Por Mauro Figueiredo*
Não seria equívoco afirmar que o nosso destino depende de nossas escolhas, e que as decisões que tomamos na vida que acabam por nos colocar em trilhos que não condizem com nossa própria essência são decisões para o mal, não apenas para o nosso próprio mal, mas para o mal de toda a coletividade. Explico:
Nosso dom, nossa bliss, conforme afirma o saudoso mitólogo Joseph Campbell, é aquilo que temos de melhor para oferecer ao mundo. Se negamos ao mundo o nosso dom, se negamos ao mundo aquilo que de melhor possuímos, então, egoisticamente, abdicamos da nossa missão.
Como um pássaro recém-saído do ovo, tem gente que olha ao redor, em desespero, com medo da morte após o primeiro passo. Tem gente que conta e reconta as penas das asas enquanto contempla seus pares alados singrarem os céus.
Assim se dá no mercado de trabalho. O jovem, recém-saído do ovo, bombardeado por narrativas pessoais das mais diversas, algumas temperadas com pitadas de frustração e rancor, acaba abdicando de voar, de se arriscar ao sabor do vento e da sorte.
Isso não quer dizer que seu raciocínio não seja lógico, muito pelo contrário. Como trocar a estabilidade do ninho pela aventura, pela descoberta, pela chance de fracassar, ou de ter sucesso? A lógica do pequeno pássaro assustado e inseguro é corretíssima. Ele certamente contemplou não só o altaneiro voo dos seus pares, como também viu muitos deles despencarem dos céus como Ícaro. Então, optou pela segurança, pelo modesto, porém estável conforto.
Raciocínios lógicos podem se basear em premissas equivocadas. Tomar como base para uma decisão tão importante e determinante o medo é errar antes de sequer começar. Abdica-se covardemente daquilo que se tem de melhor para oferecer ao mundo.
E se assim falo, não falto ao respeito que sempre tive pelos meus pares – sou também um servidor público. Eu fui um dos pássaros que, apesar de saber voar, morria de medo de cair, e quando o medo supera a vontade de viver, morremos um pouco, matamos algo de precioso que trazemos no âmago da alma.
Confesso, porém, que tenho visto com certo pesar essa onda do serviço público. É absurda a quantidade de jovens que se preparam para seguirem por essa senda.
Devo ressaltar com letras garrafais que aqui não afirmo que o serviço púbico sempre será a escolha equivocada. Longe disso. O serviço público é uma vocação tão nobre quanto todas as outras. O que causa espanto é ver crescer, cada vez mais, a onda do serviço público entre os jovens recém-formados deste país. São milhares de cursinhos preparatórios que prometem a redenção, a salvação da lavoura.
Isso apenas comprova o fato de que o mercado de trabalho do setor privado não oferece aos mais capacitados e talentosos jovens um ambiente dotado de um mínimo de estabilidade. E aqui vai também um violento puxão de orelha no empregador brasileiro. Os gestores de políticas de contratação de mão-de-obra que trabalham nas empresas privadas pensam que a garantia da estabilidade desestimularia o funcionário. Trata-se, também, de uma premissa equivocada. Se garantissem um ambiente mais estável aos seus colaboradores, acabariam por atrair uma mão-de-obra cada vez mais qualificada. Esquecem-se do valor que a estabilidade tem em um país como o Brasil, que convive com elevados índices de desemprego entre os jovens, além da baixa cobertura social. É assustadora a perspectiva de ficar desempregado e sem recursos para continuar a pagar por um seguro de saúde, e passar a ter que depender de hospitais públicos.
Nesse contexto, a estabilidade passa a ter um peso muito maior do que teria em um país com uma economia mais dinâmica e robusta. No Brasil, isso parece ser ignorado pelos grandes empregadores do setor privado. Devo ressaltar que, quando falo em estabilidade para empregados do setor privado, não me refiro aos mesmos mecanismos de estabilidade oferecidos aos servidores e empregados públicos. Já tive conhecimento de empresas privadas que oferecem contratos que preveem tempo mínimo de cinco anos com multa de vinte por cento por rescisão unilateral. Isso, por si, talvez, servisse para atrair mais talentos, que, hoje, engrossam as filas dos cursinhos preparatórios para concursos públicos.
Hoje, vemos toda uma pressão por parte de alguns setores da sociedade para que se retire a estabilidade do servidor público. Trata-se, obviamente, de uma demonstração clara do ressentimento do setor privado. Recusam-se a investir na estabilidade dos próprios colaboradores e, agora, frustram-se com a concorrência estatal no mercado de mão-de-obra. Alegam alguns empreendedores que se trata de uma luta desigual, já que o Estado, além da estabilidade, teria melhores condições de garantir salários médios em patamares bem superiores aos pagos pelo setor privado.
