Por Antônio Augusto de Queiroz (*)
Em debate recente sobre a reforma administrativa surgiu a dúvida a respeito de como ficaria a situação dos atuais servidores públicos, no aspecto específico da estabilidade, caso venha a ser aprovada a PEC 32/2020.Prometi que faria um artigo analisando o tema, para tranquilizar muitos servidores que assistiram ao referido debate.
Na ocasião argumentei que os atuais servidores, que são detentores de cargo efetivo, caso venha a ser aprovadaa PEC nos termos propostos originalmente, continuariam nessa condição, e, em consequência, seriam equiparados, para fins da estabilidade, aos novos servidores detentoresde cargo típico de Estado, aplicando-se a ambos todos os deveres, direitos e prerrogativas, inclusive quanto àestabilidade ou garantia de emprego.
Registre-se, desde logo, que estou me referindo apenas às regras sobre estabilidade aplicáveis, após a reforma, aos atuais servidores e aos futuros servidores que forem classificados como detentores de cargo típico de estado. Não estou analisando a situação dos futuros servidores permanentes que forem contratados sob outra modalidade – que não de cargo típico de estado – porque esses servidores não terão estabilidade nem os mesmos direitos dos contratados pelo CLT. Será um servidor de segunda categoria.
Este pequeno texto, conforme prometido, destina-se a apresentar meu ponto de vista à luz do texto da PEC 32, mediante a descrição e interpretação do artigo 2º da referida PEC, que trata das regras de transição aplicáveis aos atuais servidores efetivos após a aprovação e vigência da mudança constitucional em questão.
O art. 2º da PEC 32/2020, que trata das regras de transição, diz textualmente:
“Art. 2º Ao servidor público investido em cargo efetivo até a data de entrada em vigor do regime jurídico de que trata o art. 39-A da Constituição é garantido regime jurídico específico, assegurados:
I – a estabilidade, após três anos de efetivo exercício e aprovação em estágio probatório;
II – a não aplicação do disposto no art. 37, caput, inciso XXIII, alíneas “a” a “j”, da Constituição na hipótese de haver lei específica vigente em 1º de setembro de 2020 que tenha concedido os benefícios ali referidos, exceto se houver alteração ou revogação da referida lei; e
III – os demais direitos previstos na Constituição.
§ 1º A avaliação de desempenho do servidor por comissão instituída para essa finalidade é obrigatória e constitui condição para a aquisição da estabilidade.
§ 2º O servidor a que se refere o caput, após adquirir a estabilidade, só perderá o cargo nas hipóteses previstas no art. 41, § 1º, incisos I a III, e no art. 169, § 4º, da Constituição.
Como se pode depreender da leitura do caput do art. 2º, o servidor investido de cargo efetivo até a data de entrada em vigor das novas regras constitucionaisprevistas na PEC 32, terá a garantia do regime jurídicoespecífico, ou seja, o do cargo efetivo, que assegura a todos os atuais servidores as seguintes garantias:1) a estabilidade, após três anos efetivo exercício e aprovação em estágio probatório;2) a não aplicação das alíneas “a” a “j” do inciso XXIII do art. 37, desde que as leis específicas que instituíram tais direitos estivessem em vigor em 1º de setembro de 2020. Os referidos dispositivos dizem textualmente:
XXIII – é vedada a concessão a qualquer servidor ou empregado da administração pública direta ou de autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista de: a) férias em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano; b) adicionais referentes a tempo de serviço, independentemente da denominação adotada; c) aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos; d) licença-prêmio, licença-assiduidadeou outra licença decorrente de tempo de serviço, independentemente da denominação adotada, ressalvada, dentro dos limites da lei, licença para fins de capacitação; e) redução de jornada sem a correspondente redução de remuneração, exceto se decorrente de limitação de saúde, conforme previsto em lei; f) aposentadoria compulsória como modalidade de punição; g) adicional ou indenização por substituição, independentemente da denominação adotada, ressalvadas a efetiva substituição de cargo em comissão, função de confiança e cargo de liderança e assessoramento; h) progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço; i) parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e valores em lei, exceto para os empregados de empresas estatais, ou sem a caracterização de despesa diretamente decorrente do desempenho de atividade; e j) a incorporação, total ou parcial, da remuneração de cargo em comissão, função de confiança ou cargo de liderança e assessoramento ao cargo efetivo ou emprego permanente”.
É claro que o Poder Legislativo, por iniciativa do Poder Executivo, poderá revogar ou alterar as leis que instituíram as garantias asseguradas aos atuais servidores,e isto poderia acontecer com ou sem reforma administrativa, de modo que não se pode atribuir a eventual revogação ou mudança nos critérios de concessão desses direitos à reforma prevista na PEC 32.
