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Sindicato dos Servidores das Justiças Federais no estado do Rio de Janeiro - Telefone: (21) 2215-2443

Participação política, ideologia, poder e solidariedade, e o complexo da mulher de César. O que tudo isso tem a ver com a gente?

Por Mauro Figueiredo*

Mulher de CésarParticipação política, não necessariamente participação político-partidária, é questão que tangencia uma série de situações vivenciadas ultimamente pela nossa categoria. Vivemos um momento de mobilização contra o processo de vulgarização salarial que nos aflige já há algum tempo. As dificuldades enfrentadas pelos colegas que buscam organizar um movimento de resistência contra tal processo se traduzem na falta de participação política de grande parte de nossa categoria. Por obvio, qualquer discussão acerca de participação política forçosamente passa pelo conceito de ideologia. Falar em ideologia é falar em representações ideológicas do mundo, poder e solidariedade, bem como em espaços de produção e recepção de discursos. Vamos tratar de cada um desses aspectos separadamente.

O que é ideologia?  O saudoso Cazuza já cantava, com seu jeito irreverente, que queria uma “ideologia para viver”. O termo, então, assume vários matizes, muitos dos quais destoam de sua acepção clássica. Em “The German Ideology”, obra escrita em coautoria com Engels,  Marx  afirma o seguinte:

(…) se em toda a ideologia o homem e suas relações são representados de forma invertida, como se estivessem em uma câmara escura, tal fenômeno está para o processo histórico da vida como a inversão dos objetos na retina está para o processo físico da vida1.

Então, os grupos dominantes tentam representar o mundo nas formas que refletem seus próprios interesses, ou os interesses do seu poder. Mas não é só isso, até porque, se fosse assim tão simples, nunca iríamos aderir ao discurso dominante. O processo é bem mais sutil. Ao mesmo tempo em que os grupos dominantes representam o mundo nas formas que refletem seus próprios interesses, eles tentam manter os elos de solidariedade com os grupos dominados. É precisamente nesse ponto que repousa a base de sustentação de sua dominação.

Um exemplo, sem citar nomes de instituições, seria de uma organização religiosa qualquer que só permitisse acesso às posições de comando aos seus integrantes do sexo masculino, mas possuísse, em sua base de sustentação, um enorme contingente feminino. Como manter centenas de milhares de mulheres dando suporte a uma instituição que lhes nega poder? Basta içar uma figura feminina, ainda que imaterial, simbólica, à posição de mais elevada adoração. Familiar?  Trata-se apenas de um exemplo. Existem milhares de outros.

A noção de ideologia surge dessa dupla e contraditória necessidade dos grupos dominantes e dos grupos dominados que resistem. Logo, a ideologia é vista como uma falsa consciência, representa o mundo “de cabeça para baixo”, e de forma invertida, mas também mostra a imagem do mundo como ele deveria ser, do ponto de vista do grupo dominado. Ainda de acordo com essa noção, para que processos de dominação existam, é necessário que haja um elo de solidariedade entre dominador e dominado. A que tipo de solidariedade eu me refiro? Eu me refiro a uma noção de solidariedade que implica no reconhecimento, pelo “dominado”, da legitimidade do poder do “dominador”. As bases de sustentação dos elos entre poder e solidariedade estão nos complexos ideológicos que, para funcionarem, não podem ser invisíveis ou imperceptíveis. Tais complexos ideológicos representam, por sua vez, uma ordem social que serve, simultaneamente, aos interesses dos dominadores e dos dominados.

Isso posto, retornemos ao problema mencionado no primeiro parágrafo deste texto: Que elos de solidariedade sustentam os processos ideológicos de dominação que mantêm boa parte de nossa categoria inerte em um momento crucial para todos nós?

Antes de lidar com a questão acima proposta é crucial que se deixe claro que a sociedade não se divide de forma tão monolítica e simples assim, numa luta entre dominadores e dominados. Em cada contexto, dominados e dominadores se alternam, em momentos políticos distintos. Não cabe a eu identificar quem são os “dominados” e quem os “dominadores” no contexto da nossa mobilização. Penso que participação política é algo imanente, que “vem de dentro”, portanto, é processo que depende de cada indivíduo. Não podemos – e tampouco temos essa pretensão – forçar a categoria a ter uma participação política nesta luta que diz respeito a todos nós. Aqueles que desistem, ou sequer tentam, participar da luta política dos servidores do Judiciário Federal conclamo a buscar, em um escrutínio íntimo, de cunho estritamente pessoal, as razões para não participar da luta política. Que elos ou vínculos de solidariedade existem que impedem tal participação? Trata-se de solidariedade interclasse ou de solidariedade intraclasse?