É deste jeito que vem caminhando este nosso país. Nem é necessário ser um engenheiro de máquinas para ver, logo de plano, que as engrenagens das forças produtivas da nossa sociedade não estão funcionando da maneira como deveriam, com parcelas mais qualificadas da população sendo atraídas para o setor público, mesmo sabendo que lá não terão as mesmas chances de progressão e desenvolvimento na carreira que teriam no setor privado. Justamente o setor privado, que deveria contar com os trabalhadores mais qualificados, não demonstram competência em atrair jovens talentos, já que oferecem muito pouco em troca: baixos salários iniciais, sobrecarga de trabalho, e nenhum mecanismo que garanta um mínimo de estabilidade aos jovens colaboradores.
Há pouco, uma pesquisa por amostra de domicílio revelou um dado interessante: a maior concentração de trabalhadores com mais de uma formação universitária se encontra exatamente no serviço público.
Os gestores de pessoas do setor privado deveriam saber que o jovem profissional necessita de um mínimo de estabilidade e previsibilidade para poderem investir em formação profissional. Os servidores públicos, justamente por possuírem estabilidade, mostram-se mais dispostos a investirem em sua própria formação. Os trabalhadores do setor privado devem, antes, compor uma reserva financeira para o caso de ficarem desempregados de uma hora para outra e, portanto, mostram-se mais reticentes em fazer grandes investimentos em sua própria formação e qualificação profissional.
Hoje, existe no Brasil um enorme contingente de servidores públicos muito qualificados, corajosos, comprometidos e inovadores. A Operação Lavajato jamais teria existido não fosse o comprometimento, dedicação e competência de um enorme número de jovens profissionais, e me refiro a todos os envolvidos: agentes, escrivães, peritos, delegados de polícia, servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União… Devo deixar claro que, quando falo em servidor público, refiro-me ao seu sentido lato sensu.
O bom da onda do serviço público foi atrair para a Administração Pública Direta e Indireta jovens verdadeiramente vocacionados e talentosos.
O ruim, conforme mencionei antes, é que muitos vêm buscando esse caminho tomando como premissa o medo, sem perscrutarem o fundo da alma, sem sequer se questionarem acerca daquilo de melhor que poderiam dar ao mundo.
Os últimos escândalos de corrupção que vieram à tona, graças ao talento de um enorme contingente de servidores públicos vocacionados, expuseram a face mais desavergonhada da concentração de riquezas deste país: grandes conglomerados privados saqueando o Estado em conluio com agentes políticos e servidores públicos inescrupulosos e desonestos, com poucos se locupletando à custa de toda a coletividade. São exatamente esses grandes grupos privados que prometem muito pouco em troca da mão de obra qualificada de jovens colaboradores.
Se o eleitor médio brasileiro tiver um pouquinho de juízo na cabeça, certamente rechaçará nas urnas qualquer proposta de se acabar com a atratividade do mercado de trabalho do serviço público.
Sim, o serviço público deve continuar a atrair os vocacionados. Não podemos abrir mão de profissionais qualificados na Receita Federal, no Poder Judiciário, no Ministério Público, nas Polícias, na Saúde, na Educação…
O que se torna necessário, no momento, é um grande pacto que reúna os empreendedores do bem em prol da nossa grande virada. Isso, por obvio, exigirá que se abra mão dos lucros exorbitantes, da vaidade de um dia poder figurar na capa da Revista Forbes, para que o setor privado volte a ser uma opção atraente para os jovens deste país.
Menores dividendos ou lucros para os acionistas no médio prazo: é o preço a pagar para que aqueles jovens pássaros assustados não morram secos de esperar no ninho enquanto contam, inseguros, as penas das asas, e possam dar sua contribuição para alavancar a competitividade das empresas brasileiras, quase todas presas fáceis para concorrentes multinacionais. Não podemos prescindir da garra, talento e vocação do jovem recém-formado. Para tanto, é necessário que se ofereça um ambiente adequado para que esse jovem se desenvolva ao longo de sua carreira.
Se esta grande virada não acontecer – e isso depende necessariamente da maior qualificação da mão de obra do setor privado –, o Brasil estará condenado a sempre ter breves chicken flights, meros voos de galinha, como um dia nos advertiu jocosamente “fontes estrangeiras”.
*Mauro Figueiredo tem bacharelado, licenciatura e especialização em Letras pela UERJ, mestrado em Linguística Aplicada pela UFF, bacharelado em Direito, e pós-graduação em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. É professor, tradutor e servidor público do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, e representante de base do Sisejufe