A única diferenciação, que já está prevista no atual art. 247, diz respeito à substituição do conceito de “atividades exclusivas de Estado” por “cargo típico de Estado”, para os fins de desligamento de servidor estável por insuficiência de desempenho ou excesso de despesas. Assim, a lei que regulamentar essas espécies de desligamento – não mais lei complementar, como atualmente prevista no caso do art. 41, III – deverá assegurar aos titulares de “cargos típicos de Estado”, proteção especial contra a perda do cargo, ou seja, garantias procedimentais, como recursos hierárquicos, ou um critério mais rigoroso de aferição de desempenho, como maior número de avaliações insuficientes, ou algum tipo de condição para aferição de desempenho insuficiente que somente se aplique a esses servidores, de modo a lhe conferir “garantias especiais”, como requer o art. 247, que, quanto a isso, será mantido. A Lei 9.801, de 1999, já estabelece que, o servidor que exerça atividade exclusiva de estado, a demissão só ocorrerá, em caso de excesso de despesa, quando a exoneração de servidores dos demais cargos do órgão ou da unidade administrativa objeto da redução de pessoal tenha alcançado, pelo menos, trinta por cento do total desses cargos, e cada ato reduzirá em no máximo trinta por cento o número de servidores que desenvolvam essas atividades.3) os demais direitos previstos na Constituição
O parágrafo 1º do art. 2º da PEC 32 estabelece a avaliação de desempenho, feita por comissão, para a aquisição da estabilidade do servidor, tanto dos atuais quanto daqueles que forem contratados como titular de cargo típico de estado, e o § 2º estabelece que o atual servidor, “após adquirir a estabilidade, só perderá o cargo nas hipóteses previstas no art. 41, § 1º, incisos I a III, e no art. 169, § 4º, da Constituição”. A tabela a seguir ilustra as diferenças entre a Constituição e PEC em elação à estabilidade dos atuais servidores:
Demissão de servidor na CF e na PEC 32/2020
Constituição Federal – art. 41, incisos I, II e III e art. 169 $ 4º | PEC 32/2020 – Redação proposta |
I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado (inciso I, § 1° do art. 41 da CF) | I – em razão de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado (redação proposta para o inciso I do $ 1º do art. 41 da CF); |
II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa (inciso II, § 1° do art. 41 da CF); | Igual |
III – mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa. (inciso III, § 1° do art. 41 da CF); | III – mediante avaliação periódica de desempenho, na forma de lei, assegurada a ampla defesa. (redação proposta para o inciso III do $ 1º do art. 41 da CF); |
IV – quando excedidos os limites de despesa com pessoal prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal e depois da redução de pelo menos 20% dos cargos em comissão e funções de confiança e exoneração dos servidores não-estáveis. (art. 167, § 4º da CF) | Igual |
Já o art. 169, que a PEC 32 não altera, prevê a demissão do servidor estável no caso de necessidade de cumprimento do limite de despesas com pessoal fixado na Lei Complementar 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal. Segundo o § 3º do art. 169, para o cumprimento desses limites, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:
I – redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança;
II – exoneração dos servidores não estáveis.
O § 4º do art. 169 prevê que “se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal.
Trata-se, portanto, de regra geral, que afetará tanto os atuais, quanto futuros servidores, estáveis ou não.
No caso do art. 41 nenhuma das hipóteses supra referidas é novidade constitucional. Todas já estão previstas na Constituição atual, ainda que com pequenos detalhes de redação. As diferenças, que se aplicarão integralmente aos atuais servidores e aos futuros servidores detentores de cargo típico de estado, sãobasicamente duas: a primeira é o acréscimo da decisão judicial colegiada para efeito de dispensa e a segunda é a remissão para lei ordinária a regulamentação da avaliação de desempenho, enquanto na Constituição a previsão é de lei complementar.
A previsão de avaliação de desempenho para efeito de dispensa dos atuais servidores estáveis e detentores de cargo efetivo já havia sido incluída na Constituição pela Emenda Constitucional nº 19/1998, por meio do já citado art. 247 da Constituição, que prevê, nos termos do inciso III, do parágrafo 1º do art. 41 da Constituição, a demissão de servidor estável “mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa”. É tanto que os Projetos de Lei Complementar nº 248/1998 e o PLS-Complementar 116/2017, respectivamente de autoria do Poder Executivo e da senadora Maria do Carmo (DEM/SE), foram apresentados para regulamentar a matéria.
Assim, os atuais servidores terão assegurada a sua estabilidade, e, se titulares de cargos típicos de estado, algumas regras de proteção adicional. Mas a natureza da garantia dos atuais servidores e futuros servidores de cargos típicos de Estado será idêntica, ou seja, qualquer que seja a atividade exercida, o servidor não poderá ser desligado arbitrariamente, como punição aplicada de forma genérica, ou por motivo de conveniência administrativa, ou em decorrência da extinção de órgãos ou planos de cargos, ou de sua reorganização.
A reforma administrativa, como tive oportunidade de registrar em debates e artigos anteriores, não visa a melhoria da gestão, da meritocracia, da qualidade do serviço público ou a valorização dos servidores. Pelo contrário, ela se destina a retirar proteções e garantias dos futuros servidores, fragilizar a Administração Pública,precarizar as relações de trabalho e desvalorizar os servidores atuais e futuros, com a retirada de direitos,objetivando transferir a prestação dos serviços públicos para a iniciativa privada, para que seja explorada em bases lucrativas. Porém, em minha avaliação, e com todo o respeito a quem pense diferente, não se pode, por discordar do conjunto da reforma, passar para os atuais servidores avaliações equivocadas de que não terão as garantias que a PEC assegura aos futuros detentores de cargo típico de estado, sob pena de distorcer o debate esclarecido e correto sobre o tema.
Em conclusão, posso afirmar que todos atuais servidores detentores de cargo efetivo, independentemente da atividade que exerçam ou do local de lotação, serão submetidos aos mesmos critérios que forem adotados para efeito de demissão/dispensa dos futuros titulares de cargo típico de estado. Reconhecer isto não significa concordar com a reforma, muito menos com o tratamento que ela reserva para os futuros servidores, independentemente da modalidade de contratação.
*Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGV, diretor de Documentação licenciado do Diap, e Sócio-Diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governo