Não faz muito tempo, era comum caminhar pelas maiores cidades do mundo desviando de moradores de rua, acotovelando-se nos metrôs rezando para não ser assaltado ou assediado, lamentando passivamente o trânsito, o tempo, o ar poluído, o jejum de manhã para conseguir bancar o jantar à noite, o “sobra mês no fim do salário” — e cinicamente ignorando diversos protestos pipocando nas avenidas, como se tudo fosse simplesmente “normal”. Diante da pandemia de covid-19, entretanto, escancarou-se que nada disso deveria ser considerado natural, inevitável ou até aceitável.
Nos últimos dias, autores de diferentes linhas ideológicas e políticas, de marxistas como David Harvey a liberais como Joseph Stiglitz, passando por Mike Davis, Naomi Klein e Slavoj Zizek, trataram deste assunto, direta ou indiretamente: a dimensão política da pandemia do novo coronavírus, na qual uns têm mais chances de sobreviver e outros são simplesmente deixados de lado, à própria sorte (a ideia de “biopolítica”, expressão do filósofo francês Michel Foucault, ou de “necropolítica”, do historiador camaronês Achille Mbembe). Comum entre eles é a questão: o que vem depois? Vamos voltar ao “normal” depois da pandemia? Aliás, queremos voltar à “normalidade”? Ou este é o fim do mundo tal como o conhecemos, como propôs o autor de “Sapiens”, Yuval Noah Harari?
“A humanidade está enfrentando uma crise global. Talvez a maior crise da nossa geração. As decisões das próximas semanas provavelmente vão moldar o mundo. Vão moldar não só nossos sistemas de saúde, mas nossas economias, políticas e culturas. Devemos agir ágil e decisivamente. Também devemos considerar as consequências de longo prazo das nossas ações. Ao escolher entre alternativas, devemos nos perguntar não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a tempestade passar. Sim, a tempestade passará, a humanidade sobreviverá, a maioria de nós ainda estará viva — mas habitaremos um mundo diferente”, aposta o autor.
O capital está nu
“A pandemia revela a tragédia social que vivemos no mundo. É uma fotografia da brutalidade de um sistema econômico e político perverso, que diz que o mundo é dos ricos e os pobres que se virem. É simples e duro assim”, define o sociólogo Ricardo Antunes, autor de “O privilégio da servidão” (2018) e professor titular de sociologia do trabalho da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Para Antunes, a pandemia reflete como as classes trabalhadoras são historicamente afetadas nas periferias, nas favelas e nos bolsões de pobreza. “O rei está nu. O rei é a sociedade pautada pela riqueza de poucos e a desumanização brutal de muitos.”
É o maior momento de contestação do capitalismo e da globalização desde a queda do Muro de Berlim, de 1989, avaliou o cientista político Fernando Bizzarro ao jornalista José Roberto Castro, no TAB.
As contradições são bastante antigas, mas ficaram evidentes mais recentemente, com as discussões sobre parar ou não parar o país, privilegiar o mercado ou proteger a sociedade, o capital ou o trabalhador.
Estamos tão “acostumados” com o abismo socioeconômico que muitas vezes esquecemos que não é normal que uns vivam na miséria e outros esbanjem riqueza. “A pandemia em curso agudiza as contradições do capitalismo e torna mais difícil ignorá-las”, destaca ao TAB o cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB).
Por um lado, ressoou o discurso de empresários, como Junior Durski e Roberto Justus, contrários às diretrizes de isolamento social para conter a disseminação do Sars-Cov-2 no Brasil (chanceladas pela OMS) – e, na algaravia da internet, até norte-americanos ricos como Britney Spears e o bilionário Bill Gates, que se manifestaram minimamente pró-isolamento, foram taxados de “comunistas”.
Por outro, voltaram à baila propostas de renda básica e taxações de fortunas de bilionários brasileiros para amparar os setores mais vulneráveis à coronacrise; bombou a campanha #FicaEmCasa e perfis como @CoronaCapitalismo passaram a denunciar empresas que não liberaram funcionários para quarentena — #SeuLucroNãoValeNossasVidas é a hashtag.
“No Brasil, o grande problema é que nossa sociedade ‘naturalizou’ a desigualdade”, critica o sociólogo Jessé Souza, autor de “A classe média no espelho” (2018) e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, entre 2015-2016. Isso acontece por dois motivos, diz ele: “Primeiro, porque ninguém, na elite e na classe média branca e privilegiada, assume sua responsabilidade na reprodução da iniquidade e culpabiliza as próprias vítimas pelo seu infortúnio. Além disso, a desigualdade é aceita como algo inevitável, algo impossível de mudar.”
Devido à herança histórica da escravidão, argumenta Souza, negros e pobres são vistos como “sub-gente”, cuja morte é indiferente às elites. “Toda sociedade com passado escravocrata que não criticou esse passado o reproduz de forma modificada ao longo do tempo. O Brasil é o melhor exemplo empírico disso no mundo”, acrescenta.
