Por Antônio Augusto de Queiroz *
Passado o período de isolamento social da covid-19, o governo Bolsonaro pretende – em nome da recuperação da economia, da geração de empregos e do equilíbrio das contas públicas – fazer nova investida contra o Estado de proteção social, retomando a agenda de reformas nas áreas fiscal, trabalhista, administrativa e até previdenciária. A meta é aprovar essa agenda no segundo semestre de 2020.
A ideia do governo para aprovar sua agenda de desregulamentação, privatização e redução do papel do Estado na prestação direta de serviços e fornecimento de bens à população é criar um clima de comoção, de risco de caos social, com imagens que explorem a situação caótica das contas públicas – efetivamente abaladas pelo aumento de despesa e pela perda da receita corrente durante a pandemia –, os elevados índices de desemprego, os indicadores de fechamento de empresas e a ameaça de falta de recursos para manter os serviços públicos e programas sociais. E então apresentar tudo isso como símbolo de uma tragédia anunciada que precisa urgentemente ser enfrentada, fazendo uso de campanhas publicitárias para turbinar os indicadores, os eventos e a magnitude da crise como elemento de convencimento.
Em reforço à campanha para chamar atenção da população para uma hipotética situação trágica, na lógica da “baciada” do ministro do Meio Ambiente, o governo alegará que se não fizer as reformas, além de atrasar a recuperação da economia e a geração de empregos, estará descumprindo as exigências constitucionais do teto de gasto e da regra de ouro, bem como da Lei de Responsabilidade Fiscal.
No campo fiscal, as Propostas de Emenda Constitucional (PECs) 186/2019 e 188/2019, em tramitação no Senado Federal, e a PEC 438/2018, sob exame da Câmara dos Deputados, destinadas a aprofundar as restrições da regra de ouro, para proibir a ampliação do endividamento para custeio de despesas correntes e permitir a sua redução, já seriam suficientes para fornecer ao governo os meios para promover – de forma automática – os cortes em direitos e programas sociais indispensáveis para cumprimento desse objeto.
A narrativa para aprovar essas alterações constitucionais – que podem levar ao desmonte do Estado de bem-estar social, inclusive com risco aos direitos sociais do art. 6º da Constituição (a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados) – teria como fundamento a necessidade de atração de investimento do setor privado, como condição indispensável para sair da recessão, criar emprego e girar a economia.
Para tanto, o governo irá argumentar que necessita fazer o dever de casa, de um lado reduzindo a relação dívida/PIB, e, de outro, deixando ou parando de se endividar para custear despesas que não sejam de investimento. Ou seja, os benefícios atuais só seriam mantidos e usufruídos pelos atuais beneficiários se o governo não precisasse se endividar para mantê-lo, porque estaria proibido de transferir dívidas para as gerações futuras.
Na área trabalhista, o governo voltará a insistir na ideia de que o desemprego no Brasil decorre das garantias da CLT, propondo o aprofundamento da reforma trabalhista, com redução e flexibilização de direitos, sob o fundamento de incentivo ao primeiro emprego. O governo não se conformou com a caducidade da Medida Provisória (MP) no 905, que criava a Carteira Verde e Amarela e permitia a contratação em bases precárias ou com menos direitos.
Inspirada no modelo de relações de trabalho dos Estados Unidos, onde não existe Direito do Trabalho e a recuperação do emprego tem sido relativamente rápida no pós-isolamento social, a ideia agora é ir mais longe e propor a substituição do Direito do Trabalho pelo Direito Comum, utilizando como argumento o fato de que essa nova modalidade valeria apenas para os contratos de primeiro emprego e para pessoas com mais de 60 anos.
A lógica de desmonte do Direito do Trabalho faz parte da estratégia neoliberal de eliminar toda e qualquer resistência à desregulamentação da economia e das relações de trabalho. A visão governamental é de que a Justiça do Trabalho, os trabalhadores organizados e as entidades sindicais são obstáculos à desregulamentação da economia e das relações de trabalho, atores institucionais e políticos que dificultam a hegemonia plena do mercado sobre os demais setores do sistema social em temas vinculados à exploração da atividade: o Estado e a sociedade.
