Recentemente, publiquei artigo em que abordei a inconstitucionalidade da exclusão das regras de transição das Emendas Constitucionais que estão em vigor, para milhares de servidores públicos, pela Reforma da Previdência buscada pelo Governo que atualmente comanda o nosso Poder Executivo. Tratei da inconstitucionalidade do art. 24 da PEC 287/2016 (que já foi reapresentada, tendo o teor do art. 24 sido trasladado para o art. 23 da PEC).
Era apenas uma breve incursão sobre a Reforma. Há outros pontos a serem abordados, aos quais pretendo dar continuidade. Desta vez, vou ao RGPS.
Não é só a segurança jurídica e as expectativas legítimas de diversos servidores que serão afetadas – como abordado naquele texto, mas principalmente as de milhões de trabalhadores celetistas, mais numerosos que os funcionários do Estado.
Atualmente, o trabalhador possui basicamente quatro espécies de aposentadoria (por tempo de contribuição, por idade, por invalidez e especial). O cidadão, via de regra, se aposenta com 35/30 anos de contribuição (h/m), sem que haja uma idade mínima. Não alcançando esse tempo de contribuição, pode se aposentar por idade, com 65/60 anos (h/m). Ainda, pode se aposentar com alguma incapacidade laboral permanente ou com uma contagem de tempo qualificada, caso seja pessoa com deficiência ou trabalhe em condições especiais que prejudiquem sua saúde ou sua integridade física.
A proposta de Reforma da Previdência almeja mexer em tudo isso, radicalmente.
Primeiro, acaba com a aposentadoria por tempo de contribuição e fixa apenas a aposentadoria por idade, que deverá ser no mínimo de 65 anos, para ambos os sexos, exigindo-se também um tempo mínimo de contribuição de 25 anos. Se o trabalhador detiver esses 25 anos, terá direito a 76% do valor da média de suas contribuições, como valor inicial de sua aposentadoria. Se quiser se aposentar integralmente, terá que possuir 49 anos de contribuição, além da idade mínima.
Segundo, a Reforma constitucionaliza um tema que era definido em lei ordinária, que é o valor da RMI da aposentadoria por invalidez. Tal valor, calculado no art. 29 da Lei 8.213/91, é de 100% da média dos salários de contribuição em qualquer hipótese. Isso acaba e a aposentadoria por invalidez será de 100% apenas quando se tratar de incapacidade permanente decorrente exclusivamente de acidente do trabalho, conforme o §7°-C do art. 201, a ser inserido no texto da CF.
Terceiro, a Reforma mantém o direito à aposentadoria especial, mas passa a expressamente entendê-la como uma espécie de aposentadoria por idade especial, na qual se exigirá no mínimo 55 anos de idade e 20 anos de contribuição, exigindo, ainda, que o cidadão comprove o efetivo prejuízo à sua saúde, em relação às condições especiais de sua atividade laboral.
E, quarto, estabelece como única medida para permitir o direito à transição do atual ao pretendido regime por regras mais suaves, o mesmo parâmetro equivocadamente arbitrário do art. 24 da PEC: a idade de 50/45 anos (h/m), que permitirá a possibilidade de um pedágio de 50% do tempo de contribuição que faltar, conforme se percebe no art. 7° da PEC. Não possuindo tal idade de corte, não haverá qualquer regra de transição.
Vamos a fatos e hipóteses bastante factíveis, a respeito das mudanças pretendidas pelo Governo, nas diversas aposentadorias ora existentes.
Imagine, por exemplo, o caso de uma trabalhadora com 44 anos de idade (na data da promulgação da Emenda) e 26 anos de contribuição, e que tinha em seu patrimônio jurídico a expectativa de se aposentar aos 48 anos de idade. Agora, terá que trabalhar no mínimo mais 21 anos de idade, até completar os 65 anos de idade. Já, se esta cidadã tiver uma irmã com 45 anos de idade e os mesmos 26 anos de contribuição, será possível se aposentar com o tempo faltante e um pedágio de 50% desse tempo (ou seja, mais seis anos).
Assim, a irmã que é um ano mais velha se aposentaria aos 51 anos de idade, enquanto a irmã um ano mais jovem teria que trabalhar até os 65 anos de idade! Isso é justo, é isonômico, é razoável? Parece-nos que a ausência de regras de transição para trabalhadores com idade inferior ao corte efetuado pelo Governo pode ser tudo, menos constitucional. Mais adequado seria fazer uma tabela progressiva, como o legislador ordinário muito corretamente já abordou, na regra de transição do art. 142 da Lei 8.213, de 1991, que tratava da gradativa mudança dos prazos de carência para a concessão de benefícios como a aposentadoria por idade. Somente assim seria respeitada a igualdade real entre os segurados do RGPS e se permitiria o respeito ao planejamento previdenciário dos cidadãos.
