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Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no estado do Rio de Janeiro - Telefone: (21) 2215-2443

Negritude, invisibilidade, educação, justiça climática e ancestralidade: convidados debatem as dores, obstáculos, conquistas e desafios do povo preto 

Painel realizado pelo Sisejufe faz parte dos 21 dias de ativismo contra o racismo. Evento marcou também a inauguração da exposição itinerante Pele Preta na JF Almirante Barroso

Uma noite de encontros potentes, que emocionou do início ao fim. O debate “Negritude nas Ruas – quais pautas organizam as nossas lutas”, realizado pelo Sisejufe no Espaço de Convivência da Justiça Federal Almirante Barroso, na noite desta quarta-feira (15/3), cumpriu a missão de provocar reflexões e apontar caminhos para superar o racismo, a opressão, o preconceito e a falta de oportunidades que marcam as vidas das negras e dos negros no nosso país.

A atividade foi conduzida pela servidora Fernanda Patrícia, que é integrante do Coletivo Negro da JFRJ. Antes do debate, foi feita a abertura da exposição itinerante Pele Preta, que exalta mulheres de referência no combate ao racismo. Patrícia citou cada homenageada (veja ao final da matéria) e fez uma menção especial à coordenadora do Departamento de Aposentados e Pensionistas do Sisejufe, Neli Rosa, que estava presente no evento. Neli, por sua vez, emocionada, leu um trecho do livro Quarto do Despejo, da também homenageada Carolina de Jesus, uma das maiores escritoras do Brasil, negra, mãe, catadora de papel e moradora de favela.

As artistas que criaram as ilustrações da mostra – Iza Neves e Bela Pinheiro – também estavam presentes.

A presidenta Eunice Barbosa elogiou a sensibilidade de Iza e Bela. “A gente olha e parece que pode dialogar com Carolina de Jesus, né? É como a nossa ancestralidade viaja porque tem sempre alguém recebendo da fonte, processando na vida e passando adiante. É isso que vocês fizeram e oportunizaram para a gente”, disse.

Eunice destacou, ainda, a relevância da luta contra o racismo nesse momento em que a democracia sofre e precisa ser fortalecida na sua efetividade. “Uma democracia que precisa incluir e fortalecer as mulheres, o povo preto, a juventude, os segmentos mais vulnerabilizados, como a população em situação de rua”, continuou.

A dirigente acrescentou: “quando olhamos para o Judiciário, vemos o afunilamento, se consideramos a população preta no país, e quando olhamos no Judiciário, essa população não se vê aqui trabalhando. E se olharmos nas cortes, nos tribunais, menos ainda. Então, é urgente e necessário que façamos esse debate dentro de espaços como esse aqui na Justiça Federal”, opinou.

A atividade, concebida pela assessora política do Sisejufe, Vera Miranda, integra a programação oficial da campanha 21 Dias de Ativismo contra o Racismo.

Também presente à solenidade, Ana Paula Rios, presidente do Instituto Lar, entidade que atende pessoas em situação de rua, lembrou da luta de Maria Lúcia Pereira. Liderança do Movimento Nacional de População de Rua no país, ela faleceu em 2018. “Quem é Maria Lúcia Pereira? É um grande exemplo pra outras mulheres pretas… ela foi uma mulher preta em situação de rua. E levantou uma questão muito importante porque defendia que a população em situação de rua precisa estar dentro do debate onde se fala sobre eles”, afirmou.

A coordenadora do Departamento de Cultura, Helena Cruz, exaltou a iniciativa do sindicato, especialmente pela realização de um evento tão esclarecedor no Mês da Mulher. “Isso me traz muito orgulho de pertencer a esse sindicato porque a gente não se preocupa só com o lado financeiro. Essa troca de cultura, de experiências de vida é fundamental”, disse.

Negritude nas ruas

A coordenadora Nacional do Coletivo Enegrecer, Dara Sant’Anna, começou o debate falando sobre o futuro dos movimentos negros, após seis anos de esvaziamento de políticas de igualdade racial.