Digamos que a solidariedade interclasse seja aquela existente entre membros de classes distintas. Pois é, todos nós sabemos que o Judiciário, como instituição, não é formado por uma classe apenas. Classes coexistem, nem sempre em harmonia, mas coexistem, com certeza. Metas são impostas ao Judiciário. Como juramos bem desempenhar nossas tarefas, em respeito às hierarquias, à Constituição, tudo para bem servir ao jurisdicionado, é natural que tenhamos espírito de equipe. Suponho que cada Gabinete, Secretaria, Seção, Cartório só consiga atingir as metas estabelecidas graças ao espírito de equipe, que não persiste sem solidariedade. São todos remando o barco.  Tudo em prol do jurisdicionado. Nada mais justo, vez que somos pagos – ainda que mal pagos – pelos recursos retirados dos contribuintes.

No entanto, nossa luta política em prol das melhorias das condições de trabalho e dos vencimentos da nossa carreira também demanda espírito de equipe e solidariedade. E vou além: solidariedade intraclasse, que é o tipo de solidariedade que existe – ou deveria existir – entre os membros da mesma classe. Não percamos nosso sentido de dever, não deixemos nossos colegas remarem, sozinhos, o barco em direção às metas do Judiciário. Porém, conclamo a todos que também se deem conta de que um outro barco está sendo remado no exato instante em que este texto é lido: trata-se do barco da nossa luta política. Conclamo os colegas a continuarem a remar seus barcos departamentais, mas, por favor, não se esqueçam de emprestar teus braços também ao nosso barco, àquele que leva nossa categoria como um todo. O destino deste barco – que Deus queira não se revele idêntico ao do Poseidon ou Titanic – depende de cada um de nós. É pouquíssimo provável que alguém de fora de nossa classe venha a remar este barco por nós, em nosso lugar. Trata-se de uma missão inescapável, que cabe a cada um de nós, como servidores, como colegas, como seres humanos que somos. Não fiquemos de braços cruzados, sentados no barco, enquanto nossos colegas remam por nós. A luta é inescapável, já que estamos todos – sem exceção – no mesmo barco, quer queiramos ou não.

Ressalte-se que este artigo não tem como meta desconstruir o sentimento de solidariedade ou o espírito de equipe que une, em torno de um objetivo comum, os diversos segmentos do nosso quadro. Este artigo pretende apenas suscitar, no seio da categoria, a noção da justa medida. Que a solidariedade interclasse exista, como espírito de equipe, mas não nos olvidemos da solidariedade intraclasse, como consciência política.

Não poderia concluir este texto sem mencionar outro aspecto que atine a todos nós, servidores do Judiciário, neste momento em que nos lançamos à luta em defesa de nossa categoria. Talvez, por conta de um conceito acerca de servidor público que perdurou durante certo tempo na história do nosso país, um tempo pouco republicano, pouco democrático, em que a coisa pública não era tratada com o devido respeito, até hoje os servidores de uma forma geral, e os servidores do Judiciário em particular, parecem prisioneiros daquele velho ditado: “a mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta”.

Devido à noção injusta acerca da honestidade aparente, muitos dos nossos colegas, cumpridores de suas responsabilidades, que respeitam as hierarquias, a Constituição, que bem desempenham suas tarefas em prol do jurisdicionado, temem ser taxados de desonestos, vagabundos, irresponsáveis ao se unirem a todos nós nesta justa luta em prol da revisão dos nossos vencimentos. O que há de mais desonesto do que manter os vencimentos de uma categoria sem revisões anuais desde 2008, em um contexto em que a inflação claramente já saiu do controle?

Falo de uma insurgência contra o desrespeito à Constituição, que em seu art. 37, X, diz:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos     Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados    por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (Regulamento)

A inexistência da norma regulamentadora do nosso direito constitucional de ter a revisão anual dos nossos vencimentos deveria, sim, ser mais um ensejo à nossa participação política. A inflação crescente, fruto da incompetência da atual administração petista, é uma tempestade que assola o nosso barco e nos põem à deriva, os ventos das críticas da imprensa e da sociedade, que geralmente não apoiam nossas mobilizações, são verdadeiros azorragues a açoitar nossas costas, negra é a noite, sem estrelas, sem um único farol no horizonte a nos apontar a rota que nos desviará dos rochedos, da tragédia, que não se abaterá apenas sobre nós, servidores, mas sobre nossa família, nossos filhos, que de nós dependem para ter acesso a uma educação razoável e a uma sorte um pouco melhor do que a nossa.

Neste contexto de luta política, devemos reinterpretar, inverter os polos ideológicos do velho ditado acerca da mulher de César, e proclamar: “ao servidor do Judiciário Federal não basta ser solidário (solidariedade interclasse), tem que parecer solidário (solidariedade intraclasse)”.

Nota:

[1] No original: “If in all ideology men and their relations appear upside down as in a camera obscura, this phenomenon arises just as much from their historical life-process as the inversion of objects on the retina does from their physical life-process”.

*Mauro Figueiredo é técnico judiciário do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2)

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