É explícita, portanto, a inconstitucionalidade da Reforma, ao não prever regra de transição alguma para quem não tenha atingido a idade de corte utilizada pelo proponente. Como dissemos no texto de 07/01/17, o parâmetro etário é inadequado para regra de transição, sendo muito mais adequado e proporcionalmente isonômico, estabelecer uma regra de transição em que seja cobrado um pedágio contributivo proporcional ao tempo de contribuição que o trabalhador, filiado ao RGPS até a data da promulgação da futura Emenda, já detém.
Outro exemplo bem pragmático. Atualmente, a aposentadoria especial é concedida após 25 anos de atividade prestada em condições especiais que afetam a saúde e a integridade física, sem qualquer requisito etário. Agora, imagine-se como um trabalhador de 44 anos de idade, e que exerce suas atividades em ambiente de altas temperaturas, como os fornos de uma usina metalúrgica, há 24 anos (na data da promulgação da Emenda). Falta apenas um ano para que você se aposente. Com a Reforma da Previdência, passarão a faltar 11 anos e o trabalhador terá que comprovar que sua saúde foi efetivamente afetada pelo trabalho em condições especiais por todo o longo período de 35 anos! E não haverá qualquer regra de transição. Isso é justo, é isonômico, é razoável?
Mais exemplo: uma jovem senhora, costureira exímia com 40 anos de idade e 15 anos regulares de recolhimento de suas contribuições individuais, está dirigindo seu carro para ir ao supermercado e, por uma fatalidade, sofre um acidente grave que culmina na amputação da mão que lhe enseja a vocação para seu ofício e lhe impede permanentemente de exercer as atividades profissionais que habitualmente exercia. Se este acidente (que se insere no conceito de acidente de qualquer natureza) ocorrer atualmente, a jovem senhora ainda se aposenta por invalidez com 100% da média de seus salários de contribuição, o que se justifica perante tamanha imprevisibilidade. Se ocorrer um dia após a data da promulgação da Emenda pretendida pelo Governo, esta jovem senhora terá direito a uma aposentadoria por invalidez de 66% apenas, considerando-se o texto dos §§7°-B e 7°-C do art. 201, a serem inseridos no texto da CF. Apenas em caso de acidente do trabalho (para o qual ainda será possível ação regressiva contra o empregador), é que a Previdência Social pagará 100% da aposentadoria por invalidez.
Não é só isso. Aposentadoria por invalidez decorrente de doença incapacitante deferida ao cidadão pintor que descobre, 4 anos depois de começar a vida laborativa, que possui um agressivo tumor maligno no estômago, cujo tratamento demandará tempo, recursos e afastamento prolongado do trabalho. Pelas regras atuais receberia 100% da média de seus salários de contribuição e sequer lhe seria exigida carência; pela regra da Reforma, receberia apenas 55%.
Aliás, aqui nota-se uma grave lacuna na Reforma da Previdência: por que somente o texto da Constituição a ser reformado foi apresentado? A Previdência Social está estruturada não apenas na Constituição, mas essencialmente em leis complementares e ordinárias, como a LC 142/2013 e as leis 8.212/91 e 8.213/91, por exemplo. A resposta a esta lacuna é relevante, pois não se vislumbra qual será o tratamento do auxílio-doença, por exemplo.
Ora, imagine-se, no hipotético caso supracitado do pintor, se, em vez da aposentadoria por invalidez, fosse concedido auxílio-doença, por se entender que o tumor não seria tão agressivo e a incapacidade seria temporária. Qual seria a RMI de seu benefício? 91% de uma hipotética aposentadoria por invalidez (o que representaria 50% da média de suas contribuições)? Ou algo ainda pior, como 80% do valor de uma hipotética aposentadoria? Isto, obviamente, não está claro.
Fato é que o proponente, no processo legislativo, não foi leal com a sociedade civil ao não apresentar os textos de uma pretendida reforma das leis que regulamentam a Constituição Federal, e isso também traz intensa insegurança jurídica ao cidadão. Como garantir que não haverá um agravamento para a obtenção de benefícios, com medidas como, por exemplo, a revogação do art. 3° da Lei 10.666/2003, a diminuição dos períodos de graça do art. 15 da Lei 8.213/91 ou o aumento dos prazos de carência para os benefícios em geral (art. 25 da Lei de Benefícios)?
Nesse aspecto, importa ressaltar conduta governativa extremamente impactante no cenário previdenciário e que é outro exemplo de deslealdade no processo legislativo. Trata-se da revogação do parágrafo único do art. 24 da Lei 8.213/91, que estabelecia medida benéfica ao segurado do RGPS, quanto ao cômputo de contribuições anteriores à perda da qualidade de segurado para fins de carência, e que foi surpreendentemente revogada pela Medida Provisória 739/2016. Ocorre que não havia comprovação de urgência da matéria, de modo que o Governo não conseguiu maioria parlamentar para converter a MP em lei e a Medida caducou em 04/11/2016.
Pelas regras do correto processo legislativo, não havendo urgência, a matéria teria que ser aventada em projeto de lei. Mas, o que fez o Governo, mesmo proponente da Reforma da Previdência? Editou nova MP, de n. 767, em 06/01/2017! Quando será possível haver um tratamento leal com o trabalhador do RGPS? Que urgência é essa? Que falta de planejamento é essa?