“Eu costumo dizer que a gente retrocedeu 40 anos em seis. Quando a gente está falando de política trabalhista, de política de assistência social, de educação, a gente retrocedeu a níveis alarmantes e isso tem impacto principalmente em quem depende das políticas públicas e quem depende das políticas públicas é mulher, é preto, é periferia. Então são os corpos vulnerabilizados, os corpos que dependem dessa assistência e dessa presença do estado não só enquanto o braço armado… A gente muitas vezes vê noticiada a violência policial nas nossas periferias… a forma como a polícia trata o corpo negro, o corpo favelado, o corpo periférico é uma forma extremamente violenta. E isso está na ordem do dia”, pontuou.

Pelo direito de viver em plenitude

Dara ressaltou que, antes de Bolsonaro, houve muitos avanços nas políticas antirracistas, de saúde e de acesso à educação, e que levará um tempo para a população se recuperar dos retrocessos recentes.

“Então quais são os gargalos que foram invisibilizados por uma política extremamente violenta? É uma disputa que vai precisar de mobilização não só dos movimentos negros, mas também de todo mundo que se coloca ao lado de derrotar o racismo. O que a gente quer não é ser a nova raça soberana. O que a gente quer é ter o direito de viver em plenitude, o direito de ser feliz”, desabafou.

Momento de retomada

A ativista disse, ainda, que é preciso retomar a participação social e popular no debate sobre orçamento. E lembrou dos ancestrais, que viveram, sofreram e resistiram no período da escravidão.

“Tenho a certeza de que não vai ser fácil, mas já foi pior. E a gente está aqui hoje graças a quem enfrentou esse pior. Não tem como ser mais difícil do que estar preso com os grilhões, levando chibatada. Quando a gente olha para trás, pensa: eu estou vivo porque alguém sofreu e decidiu caminhar. Essa geração do movimento negro vai fazer a sua parte e isso aqui já é parte do processo que a gente está vivendo”, disse.

Romper barreiras

Gabi Van, trans homem e membro do Fonatrans (Fórum Nacional Travestis e Transexuais de Negros e Negras) foi o segundo convidado a falar. Como articulador político social, ele carrega uma grande responsabilidade. “Hoje, com o meu corpo, com a minha vivência, com a minha militância eu luto para a sobrevivência de outras pessoas, luto para ajudar as pessoas transmasculinas pretas. Por que eu falo isso? Não é uma escolha, mas sim a nossa resistência. A gente não passa só pelo racismo, passa pela transfobia. É importante falar sobre isso. Eu estou aprendendo ainda a ser homem preto”, acrescentou.

Gabi alertou que o número de mortes entre pessoas trans é alarmante. No caso dos homens trans, é grande a incidência de suicídios.

“Na pandemia, a saúde mental das pessoas trans foi muito afetada e houve muito suicídio. De 2020 para cá, conseguimos diminuir o número de mortes com o trabalho do projeto Transzen, que veio para dar estabilidade mental para corpos trans masculinos com ênfase em raça”.

O Transzen dispõe de uma rede multiprofissional para proporcionar acesso gratuito e seguro à saúde para homens trans e transmasculinos.

Falta de acesso à saúde básica

Gabi revela que no estado do Rio de Janeiro os homens trans não têm acesso nem à saúde básica. Ele diz que falta apoio a essa população que está crescendo, sendo vítima de doenças sexualmente transmissíveis e que acaba vulnerável pelas falhas do estado. “A gente fica lutando pela sobrevivência entre nós… A gente não tem políticas públicas próprias para nossos corpos”, lamenta.

Gabi deu um exemplo básico: os homens trans têm útero, podem engravidar, sofrer violência obstétrica, mas sequer têm acesso a ginecologista para acompanhá-los.

“Nem o IBGE me reconhece”, desabafou, ao falar sobre invisibilidade.

Gabi deixou uma frase para reflexão: “O básico as pessoas não estão fazendo, que é respeitar a existência do outro”.

Justiça ou injustiça climática?

A secretária de Ambiente e Clima do Município do Rio de Janeiro e vereadora licenciada, Tainá de Paula, encerrou o debate sobre as pautas que organizam as lutas do movimento negro.

