Por Antônio Augusto de Queiroz (*)
Uma das formas de medir a influência de um governo é analisando a capacidade de aprovação de sua agenda de políticas públicas no Poder Legislativo, tarefa que, no caso do Brasil, é facilitada pela enorme quantidade de temas que são de iniciativa privativa do presidente e por outros recursos de poder, como o de pedir urgência para seus projetos, de ter liderança nas casas do Congresso, de poder compartilhar a gestão com sua base, de poder liberar emendas do orçamento e negociar o conteúdo das políticas públicas. A literatura nacional e internacional sugere que existe prevalência do Poder Executivo na produção legislativa.
No plano internacional, dentre os estudos que indicam essa prevalência do Poder Executivo na produção legislativa, podemos citar o da Inter-Parliamentary Union (1986), segundo o qual, em mais de 50% de todos os países, os governos encaminham mais de 90% dos projetos de lei. Segundo o mesmo estudo, citado por George Tsebelis (1997), 1 “a probabilidade de que esses projetos sejam aprovados é muito alta: mais de 60% passam com uma probabilidade superior a 0,9 e mais de 85% são aprovados com uma probabilidade maior do que 0,8”.
No plano nacional, estudos dos cientistas políticos Figueiredo e Limongi (1999 e 2000)2 demonstram a prevalência do Executivo sobre o Legislativo em número de leis de sua iniciativa no período 1964 a 1994, com uma taxa de 85% das leis aprovadas após a Constituição de 1988 com origem no Executivo. Fábio Barros Correia Gomes (2013)3 , em levantamento empírico sobre 3.043 leis aprovadas entre 1989 e 2001, confirma a taxa de sucesso dos projetos do Poder Executivo, constatando que 86% da produção legal nesse período foi iniciada por esse poder.
Com o objetivo de aferir essa assertiva, foram levantados dados sobre a produção legislativa de quatro presidentes da República em seu primeiro ano de mandato: FHC, Lula, Dilma e Bolsonaro. O objetivo não foi analisar o conteúdo das políticas ou a linha política ideológica de cada governante, mas examinar apenas a efetividade do governante no controle de sua agenda legislativa prioritária perante o Congresso Nacional, fazendo uso dos instrumentos disponíveis para exercer influência e manter controle do processo decisório.
Para tanto, foram levantadas as principais normas legais incorporadas ao ordenamento jurídico no primeiro ano dos mandatos presidenciais, e as proposições que as produziram, como Propostas de Emendas à Constituição, projetos de lei complementar, projeto de lei ordinária, projetos de créditos, que tramitam no Congresso Nacional, bem como a medidas provisórias, e foram analisadas a origem (iniciativa), se do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.
A metodologia consistiu no exame da iniciativa de cada umas das proposições legislativas incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro entre o período de fevereiro a fevereiro do primeiro ano de mandato. A data de fevereiro se deve ao fato de que a sessão legislativa somente se inicia em fevereiro, por isso não se optou por janeiro, que é a data de posse do Presidente da República.
Vejamos a tabela com o resultado do levantamento
Em todas as proposições, o presidente FHC foi o que teve melhor desempenho frente ao Congresso em termos de iniciativa legislativa, seguido de Lula e de Dilma. Bolsonaro foi o único Presidente da República em que o Poder Executivo perdeu para o Poder Legislativo em iniciativa de normas legais incorporadas ao ordenamento jurídico: Emendas Constitucionais, Leis complementares e, principalmente, leis ordinárias.
Quando se analisa apenas as leis ordinárias, as de maior número, a tabela deixa evidente que o presidente que aprovou mais leis de sua iniciativa foi FHC, com 210 contra 61 de iniciativa do Poder Legislativo, seguido de Lula, com 145 de sua iniciativa contra 45 do Congresso e Dilma, com 105 de sua iniciativa contra 89 de iniciativa do Poder Legislativo. Na gestão Bolsonaro, a tendência se inverteu, com o Poder Legislativo aprovando mais leis de sua iniciativa, 90, do que o Poder Executivo, que aprovou 79 leis ordinárias no período.
