de “esquerda”, por medo de isso prejudicar a situação da Jana.
Em 1982, minha mãe, junto com outros familiares, ingres-sou com ação em face da União federal, objetivando esclarecer as circunstâncias do desapare-cimento de nossos familiares. Ao lado de todas estas ten-tativas de obtenção de infor-mações sobre a Jana, meu pai, minha mãe, meus irmãos e eu percorremos inúmeros lugares – prisões e manicômios (havia a “esperança” de que Jana esti-vesse desmemoriada em algum lugar), no Brasil e no exterior; escrevemos centenas de car-tas para dúzias de entidades ligadas aos direitos humanos, para jornalistas, para advoga-dos, para políticos e todo tipo de autoridade. Também no Congresso Nacional, inúme-ras foram as ações feitas para resolver a questão dos mortos e desaparecidos políticos, mas sempre esbarrando no interesse dos militares, que se colocavam, em princípio, negando até a própria existên-cia da Guerrilha do Araguaia e, posteriormente, negando a existência de informações sobre aquele período, negativa esta que subsiste até os dias de hoje. Todos os tipos de tentati-va de obter informações acerca do ocorrido com Jana foram feitas, nos campos político, ju-rídico e até espiritual, tamanho era o desespero de minha mãe. Mas a morte de meus pais veio antes das informações.
A partir de relatos de teste-munhas, várias são as versões sobre os últimos momentos de Jana. Com o advento da lei 9.140/1995, que reconheceu Jana como desaparecida políti-ca, tivemos alguma esperança de descobrir o que realmente aconteceu com ela, já que a lei previa, num segundo momento, a apuração das circunstâncias de desaparecimento. Resta agora uma única espe-rança, que é a decisão recen-temente publicada da Corte Interamericana de Direitos Humanos, condenando o Bra-sil pelas graves violações de direitos humanas relacionadas à Guerrilha do Araguaia, pois vemos que, mesmo em um go-verno em que seus principais dirigentes sentiram na pele as atrocidades da ditadura, nada acontece de concreto no sen-tido de dar uma solução para o caso dos mortos e desapareci-dos durante a ditadura militar. O governo civil parece ainda temer determinado ramo dos militares com a mesma intensidade que na época da ditadura; por isso creio que apenas a partir do cumprimen-to da sentença da Corte Inte-ramericana determinando que o governo brasileiro preste as informações necessárias, seja através da abertura dos arqui-vos públicos e da divulgação de documentos em poder de militares, seja através da oiti-va dos que fizeram parte dos órgãos da repressão, é que nós, familiares, assim como toda a sociedade brasileira e internacional, poderemos ter uma chance de conhecer a Verdade.
* Servidora da 48ª Vara do Trabalho – TRT da 1ª Região.