Antônio Augusto de Queiroz*
Desde sua posse, o governo Bolsonaro, apesar de ter assumido sem reservas a agenda de mercado para as áreas previdenciária, sindical e trabalhista, foi pouco efetivo na relação com o Congresso e só logrou transformar em norma jurídica com reflexos duradouros sobre os trabalhadores a reforma da previdência (PEC 6/19) e a lei da liberdade econômica (MP 881/19), enquanto que o governo Michel Temer, em período idêntico, foi muito mais efetivo nas áreas trabalhista e sindical, tendo incorporado ao ordenamento jurídico a lei de terceirização generalizada e a reforma trabalhista, além de também ter avançado no desmonte do Estado, com a Emenda Constitucional nº 95, que congelou o gasto público e impediu novas despesas com políticas públicas. E, embora não tenha aprovado a sua proposta de reforma da previdência encaminhada ao Congresso ao final de 2016, adiantou o debate e facilitou a aprovação da PEC 6, em 2019. O que houve, afinal, se a correlação de forças para o movimento sindical agora é pior do que no governo anterior?
Qual a explicação para esse desempenho baixo na visão do mercado, se o governo atual, recém legitimado pelas urnas, veio mais forte, possui uma agenda mais agressiva, os parlamentares são até mais favoráveis às reformas trabalhistas, sindicais e previdenciárias, e o movimento sindical está mais fragilizado política e financeiramente do que durante o governo anterior?
Antes de explicar os motivos, é preciso lembrar a ofensiva do governo Bolsonaro na tentativa do desmonte do Estado, via as Propostas de Emenda à Constituição – PEC nº 186 e 188, ambas de 2019, dos direitos previdenciários, por meio da PEC 6/19, da reforma da previdência, e dos direitos sindicais e trabalhistas, por intermédio de pelo menos cinco medidas provisórias.
Das três PECs – nºs 6/2019 (reforma da previdência) e 186/2019 (PEC emergencial) e 188/2019 (PEC do pacto federativo – apenas a primeira, que tratou da reforma da Previdência foi aprovada e promulgada como Emenda à Constituição nº 103, e mesmo assim com modificações relevantes. As outras duas, cuja tramitação teve início no Senado Federal, não evoluíram como esperava o governo, e continuam aguardando deliberação naquela Casa do Congresso. O atraso na deliberação pode ser atribuído, em primeiro lugar, à resistência dos servidores, e, em segundo, ao início da Pandemia do coronavirus, que suspendeu os trabalhos presenciais no Congresso.
Em relação à reforma da previdência, cuja votação só foi possível pelo empenho pessoal do presidente da Câmara dos Deputados, houve pelo menos dez modificações na proposta original, de um lado, com a retirada ou supressão de partes do texto, e, de outro, com a suavização de seus efeitos mais perversos. No primeiro grupo, podemos mencionar: 1) o regime de capitalização; 2) o aumento automático da idade mínima; 3) as novas regras do BPC-Benefício de Prestação Continuada; 4) o fim do abono salarial; 5) a desconstitucionalização do reajuste automático dos benefícios; e 6) o fim da indenização trabalhista do empregado de estatal que se aposentasse. No segundo grupo: 1) a redução da idade mínima; 2) a inclusão de regras de transição; 3) aposentadoria rural; e 4) restabelecimento da carência de 15 anos para a mulher no INSS, entre outros.
Quanto às medidas provisórias, cujo objetivo era retirar ou reduzir direitos sindicais e trabalhistas, todas perderam a eficácia após os 120 dias de vigência, sem que o Congresso Nacional as deliberasse. Foram elas, as MPs: 873/19, que pretendia eliminar o desconto em folha da mensalidade sindical; 905/19, destinada a instituir o Contrato Verde e Amarelo para jovens, com redução drásticas de direitos trabalhistas e previdenciários; 922/20, que ampliava as contratações temporárias no serviço público, sem necessidade de concurso público; e a 927/20, que autorizava o empregador a praticar o trabalho remoto, antecipando férias e alterando outros direitos trabalhistas durante a pandemia por meio de acordos individuais.
