Por Mara Weber (coordenadora geral da Fenajufe) e Sérgio Amorim (diretor de base do Sintrajufe/RS)
A proposta, exigência de curso superior para a investidura no cargo de Técnico Judiciário, apesar de já vencida em algumas proposições plenárias e congressuais da categoria, traz em seu bojo uma vontade e uma necessidade de valorização desse cargo de nível médio e dos servidores que exercem suas atividades. Também reflete a “confusão de atribuições” existente entre o cargo de Técnico e Analista Judiciário, que se agravou e se agravará ainda mais com a implementação do processo eletrônico e a processo de trabalho organizado por “carteiras”, como propõe o CNJ.
Ocorre que, a desvalorização sentida pelos técnicos judiciários, a “confusão de atribuições” e a falta de perspectiva de crescimento na carreira, não provém desse contexto meramente formal. Está relacionada na necessidade de um conjunto de mecanismos que deveriam ter a capacidade de valorizar a carreira, a história, o acúmulo, a capacitação e a trajetória do servidor dentro de seu cargo, bem como proporcionar-lhe condições transparentes e criteriosas de crescimento por mérito na carreira judiciária. Analisemos alguns argumentos da proposta original para, depois, traçar expectativas que, de fato, tenham a capacidade de trazer a justa valorização do Técnico Judiciário.
Exigência do concurso
A exigência de conhecimentos legais, supostamente só ministrados em cursos de nível superior, já no concurso público para provimento de cargos de nível médio, é utilizada de forma equivocada para justificar que estes cargos deveriam ser de nível superior. O conhecimento acerca do arcabouço legal mínimo para o efetivo exercício de cargo público é, atualmente, aquele que tecnicamente poderia ser exigido de qualquer cidadão. Afinal, a ninguém é dado o direito de desconhecer a lei, sabedoria essa implícita até mesmo no mais humilde cidadão. É fato notório que a exigência de noções básicas de legislação, para o concurso de nível médio, fica sempre bem aquém daquela exigida para nível superior, em especial para os cargos que requerem graduação específica em Direito.
Justiça
A justiça também é tomada como argumento para a proposta de transposição do cargo de técnico para nível superior, em especial quanto à confusão, principalmente no primeiro grau de jurisdição, em relação às tarefas efetivamente executadas por técnicos e analistas. Temos inúmeras injustiças dentro do judiciário. O desvio de função que caracteriza a execução, por técnicos, de atividades típicas do cargo de analista, é uma delas. Mas há outras mais nefastas para a carreira, como a discricionariedade descriteriosa da nomeação e exoneração para exercício das funções de maior complexidade e responsabilidade dentro do judiciário (para técnicos e analistas), bem como uma profusão crescente de casos de assédio moral, de todos os tipos.
Temos falta de projetos de capacitação para a maioria dos servidores, especialmente os técnicos e auxiliares, e falta de cargos efetivos diante da crescente demanda da sociedade por justiça. Todas essas injustiças, dentro do judiciário, dizem respeito à falta de elementos de carreira que possibilitem ao servidor condições, regras claras e critérios democráticos de acesso e desenvolvimento, que lhe possibilitem o exercício de seu cargo durante toda a sua vida funcional.
O fato de um técnico judiciário ser reconhecido como tal não pode ser considerada uma injustiça. O fato de ele ter se qualificado a nível superior, a ponto de poder exercer com maestria uma função de confiança que lhe possibilita o exercício de atividades com a aplicação desses novos conhecimentos também não representa uma injustiça. A injustiça está, exatamente, na precariedade dessa situação funcional, construída majoritariamente por fatores de gestão discricionária do gestor do momento.
Falta de crescimento na carreira e reconhecimento
A falta de perspectiva de crescimento na carreira aparece com força nos da Pesquisa Geral de Saúde do Sintrajufe 2011/ 2012, onde para 45,7% dos respondentes apontaram como maior fator de desmotivação para trabalhar no Judiciário Federal justamente a falta de perspectiva de crescimento na carreira. Esse número mostra também, que esse é um problema geral da categoria e não especificamente do cargo de Técnico.