Perguntada sobre o significado de justiça climática, Tainá disse: “Quanto aos aspectos ambientais, nós estamos falando necessariamente dos arrancamentos dos nossos territórios originais, das formas de apropriação do território que antes nós tínhamos. E aí eu estou falando não só dos povos do campo, dos povos da cidade, dos povos da floresta, mas dos mocambos, das favelas… são pessoas violentadas pelo arrancamento da existência. A chave geral da injustiça climática é o processo de desumanização e de arrancamento das nossas possibilidades de vida. Poderíamos estar comendo melhor, vivendo melhor, respirando melhor, acessando um verdejar que vai não só do acesso ao verde, mas o que nos dá intelectualidade, o que nos dá paciência para continuar construindo as nossas vidas. Existe uma falta de acesso à qualidade de vida que a gente não mensura” alertou.

Ansiedade climática

Tainá também chamou a atenção para questões de saúde, como depressão e falta de acesso a tratamento para adoecimentos mentais do cotidiano. “Preto não é soberano sobre seu corpo e nem sobre seu território. Você vive uma ansiedade climática do não saber o que será da chuva, o que será da intempérie, do que será do futuro… se a minha casa vai demolir, se vai deslizar… Como vou continuar vivendo nessa angústia de não saber se continuarei vivendo? Isso é injustiça climática”, explicou.

A secretária também contou detalhes do programa Guardiãs das Matas. O projeto, lançado no início do mês em 25 comunidades cariocas, vai ajudar a preservar a Mata Atlântica, um dos biomas mais ricos em biodiversidade e também um dos mais ameaçados do planeta. A iniciativa vai valorizar e empoderar lideranças comunitárias femininas destas localidades.

“Nunca na história da cidade do Rio de Janeiro tivemos educadoras ambientais pretas, faveladas e periféricas. Isso vai ter um impacto na vida cotidiana das favelas. Vamos ter mulheres pretas de coletes batendo nas portas das pessoas dando as orientações aos moradores”, afirmou.

Tainá fez uma análise sobre a construção dos projetos de urbanização, que muitas vezes fogem à realidade das populações locais, sem levar em conta as vontades prioritárias. A secretária apontou problemas, por exemplo, para os ecolimites: “eu não posso ser uma arquiteta favelada, que vai numa favela e coloca uma barreira, um muro, um concreto, dizendo para as pessoas o seguinte: você não pertence a isso aqui”.

E questionou: “E se esse limite fosse uma floresta? E se essa floresta fosse a solução para esse território, se fosse uma agrofloresta? E se no limite de todas as florestas do Rio de Janeiro a gente tivesse hortas? Quem é que vai abrir mão de comida hoje? Ninguém”.

Qual a prioridade?

A secretária defendeu que é preciso mudar a perspectiva que separa áreas de favelas sem infra-estrutura, das áreas florestais, que são vistas como prioridade para a preservação ambiental.

“Isso é muito cruel. Eu respondo civil e criminalmente por qualquer árvore cortada no parque Nacional da Tijuca. Eu vou presa se eu cortar um pau-brasil no Parque Nacional da Tijuca e eu não vou presa quando tem 150 mil favelados sem saneamento básico na Rocinha. Que inversão de valores é essa? E tem leis que dizem exatamente isso. Então é muito importante a gente ampliar essa responsabilidade ambiental para a favela. E a gente vem trabalhando muito nessa chave do conceito que é: toda favela é uma floresta, criando um programa e um ecossistema de intervenção que solucione isso. Nós temos responsabilidade ambiental também pela favela e não apenas pela floresta. Isso muda muita coisa”, concluiu Tainá.


Mulheres homenageadas na exposição ‘Pele Preta’:

Juíza Adriana Cruz, filósofa Sueli Carneiro, escritora Conceição Evaristo, ex-ativista sindical Laudelina de Campos Melo, deputada Benedita da Silva, juíza Angelina de Siqueira Costa, religiosa Mãe Beata, ativista Maria Lucia Pereira, atriz Ruth de Souza, socióloga Vilma Reis, bailarina Mercedes Baptista, dirigente sindical Neli Rosa, auxiliar de serviços gerais Claudia Ferreira, Marielle Franco, jurista Luislinda de Valois, Tia Maria do Jongo, dirigente sindical Lucilene Lima, escritora Carolina de Jesus, ativista Jaqueline de Jesus, cantora Elza Soares e ativista Lélia Gonzalez.

Mais alguns momentos do evento:

 

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