“Historicamente, catástrofes acabaram provocando políticas e ações que reduziram a desigualdade. Há muitos motivos para isso. Um deles é que catástrofes deixam claro que temos uma vida em conjunto com desafios que têm que ser enfrentados coletivamente. Na vida cotidiana, em sociedades muito desiguais, é muito fácil para os mais ricos se autoexcluírem de parte dessa vida conjunta: afinal, podem pagar escolas particulares, saúde privada e assim por diante. Em uma crise como essa, torna-se transparente que a vida de todos está interligada de alguma forma, e as exigências de ação para o poder público crescem muito”, considera Pedro Ferreira de Souza, autor de “Uma história da desigualdade” (2018) e pesquisador do Ipea.
Para Ferreira, que estudou a história da distribuição de renda no país, o Estado brasileiro “dá com uma mão e tira com outra” na hora de tentar equilibrar a desigualdade. “Há muitas políticas e programas que beneficiam os mais pobres e outras tantas que beneficiam os mais ricos. A resistência a mudanças é muito grande porque as perdas seriam muito concentradas e os ganhos, muito difusos. Então a economia política da questão acaba sendo um jogo de soma zero, em condições normais. Espero que a resposta à crise consiga quebrar essa inércia.”
A seguir, o TAB discute cinco pontos latentes da desigualdade que foram desvelados pela pandemia.
1. Não é normal se matar de trabalhar tentando sobreviver
72% dos brasileiros temem perder renda por causa dos impactos econômicos da pandemia, indica pesquisa Datafolha. No país de 11,9 milhões de desempregados e 38,4 milhões de trabalhadores informais, licença remunerada para a quarentena não é tratada como direito, mas privilégio. Nas favelas, 72% não têm reservas no cofrinho para atravessar a crise. Passar horas no trânsito e enfrentar empurra-empurra diariamente nos metrôs e trens para ganhar uns trocados é a realidade de milhares de brasileiros. Multiplicam-se as histórias de entregadores de apps, ambulantes, caminhoneiros e empregadas domésticas, para quem parar não é uma alternativa. “Se não morrer desse vírus, morro de fome”, definiu um ambulante de 65 anos. “O patrão mandou abrir”, abreviou uma funcionária de uma loja de bolos no centro de São Paulo.
“O herdeiro ou o acionista da empresa, que têm sua renda garantida e podem decidir o que querem fazer do seu tempo, dispõem de liberdade [de escolha]. Quem precisa trabalhar de sol a sol, não. A pandemia também dramatiza isso. Se as pressões de patrões inescrupulosos triunfarem, milhões de trabalhadores terão que fazer uma escolha impossível entre se expor à contaminação ou perder o ganha-pão. Simplesmente não é justo”, analisa Luis Felipe Miguel.
“No Brasil, temos mais de 5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras em trabalhos uberizados, um trabalho de longas jornadas, ancorado num aparato digital, por salários indigentes, guiando bicicletas e automóveis mais de 14 horas por dia, 7 dias por semana, acidentando-se e morrendo”, diz Ricardo Antunes. “A pandemia atinge os ricos também, mas eles têm muito mais recursos do que a classe trabalhadora para sobreviver nesse período. A proposta de auxílio do governo de R$ 200 por mês para trabalhadores informais estava a milhões de quilômetros abaixo do acinte, era indigna. R$ 600 ainda é vergonhoso: um trabalhador uberizado não paga sequer os custos mais elementares da sua casa”, acrescenta.
Nos últimos dias foram desengavetadas as discussões sobre a renda básica, desde 1991 encampada pelo ex-senador Eduardo Suplicy e até considerada folclórica. Diante da pandemia do novo coronavírus, porém, a proposta de distribuição de renda passou a ser vista como peça essencial para atravessar a crise.
2. Não é normal não ter acesso a bons hospitais
Faltam hospitais, equipamentos para enfermeiros e médicos, leitos, investimento e informação. “Quem vai sofrer mais são os pobres, mais vulneráveis. Eles vão morrer nas portas dos hospitais, não vão conseguir entrar, muito menos receber um tubo para respirar e sobreviver à pneumonia. O pobre vai morrer na calçada”, alertou o médico Miguel Srougi, professor da USP (Universidade de São Paulo) e um dos maiores cirurgiões do país.
Em diversos países a pandemia evidenciou a importância de um sistema público e gratuito, como o SUS (Sistema Único de Saúde), instituído no Brasil em 1988. Nos últimos dias, diagnostica Luis Felipe Miguel, até economistas liberais vêm defendendo o fortalecimento do SUS. “Está claro que o tratamento precisa ser igualitário [para ricos e pobres] e, portanto, não pode ser regulado pelas leis do mercado – por isso há países, como a Espanha, que nesse momento estão estatizando toda a rede hospitalar”, considera.