No tema da reforma administrativa, que também é obsessão do presidente da Câmara dos Deputados, deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), há duplo objetivo do governo. De um lado, pretende transferir a infraestrutura de produção de bens e serviços do Estado, construído com recursos públicos, para o setor privado explorar em bases lucrativas. De outro, retirar direitos e reduzir o “prêmio” salarial do servidor, para usar a linguagem do Banco Mundial, um dos defensores de reformas em bases neoliberais no serviço público.
O texto da reforma administrativa – com o fim do regime jurídico único, da estabilidade e do princípio da irredutibilidade salarial, com mudança nas regras de progressão, na promoção e no estágio probatório, e com a redução do número de cargos e carreiras e do salário de ingresso na administração pública – deve ser encaminhado ao Congresso logo no início do segundo semestre deste ano.
É preciso lembrar que a Lei Complementar nº 173/2020, recentemente aprovada, congelou, até 21 de dezembro de 2021, os salários e todos os benefícios sociais dos servidores públicos, depois de dois anos sem reajuste. Além disso, alterou em caráter permanente a Lei de Responsabilidade Fiscal para impedir: a) a concessão de qualquer vantagem ao servidor nos períodos de calamidade pública; b) o pagamento de reajuste ou benefício com efeito retroativo; e c) o parcelamento de reajuste em período superior ao mandato do titular do poder ou órgão.
O escopo da reforma administrativa, a julgar pelas declarações e sinalizações da equipe econômica, não se limitará à redução de gasto com pessoal, mas pretende ir além para rever o papel do Estado no fornecimento de bens e prestação de serviços diretamente à população, os quais seriam inicialmente e gradualmente transferidos para instituições sem fins lucrativos, como as organizações sociais e serviços sociais autônomos, e posteriormente para empresas com fins lucrativos ou mesmo mediante o fornecimento de “voucher” para aquisição desses bens e serviços no mercado.
Na questão previdenciária, igualmente há dois objetivos. O primeiro destina-se aos atuais segurados e teria a finalidade de rever as regras de transição, especialmente dos servidores públicos. E o segundo teria por finalidade a adoção do regime de capitalização, que seria destinado aos futuros trabalhadores, sob o argumento principal de geração de emprego.
A ideia de “revisitar” a reforma da Previdência, para rever as regras de transição, partiu do presidente da Câmara dos Deputados, deputado Rodrigo Maia, que considera que a reforma oriunda da Emenda Constitucional nº 103 só atingiu os futuros segurados. Já a proposta de adoção do regime de capitalização para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que já foi rejeitada na discussão da “reforma da Previdência”, é do ministro da Economia, Paulo Guedes, que declarou a intenção de propor a mudança como forma de criar incentivos para a criação de empregos, especialmente para os jovens.
É inacreditável que o período de pandemia do coronavírus, que demonstrou ao mundo inteiro a importância do Estado no esforço de salvar vidas, não tenha sido suficiente para demover as autoridades do Poder Executivo brasileiro do desmonte do Estado e dos direitos de sua população. Em nome do fundamentalismo de mercado vai continuar insistindo no receituário neoliberal, na contramão do resto do mundo, que vem fortalecendo as instituições do Estado na proteção de seus cidadãos. E, para isso, pretende aproveitar-se da desorganização da economia e das próprias finanças públicas causada pela calamidade, mostrando um oportunismo e insensibilidade atrozes.
O desafio do campo democrático e popular, além da resistência às propostas de desmonte, é apresentar alternativas que priorizem o combate às desigualdades, de um lado sugerindo uma lei de responsabilidade social que possa responsabilizar os governos por omissões na proteção dos vulneráveis, assim como existe a Lei de Responsabilidade Fiscal, e, de outro, propondo um programa de renda básica universal para socorrer os desalentados, vítimas do desemprego e do desprezo governamental.
Além disso, é urgente propor alternativas de financiamento da Previdência, que não terá como se manter tendo a folha salarial como principal fonte. Por fim, não apenas devem ser rechaçadas novas reformas constitucionais como se impõe manter erguida a bandeira da revogação da Emenda do Teto de Gastos, que já é, por si só, um instrumento de ajuste fiscal da maior gravidade.
*Antônio Augusto de Queiroz é assessor parlamentar do Diap e do Sisejufe