Sem dúvida o reconhecimento é o fator que dá valor ao nosso trabalho e é apontado como fundamental para manutenção da saúde mental no trabalho. É através do reconhecimento do outro sobre o trabalho bem feito, sobre o valor do trabalho que o indivíduo se realiza, dando sentido ao seu fazer. Porém, esse reconhecimento é multifatorial e precisa estar dentro de uma política de gestão capaz de garantir esses fatores ao servidor. Não há possibilidade de ser alcançado com ação isolada como a simples mudança de escolaridade do cargo e se mantendo as metas abusivas, a falta de condições de saúde e o assédio moral, para apontar apenas alguns fatores negativos que não desaparecerão com a mudança da escolaridade de ingresso. Seria muito bom se a solução fosse simples assim.
Elitização do serviço público
A busca por trabalho com garantia de estabilidade e melhor remuneração tem tornado cada vez mais concorridos os concursos para ingresso no serviço público. . Isso não impõe, contudo, que a exigência de nível superior para ingresso na totalidade de seus quadros seja um caminho natural.
Segundo dados do CNJ, os técnicos judiciários correspondem à, aproximadamente, 58% da força de trabalho do judiciário federal. Aproximadamente 75% dos técnicos em atividade hoje, já contam com mais de 5 anos na carreira (60% deles em final de carreira). Trata-se de um majoritário contingente de servidores que ingressou no judiciário por um curso de nível médio. Não há estimativas precisas por parte do CNJ a respeito, mas podemos constatar na Pesquisa Geral de Saúde do Sintrajufe 2011/2012 que 39,3% dos respondentes ingressaram no Judiciário Federal com ensino médio completo ou superior incompleto. Essa situação evolui para a data de coleta de dados na pesquisa mencionada para escolaridade atual onde apenas 3,7% tem somente o ensino médio completo e 10,3% superior incompleto. A maioria dos servidores hoje evoluíram para ensino superior completo (40,9%) ou pós-graduação (44,6%).
Fechar as portas do serviço público para mais de 80% da população brasileira a qual não reúne condições financeiras para concluir um curso superior[1], e para a qual o poder público não proporciona acesso universal à esse nível de escolaridade, é elitizar Estado, abraçar modelos de gestão neoliberais e abrir mão de nossa luta histórica de combate a terceirização.
Além disso, é bastante preocupante o alinhamento das propostas apresentadas com o modelo de gestão e de Judiciário defendida pelo CNJ/STF. Precisamos refletir mais sobre as convicções que vem sendo formadas dentro da categoria e questionar a quem realmente servirá essas propostas, caso venham a ser vencedoras no debate de carreira.
Problemas complexos jamais serão resolvidos com soluções simples
Dizer que não há mais espaço para a execução de funções de nível médio dentro do judiciário federal é no mínimo subestimar a inteligência da população que, diariamente, se socorre dos préstimos de auxiliares, técnicos e analistas judiciários. A tecnologia avançou, sem dúvida, o que não fez mudar a essência das diversas funções operacionais do dia-a-dia, mas apenas o meio e a forma como as mesmas são executadas.
O que falta para o técnico judiciário é também o que falta aos demais colegas da categoria. É a construção de ferramentas de carreira que vão possibilitar. a conquista do reconhecimento, da valorização e do crescimento durante toda a vida funcional dentro do Poder Judiciário.
Elementos de carreira que apontam para a valorização e crescimento
A carreira do técnico judiciário, bem como a dos cargos de auxiliar e analista, não passa hoje de uma sucessão anual de 15 avanços, durante a qual o servidor é submetido a uma disputa sem regras, por funções comissionadas e cargos em comissão. Um quadro mais coerente seria aquele onde os servidores que executam estas funções mais complexas, penosas e de maior responsabilidade, por determinado período de tempo, fossem a elas vinculados por um processo democrático e objetivo de escolha. E essa escolha levasse em conta, para cada candidato e para cada função, a sua capacitação, formação, conhecimento na área e experiência no órgão. Ainda, proporcionasse avaliações que contemplando as condições de trabalho, o dimensionamento do quadro, a razoabilidade de metas, a organização do trabalho, entre outras, no sentido de encontrar deficiências e aprimorá-las, de forma coletiva e participativa, contribuindo com a evolução na carreira e na qualidade do serviço prestado à sociedade.