Registre-se, ainda, que a oposição no Senado, com destaque para a atuação do senador Paim e do líder do PT, senador Rogério Carvalho (SE), barrou as duas medidas provisórias mais duras contra os trabalhadores – no caso as MPs 905 e 927 – além da retirada da MP 936, transformada na Lei nº 14.020/2020, de todas as matérias trabalhistas permanentes que não tratavam do “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda” ou que não estavam diretamente relacionadas ao combate à Covid-19 e, portanto, eram uma espécie de contrabando.
Voltemos à indagação inicial. Mas quais foram as razões disto? As causas ou os motivos da pouca efetividade do governo Bolsonaro são muitos, algumas decorrentes dos erros governamentais na relação com o Congresso, outro resultantes da reação do Centrão à hostilização a que foi exposto pelos apoiadores de Bolsonaro, e por último pela tática empregada pela Oposição, que soube tirar proveito dos erros do governo na condução de sua agenda.
No primeiro caso, o fracasso tem duas dimensões. A primeira foi erro de o governo ter optado pela relação direta com sua base social, ignorando a mediação da mídia e dos representantes do Povo no Parlamento. A segunda foi ter hostilizado o Centrão, um potencial aliado, acusando-o de fisiológico e de fazer a “velha política”, o que provocou reação desse grupamento. Para fugir da acusação, o Centrão precisou criar um álibi e o fez apresentando-se como independente, divergindo de diversos pontos da reforma da previdência, como forma de provar sua autonomia em relação ao governo e, ao mesmo tempo, mostrar o seu “peso” nas decisões do Legislativo.
No segundo caso foram os acertos da oposição e dos movimentos sociais, que tiveram três movimentos táticos: a) reunir argumentos demonstrando a inconveniência, o exagero e até a perversidade das proposições governamentais; b) articular alianças com o presidente da Câmara e com o Centrão, que vinha sendo hostilizado pelo governo; e c) em nome do objetivo final, abrir mão do protagonismo na condução das derrotas governamentais, permitindo que as forças de centro liderassem as negociações.
As táticas empregadas pela oposição e pelos movimentos sociais, especialmente a última – que terceirizou o protagonismo na condução das negociações como forma de evitar o efeito reverso ou o revanchismo governamental – também serviram para arrancar vitórias importantes, como foram os casos da PEC do Orçamento de Guerra, flexibilizando restrições fiscais para o enfrentamento da pandemia, e a Lei Complementar 173, que permitiu liberar recursos para salvar vidas, empregos, empresas e entes subnacionais, e a criação do auxílio emergencial, para assegurar a ajuda humanitária de R$ 600,00 durante cinco meses, sem a qual milhões de brasileiros vulneráveis teriam morrido de fome nesse período de pandemia.
Entretanto, com o ingresso do Centrão na base do Governo, de um lado, e, a perspectiva de perda de poder do presidente da Câmara, em face da proximidade do encerramento de seu mandato, de outro, tende a inviabilizar o emprego dessas táticas pela oposição. Além disto, é urgente definir novas estratégias por parte da oposição para continuar evitando o desmonte, tanto de direitos trabalhistas e sindicais, quando do próprio Estado brasileiro, afinal o período pós-pandemia o País não contará mais com um orçamento de guerra (sem limites) e o governo irá apresentar a conta, exigindo ajustes em nome da geração de empregos e do equilíbrio das contas públicas.
Frente ao cenário que se anuncia, no qual o governo promete alterar a Constituição para retomar a capitalização na previdência, reduzir o papel do Estado no atendimento às necessidades da população e pôr fim ao direito do trabalho, a alternativa é mobilizar o povo nas ruas, com dados e informações sobre os efeitos perversos da agenda liberal e fiscal do Governo, afinal, o período de isolamento social, deve ter servido pelo menos para mostrar que sem o Estado a população fica entregue à própria sorte. Com agenda propositiva, informações qualificadas sobre os interesses das propostas governamentais, e muita disposição para o diálogo e o convencimento da população estarão dadas as ferramentas e caminhos para evitar retrocessos e criar as condições para fortalecer a democracia, retomar o crescimento econômico, gerar emprego e renda e proteger os vulneráveis. E, como registrou o jornalista Ascâno Seleme, ex-diretor de redação d’O Globo, em artigo publicado em 11.07.2020, já é tempo de superar a divisão e os “guetos” na esquerda, e reunificar as suas forças em prol do Brasil e da democracia com paz e prosperidade.
(*) Jornalista, analista e consultor político, diretor licenciado do DIAP, mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGB-DF, e sócio das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.