Texto lírico
A DESPEDIDA
Marlene de Lima (*)
Aguardou na varanda que Francisco se preparasse. Ele não assoviou
fazendo a
barba nem peregrinou pelo apartamento, nu ou de cueca,à procura dos
cigarros. Raquel
percebeu que estava tenso, sem o irritante sorriso de "eu te amo e
Deus é pai" com que
costumava dar por encerradas as brigas. Começava a achar que valera a
pena tanto
estresse. O marido, que se apegava com unhas e dentes àqueles vinte e
cinco anos (e
seis meses: tempo de sobra para os amigos esquecerem a festa de bodas
de prata), se
convencera de que o melhor mesmo era a separação.
Uma valise aguardava na soleira da porta. Pelo tamanho, ninguém diria
o tempo
que viveram juntos. A mala grande com rodízios e as caixas para papéis
e documentos,
porém, tinham sido recusadas. Ela antegozava os telefonemas
intermináveis para Glorinha
e Vivi contando os lances e o desfecho. O uisquinho e o balde de gelo
já estavam a
postos.
Pensando bem, que lances e que desfecho? O momento pedia drama e, por
isso, bem
que gostaria de chorar. Sabia, de ouvir dizer e das novelas, o quanto
podiam ser
sofridas as separações. Mas não sentia nada, como se estivesse no
velório do defunto
alheio. Nem mesmo quando ele derramou aquele olhar por toda a sala e
saiu fechando a
porta com delicadeza, o coração dela baqueou. Até porque aquilo não era
jeito de se
abandonar um casamento considerado feliz. Seria melhor – para o bem de
Raquel – que a
despedida fosse tempestuosa, deixando no ar um meio clima de
desacato, acendendo
iras, exigindo revanche, portas batidas, jarras quebradas. Queria que
a separação
desse pano para mangas. Assim, parecia mais ter expulsado o cão que fez
xixi no tapete.
Droga, sua vida era mesmo sem emoção. No divórcio do casal do lado
saiu até tiro; mas
era esperar muito de um cara devagar igual ao Francisco.
Pronto, chega de sacrifício. Enfim, tomou-se uma atitude. De qualquer
maneira,
se livrara da vida insossa, da solidão acompanhada. Para aquele final,
se valera de
vários recursos condenáveis: dos decotes por onde quase saltavam os
novos peitos às
cruzadas de pernas à Sharon Stone, nas reuniõezinhas em que ele e um
grupo de colegas
da Bolsa falavam de investimentos, PIB, alta do dólar. Mas o que
garantiu mesmo o
desenlace foi o bolero sinuoso pernas por dentro do negrão de terno
branco na
Estudantina.
Ainda na mesma noite – a do "besa-me mucho" -, Francisco declarou que
abandonaria a casa, e a mulher não pensasse que bastava um gesto e
voltaria abanando o
rabo. Não era palhaço. Arranjasse outro disposto a aturar seu
comportamento vil, "sua
inconseqüente" (não falou "escrachada" como ensaiara e ela adoraria).
Depois da saída do marido (aliás, do "falecido", pois assim pretendia
chamá-lo
nas rodas de chope com o pessoal da repartição), Raquel preparou o
uísque, pôs um CD de
Júlio Iglesias e, no tapete, recostada junto à mesinha da sala, se
entregou aos
projetos da liberdade novinha em folha.
Passados trinta minutos, a recém-separada pensou ouvir o barulho do
elevador
chegando. Baixou o som e apurou os ouvidos. Não. Devia ser para o
vizinho. Passos
candenciados no corredor – uma passada larga seguida de um arrastar de
salto no chão
(dois anos atrás, ele fraturara o calcanhar esquerdo numa freada
acidental) – e, ao
fundo, a tossezinha da nicotina destruíram, porém, qualquer fiapo de
dúvida
Percebeu, incrédula, a chave girar na fechadura. Francisco entrou.
Pousou
suavemente a maleta no sofá. Ameaçou com voz de barítono:
"Desta vez passa, mulher. Mas da próxima…"
O peso dos 25 anos se adensou no silêncio dela.
Ato contínuo, ele foi à geladeira, pegou uma cerveja e, com ar de
dono, se
aboletou na cadeira-do-papai em frente à televisão.
Ela desligou o som e jogou a bebida no vaso da planta.