Se o critério for lei complementar, o desempenho do governo Bolsonaro frente ao Congresso e aos demais presidentes também tem o pior desempenho: as seis leis complementares aprovadas em seu primeiro ano de mandato são de iniciativa de parlamentares, resultado muito parecido com as Emendas à Constituição (EC). Das seis ECs aprovadas no período, cinco são de iniciativa do Poder Legislativo.
A inversão de tendência salta aos olhos, com o Legislativo passando a liderar a iniciativa de leis ordinárias aprovadas, a partir do Bolsonaro, conforme gráfico a seguir:
Outro levantamento, este focado apenas nas medidas provisórias, evidencia e reforça a perda de controle pelo Poder Executivo de sua agenda junto ao Congresso Nacional, a partir do governo Bolsonaro. A tabela a seguir reúne as medidas provisórias que foram convertidas em lei, que foram rejeitadas ou que perderam a eficácia sem deliberação do Congresso Nacional durante o primeiro ano dos quatro presidentes. Outra vez o governo Bolsonaro foi o que teve o maior número de medidas provisórias que perderam a eficácia. Os dados relativos ao governo FHC são de período em que as medidas provisórias podiam ser reeditadas indefinidamente e as que foram sucedidas na reedição eram classificadas como se tivessem sido rejeitadas ou perdido a eficácia.
Em termos históricos, entretanto, um dado chama a atenção sobre as deliberações do Congresso Nacional sobre medidas provisórias. De acordo com Amorim Neto (2007: 137-138)4 , o Legislativo costuma modificar as medidas provisórias do Poder Executivo. Das 6.406 medidas provisórias editadas entre 5 de outubro de 1988 (data de promulgação da Constituição brasileira de 1988) e 15 de outubro de 2006, apenas 861 (13,4%) foram aprovadas em seu formato original e 42 destas foram rejeitadas. Isto significa que a esmagadora maioria sofre algum tipo de modificação pelos parlamentares.
Veja, na tabela a seguir, o desempenho dos presidentes FHC, Lula, Dilma e Bolsonaro em relação a medidas provisórias editados em seu primeiro ano de mandato.
Além desse aspecto, a falta de controle pode ser vislumbrada no número de vetos derrubados pelo Congresso Nacional. Embora, até 2012, o Congresso não apreciasse, com regularidade, os vetos presidenciais, tendo passado a fazê-lo apenas após a decisão do Supremo Tribunal Federal em dezembro de 2012, quando da apreciação do Mandado de Segurança 31816, o primeiro ano do Governo Bolsonaro mostra uma elevada taxa de vetos rejeitados, em comparação com os 7 anos anteriores. De acordo com matéria publicada no jornal Estado de Minas Gerais5 , edição de 14 de agosto de 2020, a partir de levantamento do Estado/Broadcast, o número elevado de derrubada de vetos pelo Congresso durante o Governo Bolsonaro evidencia a falta de articulação política do Palácio do Planalto. Diz a matéria:
“Jair Bolsonaro se tornou, na quarta-feira, 13, o presidente da República com mais derrotas em votações de vetos no Congresso. Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, Bolsonaro teve 24 decisões revertidas pelos parlamentares, o que corresponde a um terço do total de projetos barrados pelo presidente e analisados pelo Legislativo no período. O número é maior do que a soma de todos os reveses sofridos pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que permaneceram oito anos na Presidência…
… A comparação com governos anteriores mostra que a derrubada de um veto presidencial era algo raro. Na gestão Lula (PT), por exemplo, foram derrubados apenas dois dos 357 itens vetados (0,56%). Até então, Michel Temer (MDB), que ficou pouco mais de dois anos no cargo, era o presidente que mais registrava derrotas deste tipo, com 21 reveses (16,4% do total)”.