3. Não é normal não ter acesso a água
Se a pandemia levou a tumultos nos mercados e drogarias com disputa por álcool em gel e papel higiênico, também lembrou que muitas pessoas em situação de rua não têm acesso a água (e muito menos a desinfetante e sabonete, itens “de luxo”), em favelas não há saneamento básico, em periferias há construções irregulares e em presídios superlotados é difícil controlar a transmissão de doenças. Líderes temem “carnificina” nas favelas, especialistas temem “genocídio” de povos indígenas. Fome também é um temor para crianças que dependem de merenda dos colégios e moradores de rua que dependem de marmitas das igrejas.
Mas fome, falta de um teto ou de um abrigo não são de ontem. “O processo de invisibilização, que acontece para vários segmentos da sociedade, é uma tentativa de desconsiderar a realidade cotidiana. Uma tentativa de não impor exigências de respostas, passando a impressão de que tudo é normal”, diz Eblin Farange, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Favelas e Espaços Populares. “Assim, durante muito tempo tentou-se invisibilizar a pobreza, afirmando que esse é um país democrático, que todos têm direitos iguais e que basta se esforçar para viver bem”, critica.
4. Não é normal se sentir insegura(o) dentro de casa
Ficar isolado em casa, em quarentena, significa ficar confinado com o próprio agressor para muitas mulheres, crianças e adolescentes alvos de abuso. As Nações Unidas alertaram sobre o aumento de casos de violência doméstica — no Rio, os números subiram 50%. No Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, foram 9% mais ligações ao Ligue 180, que recebe denúncias de violência contra a mulher.
“Por que as mulheres sofrem violência? Porque provocam os homens, porque não se comportam como deveriam e por aí vai um conjunto de ‘justificativas’ para justificar o injustificável. Momentos de crise, como o que estamos vivendo agora, evidenciam a estrutura da sociedade: uma sociedade patriarcal, racista, machista e branca. Nesse momento, temos que desenvolver a absoluta solidariedade. Na briga entre marido e mulher temos que meter a colher”, define Eblin Farange.
A invisibilidade da violência que acontece dentro de casa (física, psicológica ou sexual) também é antiga, assim como as discussões sobre desigualdade de gênero fora de casa. “As mulheres são mais de 52% da população, mães da outra metade. Estão a maioria nos trabalhos informais, como manicures, cuidadoras, vendedoras de produtos na rua, trabalhadoras domésticas sem direitos trabalhistas e diaristas — quase 49% são negras e pobres. São elas as mais vulneráveis”, lembra a socióloga Eleonora Menicucci, professora titular de saúde coletiva da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres entre 2012 e 2015.
No Rio, a primeira vítima da covid-19 foi uma doméstica de 63 anos, infectada pela patroa que voltara de viagem da Itália. Diversas diaristas foram dispensadas sem pagamento após o início da crise. “Isto é um crime, uma violação dos direitos humanos dessas mulheres”, diz.
5. Não é normal negar fatos e propagar fake news
A terra é redonda, a mudança climática é um fenômeno real, a informação e a ciência são as chaves para controlar a pandemia — e não rumores bizarros como o “tio com mestrado” ou o “primo do porteiro” que inundam a internet.
E ciência não se faz sem recursos, lembrou a cientista Ester Sabino, ex-diretora do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo e uma das coordenadoras do grupo brasileiro responsável pelo sequenciamento genético do novo coronavírus em impressionantes 48 horas. No Brasil, universidades públicas são responsáveis por 95% da produção científica, de acordo com o relatório “Research in Brazil”, realizado pela empresa americana de análise de dados Clarivate Analytics.
Apesar da onda global de negacionismo científico, a pandemia vem mostrando que é preciso valorizar e investir em ciência e inovação tecnológica: diretrizes para controle epidemiológico, exames laboratoriais, elaborações de remédios, desenvolvimento de vacinas, tudo passa pela ciência. Não é “gripezinha”.
“Bem ou mal, involuntariamente, o mundo inteiro está passando por um experimento agora. A gente está vendo como diferentes regimes políticos, sistemas de organização social e diferentes medidas funcionam contra o coronavírus. […] A gente está descobrindo o que são os serviços essenciais, e estamos voltando a entender o valor de ciência, da mídia profissional e dos serviços de saúde. E de sistemas que são fundamentais desde sempre, mas que, em períodos de bonança, são fáceis de negligenciar”, definiu o virologista Atila Iamarino à agência BBC.
“Infelizmente, esse aprendizado está se dando pelo caminho mais doloroso”, comenta Luis Felipe Miguel. “A avalanche neoliberal procurou negar a igualdade como valor social básico, mas a pandemia revela com clareza que isso é um grave erro. Torço para que essas lições não sejam logo esquecidas.”
A igualdade atravessa todos esses pontos. Resta saber se esta é a hora mais escura, antes de um amanhã diferente.
Fonte: Juliana Sayuri – Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)