Ascensão funcional e sobreposição de padrões na tabela salarial
A discussão sobre o Plano de Carreira, feita pela categoria em 2007/2008, resultou numa proposta de plano de carreira, que mesmo com algumas falhas e contradições, traz avanços consistentes no sentido de valorização da carreira pública. Além dessa proposta, e como forma de promover o efetivo desenvolvimento e crescimento na carreira, existe proposta de emenda à Constituição tramitando no Congresso Nacional, denominada PEC-257/95, que prevê o retorno, com critérios justos e sem as possibilidades de favorecimentos indevidos do passado, da ascensão funcional no serviço público.
A proposta em debate traz de volta ao escopo da carreira pública a ascensão funcional como forma de provimento, com critérios definidos, tais como escolaridade compatível, tempo mínimo de serviço público (10 anos) e de exercício do último cargo (5 anos), além de destinação de percentuais para concorrência interna e ampla, e mesmo nível de exigência das provas para ambas (talvez a mesma prova, nos mesmos horários e local), além da devolução à concorrência ampla das vagas internas não preenchidas.
Com igualdade de condições, devemos usar a mais clássica definição de igualdade real substancial, segundo a qual, igualdade significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades[2]. Pois não é interessante para o serviço público que o ingresso se dê da mesma forma para cidadãos sem experiência e sem conhecimento da realidade e do fazer do órgão e para servidores com mais de 10 anos de experiência. Mesmo com conhecimento de todas as rotinas, procedimentos e histórico das atividades do órgão, permanecem estanques por anos no mesmo nível da carreira.
Assim também, o modelo de carreira com sobreposição de padrões na tabela faz justiça com o saber construído durante a vida funcional. É correto afirmar que um analista recém chegado ao judiciário tem menos condições de desempenhar suas funções no órgão do que um técnico em final de carreira. Essa ferramenta possibilita a valorização salarial pelo saber institucional agregado durante a vida funcional dos servidores com mais tempo de casa.
Reforma administrativa e proposta de política de gestão de pessoas do CNJ/STF, PEC 59 e carreiras exclusivas dos tribunais superiores
A reestruturação produtiva em curso no Judiciário Federal, tudo indica, será mais agressiva do que a vivida pelos bancários nas décadas de 80 e 90. O perigo de extinção do cargo de Técnico Judiciário é real e é lido na prática reiterada do CNJ em rejeitar os as propostas de criação de cargos de nível médio, nos últimos anos.
O momento atual nos exige grande capacidade de coesão e agir e pensar como um corpo, uma categoria só. Somente com um grau elevado de consciência de categoria e carreira única e unidade acima de nossas diferenças poderá fazer frente aos ataques que estamos sofrendo e que miram diretamente no desmantelamento de nossa categoria. Os projetos de carreiras próprias, em discussão no STF e STJ, a PEC 59, as diretrizes impostas no planejamento estratégico do Poder Judiciário, a proposta de política de gestão de pessoas em elaboração pelo CNJ, tudo isso, está interligado e ao final pode ter desfecho extremamente trágico para nossa categoria e carreira. Hoje, mais do que nunca não devíamos estar nos esfacelando em associações, discutindo em núcleos ou coletivos e sim pensando como um corpo só. Cada divisão, cada estranhamento entre nós, que sirva para nos dividir e não para discutir de forma democrática as diferenças que fazem todos nós crescermos, acaba ajudando muito os planos da cúpula do judiciário.
Acreditamos na sinceridade dos proponentes da mudança na escolaridade, do cargo de técnico. Mas, no atual contexto, ao invés de valorizar os técnicos, pode ajudar a acelerar nossa extinção e alargar a porta da terceirização e conseqüente precarização nos locais de trabalho.
Por todos os motivos expostos e por acreditar que somente a luta por uma carreira e por um modelo de Estado democrático, que inclui democratizar o Poder Judiciário, é que nos contrapomos à mudança de escolaridade e a criação de um coletivo de técnicos nesse momento. Sem a pretensão de sermos donos da verdade e a arrogância de não ouvir a divergência, queremos contribuir para o aprofundamento desse debate e que a categoria escola seu caminho no final, de forma consciente.