A perda de condição de líder na produção legislativa do Poder Executivo para o Legislativo, bem como o elevado índice de perda de validade de medidas provisórias antes da deliberação no Congresso e o grande número de vetos rejeitados, invertem uma tendência que vinha desde a redemocratização na relação do Executivo com o Legislativo, amplamente documentado na literatura conforme já evidenciado anteriormente. O único registro sobre a prevalência do legislativo sobre o Executivo em termos de leis de sua iniciativa, conforme Amorim Neto (2007), citando PASSANHA (2002), foi no período democrático entre 1946 e 1964, quando a autoria das leis de iniciativa do Congresso chegava a 57% do total de leis editadas. Nesse período, todavia, a Constituição Federal não atribuía tantos poderes e prerrogativas ao Presidente da República, como a atual confere.
A pergunta que procurei responder no artigo foi “quais os fatores que determinam a predominância do Legislativo na aprovação das leis”, considerando que a literatura nacional e internacional sugere que é o Poder Executivo que lidera a produção legislativa. A hipótese que foi testada é de que o modo como os presidentes se relacionam com o Congresso, a maneira como constroem seus núcleos de governo, assim como a forma como exercem sua liderança interferem no resultado da produção legislativa e, em consequência, no controle da agenda.
Estudos sugerem que não basta os presidentes contarem com a prerrogativa de iniciativa privativa em muitas matérias para liderar a produção legislativa e controlar a agenda prioritária. É preciso que o Chefe do Poder Executivo tenha capacidade de coordenação, de articulação e sobretudo faça bom emprego dos recursos de poder colocados à disposição dos presidentes, especialmente em um sistema pluripartidário como o brasileiro, onde os presidentes são forçados a formar coalizões para governar.
A premissa que utilizei é de que os presidentes que priorizam a cooperação e evitam o conflito, valorizam a conciliação e o diálogo, constroem estruturas específicas para dar suporte à relação com o Congresso, especialmente por intermédio do chamado núcleo de governo, têm mais chances de sucesso tanto na aprovação de sua agenda quanto no controle do processo decisório no âmbito da União.
Para abreviar a conversa, vamos direto às conclusões. O levantamento demonstrou que entre os quatro presidentes, o único que não logrou sucesso em aprovar sua agenda no Congresso, perdendo para o Poder Legislativo a hegemonia na aprovação de leis, foi o Presidente Jair Bolsonaro, que também foi o único que, em lugar de buscar a conciliação e a negociação em seu início de mandato, optou por negligenciar a relação com o Congresso, e até, pelo contrário, decidiu hostilizar os parlamentares segmentos do parlamento.
As evidências indicam, ainda, que ao adotar um estilo hostil ao Parlamento, acusando seus membros de pertencerem à velha política, de práticas fisiológicas e clientelísticas de só apoiarem os governos em troca de favores e verbas públicas, o Presidente Bolsonaro criou condições para que as suas derrotas na arena legislativa fossem inevitáveis. Certamente também pesou a forma como escolheu os ministros e dirigentes, que ignorou os partidos, o congresso e a sociedade, bem como o modo como elaboração as proposições, com baixa qualidade técnica, especialmente nos aspectos de mérito e de juridicidade, na formulação das políticas públicas.
O levantamento também confirmou os pressupostos dos modelos de análise política segundo os quais se os presidentes da República não se elegem em uma grande coligação, não formam uma coalização de apoio para governar nem priorizam a relação com o Poder Legislativo terão maiores dificuldades para aprovar sua agenda legislativa.
As reiteradas derrotadas no Parlamento levaram o governo Bolsonaro a mudar de orientação, tanto que a partir de 2020 passou a buscar a composição de uma base parlamentar mais consistente, utilizando dos mesmos mecanismos que tanto criticou na campanha e no primeiro ando de mandato: o uso de mecanismos de patronagem, como a indicação para cargos ministeriais e a liberação de emendas parlamentares.
(*) Jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV/DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.