Na verdade, um bom começo de Reforma da Previdência está na necessidade de alteração do art. 62, §1°, I, b, da CF, para se inserir o direito previdenciário como matéria sobre a qual deveria ser vedada a edição de medida provisória. Não há Estado de Bem-Estar Social sem a proteção de direitos e garantias previdenciários mínimos. Sabemos que a Previdência Social só existe porque a sociedade moderna é claramente repleta de situações de vulnerabilidade, que demandam proteção e atuação do Estado. Estão lá no art. 201 da CF, listados aos pormenores, os riscos sociais que devem ser evitados ou ter seus efeitos negativos minorados. São medidas nucleares de qualquer Estado de Direito, que devem ser debatidas por todos os Poderes, e não impostas por uma MP.
Ainda, a Proposta não traz, nem ao menos em sua Exposição de Motivos, os motivos pelos quais está desprezando reformas legislativas recentes na Previdência Social. Recentemente, por exemplo, a Lei 13.183/2015 trouxe importante inovação para o direito previdenciário, prevendo que o cidadão pudesse se aposentar pela conhecida regra 95/85, sem a aplicação do fator previdenciário. Houve, ainda, uma progressividade que majoraria essa tabela para 100/90, até 2026, como se nota no art. 29-C da Lei 8.213/91, inserido pela Lei 13.183. Por esse sistema, o cidadão se aposenta por tempo de contribuição, integralmente, sem a consideração do fator previdenciário, se somar 95/85 pontos (H/M), de acordo com a soma de sua idade e de seu tempo de contribuição (respeitado o tempo mínimo de 35/30 anos).
Ora, sabe-se que o fator previdenciário só existe para tentar desestimular aposentadorias precoces. Como pode vir o Governo, agora, menos de dois anos após a implementação desse sistema da Lei 13.183/2015, extinguir a aposentadoria por tempo de contribuição e pôr no seu lugar apenas a aposentadoria por idade, sem qualquer apresentação de dados atuariais que confirmem que a sistemática do art. 29-C da Lei 8.213/91 não serviu para evitar as aposentadorias precoces? Note-se que o Governo sequer previu a possibilidade de requisitos etários distintos para a aposentadoria, conforme a faixa salarial de suas contribuições, medida que se justifica no fato de que a expectativa de sobrevida varia consideravelmente de acordo com o nível salarial do cidadão.
Em nosso sentir, para uma interessante Reforma da Previdência que evitasse aposentadorias precoces, bastaria utilizar única e simplesmente a regra do sistema 95/85 para a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição, com algum aperfeiçoamento planejado da tabela progressiva dos pontos, para o futuro, extinguindo-se o fator previdenciário definitivamente, pois este desestimula, mas não impede a precoce aposentadoria. Muito ao contrário do pretendido pelo Governo, o que se percebe no atual momento é uma corrida aos postos do INSS para solicitar aposentadorias financeiramente ruins, submetidas à regra do fator previdenciário, por quem poderia aguardar o momento em que reuniria os pontos do sistema 95/85.
Não é demais lembrar que a Previdência Social, no Brasil, sempre foi tratada pelo Poder Executivo ou de modo independente, ou parcialmente atrelada ao Ministério do Trabalho. Porém, desde a assunção ao poder do novo governo federal, a Previdência Social foi transformada em mera Secretaria do Ministério da Fazenda, como se percebe da MP 726, de 12/05/2016, convertida na Lei 13.341, de 29/09/2016. Isto denota que a Reforma da Previdência, apresentada em 05/12/2016, na forma da PEC em debate, configura em sobreposição simplista da análise econômica em detrimento dos aspectos sociológicos que justificam a necessidade da Previdência. Contudo, cabe a indagação: terá sido esse o pacto constitucional firmado desde 1988, quando tratou da seguridade social, nos arts. 194 a 204 da CF? Que legitimidade tem o atual governo para uma guinada deste porte, a respeito da Previdência Social?
Enfim, assim como dissemos no nosso primeiro texto, observa-se que a PEC também é inconstitucional ao não prever regras de transição proporcionais e isonômicas para os trabalhadores do RGPS, bem como ao agredir suas expectativas legítimas de aposentação conforme as regras em vigor. A enorme dificuldade que está sendo criada para se obter aposentadorias de quaisquer espécies fará com que as pessoas sequer se preocupem em ingressar e participar regularmente do RGPS, estimulando, por outro lado, a previdência privada, cuja liquidez patrimonial nunca é adequada ao risco de falência, e nas quais, histórica e ordinariamente, só participam pessoas de classe média ou alta e com alguma poupança. O resultado, se as impactantes mudanças almejadas pela PEC 287 forem aprovadas, é vivermos em uma sociedade que abandonará seus concidadãos, outrora protegidos, quando diante de vulnerabilidades, criando abismos sociais e aumentando a pobreza e a desigualdade de renda.
É isso que queremos?
O debate continua. Voltarei à Reforma em breve.
Fonte: Consultor Jurídico – Por Victor Roberto Corrêa de Souza