Por Eduardo Ramos*
Esse texto nasceu de uma conversa que tive com um amigo de um certo TRE. Chamarei meu amigo de João. É triste a história narrada. Mas João tem esperança que os novos ventos que sopram em seu Tribunal tragam as novidades de mentalidade, visão, estratégia, justiça, republicanismo, valorização dos servidores e até humanidade, que ele tanto tem sentido falta no local onde trabalha há mais de 25 anos.
Pedi a João que contasse sua história desde o início. Ele falou que em seu estado o TRE tinha a maioria de servidores vindos de outros órgãos, principalmente nos maiores cargos de comando e chefias de cartório em geral. Que foi paulatina a mudança, vários concursos realizados até essa realidade se transformar: finalmente eram a maioria e uma mudança na lei fez com que as chefias de cartório e a grande maioria das funções na sede daquele TRE caíssem nas mãos dos concursados. Mas ainda não tinham tido o prazer de ter um diretor-geral do quadro dos funcionários.
Um dia, para alegria e orgulho de todos, o fato aconteceu: uma pessoa – João declinou de dizer o nome ou entrar em detalhes… – foi alçada ao cargo e todos esperavam que novos ares arejassem o Tribunal, com tudo aquilo que é desejado pelo corpo de servidores: tratamento equânime para colegas das zonas e sede, transparência absoluta nas transferências e remoções, rodízio nos cargos mais importantes para a não criação de vícios de trabalho e “cadeiras cativas”, republicanismo, justiça, humanidade nas decisões. Sem falar no óbvio: a confiança que todo líder deve demonstrar ter em relação aos seus comandados e a valorização dos mesmos – um Tribunal que não almejasse apenas a “eficiência”, mas a felicidade das pessoas – João fez um adendo triste nessa hora, pude ver em seus olhos e expressão corporal: tinha contato com amigos de outros Tribunais onde as pessoas trabalhavam felizes, num ambiente sadio, zonas e sede com valor idêntico aos olhos de todos e, na verdade, mais eficientes até, porque o ambiente saudável proporcionava um trabalho melhor desenvolvido.
Aos poucos, segundo o relato de João, os traços de um certo fanatismo da pessoa alçada à direção foram sendo plasmados nas suas falas e ações. A busca frenética do que ela considerava em suas estranhas visões a “missão” de cada servidor, e o que essa “missão” tinha que trazer de “eficiência” (lembro do sorriso amargo de João ao usar essas palavras…) em cada servidor, dominou aquele Tribunal, tornando-o de certa forma, torto, enfermo, monocórdico, e tirando aqueles que se locupletavam em cargos de altas comissões, em troca da mais canina lealdade à pessoa que se assenhorara do castelo, o restante das pessoas não eram felizes. Neuroses, tristezas, decepções, ausência de confiança na Instituição, o trabalhar por obrigação apenas, tomou conta da quase totalidade daquele Tribunal..
Naquele momento interrompi João (nossa conversa se deu pelo Zoom), estupefato e lhe perguntei porque os servidores em questão não se levantaram contra isso? A resposta de João, envergonhada foi: “medo! Como a maioria dos brasileiros, de nossa sociedade, de nossa História mesmo, a do país, somos acostumados a não reagir, não gritar, não nos articularmos para lutar contra um estado de coisas opressivo. Cada um foi arrumando seus mecanismos de defesa e sobrevivência, cada um foi “se virando” como podia, e na verdade, meio que deixávamos tudo nas costas do sindicato, que fazia o que podia nos casos mais graves de assédio, mas no fundo cabia a nós, cada um de nós reagir contra uma visão e um modo de administrar o Tribunal que só nos trouxe tristeza, mal estar e decepções…”
Ficamos em silêncio, apenas nos olhando, João e eu. Como amigos que somos, ele sabia que não estava sendo julgado, nem ele nem seus colegas. Éramos como duas pessoas buscando a verdade, quem a viveu contando sua versão ao amigo ouvinte. Falamos por mais uma hora. Ouvi estarrecido, da eleição de 2018, quando as zonas eleitorais daquele TRE foram deixadas à míngua, pouquíssimas horas extras, isso para zonas tornadas gigantes, quase desumanas após um rezoneamento para lá de duvidoso em relação à sua eficiência. O motivo? João me contou que uma parte considerável do dinheiro que poderia ter sido investido nas horas extras daquela eleição, foi usado no final daquele ano para pagamento de horas extras antigas de muitos servidores, inclusive da sede, alguns com uma bolada bem razoável a ser recebida… Nada de mais no sentido da legalidade do ato, quem trabalhou no passado merece receber!!! Mas às custas de quem se matou em uma eleição pesada em zonas gigantescas??? Achei inacreditável!
Por fim, rimos um pouco, João e eu, das histórias engraçadas que ele conseguiu pinçar no meio dessa realidade triste: o modo como riam a rodo dos fiéis amigos daquela pessoa senhora do castelo, os “soldados rasos”, do que chamavam jocosamente de “Likedin do TRE”. João me contou como era raro, raríssimo, secretários, coordenadores e chefes de seção, na sede, almoçarem com os servidores de baixa função ou sem função. Os grupos e panelas eram os mesmos há vinte anos! Fiquei impressionado com aquele fato bobo, mas que demonstra como um TRE pode se contaminar pelo sentimento/pensamento de “Casa Grande & Senzala”. Questionei meu amigo:
“João, isso não pode ser sério! Pessoas que conhecem os colegas há vinte anos, não têm o hábito de almoçarem com eles por não terem função? CJ só almoça com CJ ou com F6 no máximo, é isso mesmo?!?”
E João, rindo muito, confirmou.
“Sim, é assim no meu Tribunal! O “Likedin TRE” aqui é uma realidade antropológica que nunca mudou, com as raras e honrosas exceções. Como todos são agarrados a seus cargos de modo quase selvagem por causa de grana e poder, e todos têm um elo em comum que é a dependência total da pessoa que é a abelha rainha, penso que se sentem narcisicamente seguros uns com os outros… Acredite em mim, é apenas um dos aspectos não saudáveis do meu Tribunal….”
Nos despedimos, João e eu. Ele, esperançoso toda vida, pelas mudanças havidas em seu TRE. Acredita que nova mentalidade, nova visão, novos jeitos de administrar o TRE, republicanismo e justiça, possam florescer, finalmente!
Eu, secretamente, comemorando não saber o que padeceu o João nos últimos vinte anos….
*Eduardo Ramos é servidor da Segeim – TRE/RJ